Estamos no fim dos EUA cristãos brancos. O que isso significa?

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23 Setembro 2017

"A história do protestantismo estadunidense não foi só perseguição, é claro. O clero protestante e os leigos desempenharam um papel importante nas lutas progressivas - desde a abolição, passando pelo movimento dos direitos civis, até as barricadas em Charlottesville. Muitas denominações comuns têm uma influência bastante liberal sobre questões sociais e econômicas", escreve Jason Wilson, escritor australiano, em artigo publicado por The Guardian, 20-09-2017. 

Eis o artigo. 

Depois de chegar a contabilizar oito em cada 10 estadunidenses em 1976, os cristãos brancos são agora minoria, concluiu um estudo. As implicações políticas podem ser profundas. 

Os Estados Unidos são uma nação cristã: isso sempre foi um axioma político, principalmente para os conservadores. Até mesmo alguém que vive sem Deus e sem moral como o 45º presidente sente a necessidade de exaltar a ideia, da boca para fora. Na Christian Broadcasting Network, no ano passado, ele resumiu sua própria posição teológica com a seguinte frase: "Deus é o máximo". E na mente conservadora, a cristandade estadunidense há muito tempo se encaminha para a raça branca. A direita aprendeu, durante a segunda metade do século XX, a falar sobre essa conexão usando abstrações como "valores judaico-cristãos", juntamente com a conversa sobre raça codificada, para que os eleitores soubessem de que lado estavam.

Mas a mudança está ocorrendo, e os dados demográficos dos EUA estão se transformando, com possíveis consequências de grande alcance. Na semana passada, em um relatório intitulado America’s Changing Religious Identity (A identidade religiosa em mudança dos Estados Unidos, em tradução livre), a organização de pesquisa não partidária Public Religion Research Institute (PRRI) concluiu que os cristãos brancos agora são minoria na população dos EUA.

Em breve, os brancos como um todo também serão.

Não se trata de uma pesquisa comum. Baseou-se em uma amostra enorme de 101 mil estadunidenses de todos os 50 estados e concluiu que apenas 43% da população era formada por cristãos brancos. Colocando em perspectiva, em 1976, oito em cada 10 estadunidenses foram assim identificados e um total de 55% eram protestantes brancos. Ainda em 1996, os cristãos brancos formavam dois terços da população.

O cristianismo branco sempre foi enraizado na história, na demografia e na cultura do país. Entre os mais antigos e mais venerados colonizadores brancos da América do Norte, estavam os protestantes puritanos.

Além de esperar pelo retorno de Cristo, eles procuraram moldar uma comunidade piedosa, que representasse seus objetivos de pureza moral e eclesiástica. Também nutriam uma demonologia espalhafatosa, e caçaram e queimaram supostas bruxas em meio a eles. Essas tendências - ao milenarismo, à teocracia e à criação de bodes expiatórios - recorriam frequentemente à cultura cristã branca dos Estados Unidos.

As várias ondas de reavivamento religioso, a partir do século XVIII, moldaram a política da nação e seu próprio senso de identidade. Ao redor de 1730, o pregador Jonathan Edwards buscou não só converter pessoalmente seus ouvintes, mas também trazer à tona o reinado de Cristo na Terra através de um aumento da influência nas colônias.

Como escreveu o erudito religioso Dale T Irvin: "Na época da revolução dos EUA, os seguidores de Edwards haviam começado a secularizar essa visão de uma nação justa com uma missão redentora no mundo". Esta fé estruturou a doutrina do destino manifesto, no século XIX, que sustentava que a disseminação da colonização branca sobre todo o continente não apenas era inevitável, mas era justa. O desalojamento de povos nativos e, por fim, o domínio da nação no hemisfério, ocorreu com aprovação de raízes cristãs.

No final do século XX, outro renascimento religioso alimentou diretamente o sucesso da política conservadora. Pregadores como Billy Graham e Jimmy Swaggart - em reuniões espetaculares de revitalização e cada vez mais na televisão - atraíram milhões de conversos brancos para igrejas que enfatizavam interpretações literais da Bíblia, ensinamentos morais rigorosos e expectativas apocalípticas.

No sul, a explosão de igrejas evangélicas coincidiu com uma onda de reação racial após o movimento pelos direitos civis. Depois de ser uma fortaleza democrática, o sul tornou-se solidamente republicano no início dos anos 70. A "estratégia do sul" republicana usou a raça como separação, atraindo votos de brancos após o movimento dos direitos civis, mas também propôs uma mensagem socialmente conservadora que se alinhava aos valores da direita cristã emergente.

Nas décadas seguintes, os republicanos usaram essa mistura para ajudar a eleger presidentes, bloquear o Congresso e ampliar seu domínio sobre a maioria das casas executivas do país. Líderes do direito cristão tornaram- se figuras de influência nacional, e, principalmente no mandato de Bush, a política pública foi direcionada para beneficiá-los.

O autor de The End of White Christian America, Robert P Jones, diz que é "incrível a rapidez" com que a tendência está se alastrando. Em 2008, os cristãos brancos ainda eram 50% da população, ou seja, "houve uma mudança de 11 pontos desde a eleição de Barack Obama".

De acordo com Jones, há duas grandes razões para essa mudança.

Uma é "a desfiliação dos jovens em particular das igrejas cristãs". Isso significa que, principalmente entre os jovens, há menos cristãos, proporcionalmente. Se a tendência continuar, haverá cada vez menos cristãos.

Enquanto dois terços dos idosos são cristãos brancos, apenas cerca de um quarto das pessoas entre 18 e 29 anos também serão. Em graus variados, isso afetou quase todas as denominações cristãs - e quase quatro em cada 10 jovens estadunidenses não têm nenhuma afiliação religiosa.

As crenças "mais jovens" nos Estados Unidos - as que têm a maior proporção de adeptos jovens - não são cristãs: o Islã, o Budismo e o Hinduísmo. Isso reflete o segundo grande motor do declínio cristão branco: tanto os Estados Unidos quanto sua família religiosa estão se tornando menos brancos.

O panorama geral é a erosão constante da maioria branca dos Estados Unidos. Devido principalmente à imigração asiática e hispânica e à consolidação de populações de imigrantes já estabelecidas, os brancos serão minoria até 2042. Na faixa dos menores de 18 anos, isso acontecerá já em 2023. De acordo com as projeções do instituto Pew, no século entre 1965 e 2065, os brancos terão passado de 85% da população para 46%.

Talvez, inevitavelmente, isso se reflita em uma paisagem religiosa mais diversificada.

Martin Luther King Jr uma vez lamentou: "É espantoso que a hora de maior segregação dos Estados Unidos cristãos seja no domingo de manhã". Até hoje, há historicamente denominações de raça negra em paralelo a igrejas de raça quase exclusivamente branca, com pouca ou nenhuma mudança em sua composição racial.

Mas outras igrejas estão começando a refletir a crescente diversidade do país. A Igreja católica ilustra isso de forma contundente.

Na década de 80, o número de brancos superava o de não brancos nas igrejas católicas em uma margem de 10 para cada um. Agora, graças principalmente a um grande número de paroquianos hispânicos e à apostasia de jovens brancos, segundo Jones a Igreja está "quase alcançando a paridade" e "em muitas áreas dos EUA é majoritariamente latina".

A partir do período colonial, explica John Turner, "a maioria dos colonizadores brancos considerava-se protestante".

Ainda que as narrativas mais enraizadas da história norte-americana a descrevam como um santuário de minorias, isso variou consideravelmente de colônia para colônia.

"As pessoas falam dos EUA como uma nação cristã, mas uma descrição melhor seria a de nação protestante branca, o que muitas vezes dificultava a vida de outros grupos", diz Turner.

Ele aponta o nativismo anticatólico do século XIX, que foi conduzido pela crença de que "o mundo está dividido entre pessoas a favor e contra Cristo, com os católicos do outro lado da divisão".

Isso frequentemente gerava violência. Em 1834, uma multidão queimou um convento das irmãs ursulinas perto de Boston. No dia 6 de agosto de 1855, que ficou conhecido como "Segunda-feira Sangrenta", 22 pessoas morreram quando outra multidão atacou um bairro católico irlandês.

Em 1854, o partido estadunidense - também conhecido como "Know Nothings" (Sabe Nada) - ganhou 42 cadeiras do Congresso em uma plataforma populista e anticatólica. Dois anos depois, seu candidato presidencial, Millard Fillmore, conquistou um quinto dos votos.

Outro exemplo de protestantes que dificultaram a vida dos outros foi a perseguição da própria igreja Mórmon dos Estados Unidos, fundada em 1830. No século XIX, Turner afirmou: "muitos estadunidenses protestantes rejeitaram a ideia de que o mormonismo era realmente uma religião".

O início da história dos Mórmons foi marcada por uma série de ataques violentos de não mórmons, bem como subsequentes fugas para novos lugares de encontro.

Este ostracismo e violência reiterados levaram a sua jornada terrestre ao Grande Lago Salgado, longe de seus antagonistas protestantes, muitas vezes assassinos, onde fundaram Utah.

A partir da década de 1890 e especialmente durante a Grande Depressão, os judeus foram vítimas tanto de sentimentos antissemitas naquele contexto quanto de violentos crimes de ódio, principalmente nas cidades do nordeste.

A história do protestantismo estadunidense não foi só perseguição, é claro. O clero protestante e os leigos desempenharam um papel importante nas lutas progressivas - desde a abolição, passando pelo movimento dos direitos civis, até as barricadas em Charlottesville. Muitas denominações comuns têm uma influência bastante liberal sobre questões sociais e econômicas.

A identidade cristã branca politizada continua sendo uma potência da direita. Jones ressalta que a base do partido republicano permaneceu "esmagadoramente branca e cristã", e seu declínio dentro do partido "pega-tudo" foi muito menos drástico do que na nação em geral: sua fatia na coalizão republicana, em votos, teve apenas uma ligeira queda na última década, de 81% em 2006 para 73% agora.

As políticas e prioridades republicanas continuam refletindo essa influência. Na plataforma adotada na posse de Donald Trump, o partido sustentou compromissos com medidas antiaborto (incluindo a interrupção de financiamento à organização Paternidade Planejada [Planned Parenthood]), condenou a decisão do Supremo Tribunal de permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo e prometeu "proibir a discriminação do governo" a indivíduos e empresas que se recusarem a atender casais homoafetivos.

O próprio Trump emitiu um decreto impedindo a execução das chamadas "emendas Johnson", que impedem as organizações isentas de impostos de se envolverem em campanhas políticas partidárias. Essas medidas limitaram a influência política das igrejas na direita cristã, e o movimento de Trump (que ele exageradamente chamou de revogação) é uma recompensa para os evangélicos.

Até mesmo as promessas de Trump de um construir muro e reprimir a imigração refletem os valores dos evangélicos brancos, que dentre todos os grupos religiosos são os mais hostis à imigração.

Os cristãos brancos estão unidos ao Partido Republicano. Hawley observa que "os cristãos brancos continuam sendo a base do Partido Republicano, e espero que permaneçam assim".

Num sistema de dois partidos, a incrível maioria branca do partido republicano percebeu que os democratas começaram a "seguir as tendências e ficar mais diversificados". Os democratas são fortemente preferidos pelos estadunidenses negros e hispânicos, incluindo os católicos hispânicos, pelos jovens e pelo crescente número de estadunidenses sem afiliação religiosa.

Durante anos, essas tendências causaram otimismo entre os democratas - sua coalizão parece se assemelhar ao futuro dos Estados Unidos, enquanto os republicanos parecem presos no passado e sua base diminui. Até mesmo os republicanos ficaram assustados: o famoso documento de "autópsia" produzido pelo Comitê Nacional Republicano (CNR) de Reince Priebus, logo após a derrota de Mitt Romney, levou o partido a atingir os latinos, entre outras coisas, com uma reforma significativa na imigração.

No entanto, um olhar para o presente mostra que os republicanos responsáveis pelo Congresso, a presidência e a maioria da câmara, e Trump estão procurando implementar a plataforma fortemente anti-imigração, cristã, e de direita para que foi eleito.

Turner diz que, a curto prazo, a mudança de demografia não garante os resultados das eleições: "Por muito tempo disseram que a união entre a política republicana e os cristãos brancos era um jogo perdido, mas não foi no ano passado".

E vale dizer que nada garante que latinos, afro-americanos ou outros grupos não brancos dos EUA permanecerão leais aos democratas. O cristianismo branco não é uma categoria imutável. Afinal, católicos e mórmons brancos - anteriormente alvos da perseguição protestante - tornaram-se parte da coalizão cristã branca.

Na semana passada, John Judis, que foi um dos principais defensores das previsões sobre uma maioria democrata emergente no estilo "demografia é o destino", se retratou, dizendo: "Ser branco não é uma categoria genética; é uma construção social e política que se baseia na percepção e no preconceito. Um século atrás, irlandeses, italianos e judeus não eram considerados brancos.”

Jones, no entanto, acredita que, mesmo que as tendências não sejam decisivas a curto prazo, "mais cedo ou mais tarde, essas realidades demográficas aparecerão" nas eleições nacionais. Ainda acrescentou: "Precisamos lembrar o quanto as eleições de 2016 foram apertadas".

Segundo ele, "há um atraso", mas até 2024 as mudanças serão eleitoralmente decisivas, e para os republicanos o problema será cada vez mais que "quando uma parte da base fica tão grande e expressiva, torna-se difícil administrar".

A base cristã branca dos republicanos, em grande parte, quer enfraquecer a imigração ou mesmo detê-la completamente - mas talvez seja tarde demais.

Se os republicanos não conseguem mudar, podem achar que o país é que mudou ao seu redor.

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