23 Mai 2017
“Nesta Amazônia, poderíamos salvar a todo o mundo. Por isso, é lamentável o que acontece”, diz Margarita Rodriguez Weweli-Lukana, liderança indígena Sikuani, etnia que vive na região do médio Orinoco entre a Colômbia e Venezuela. Ao jornalista e antropólogo Fábio Zuker, ela contou em depoimento exclusivo durante o VIII Fórum Social Panamazônico que seu “povo está em vias de extinção devido às empresas que destroem nosso território”. Falou também sobre a participação das mulheres nas organizações do movimento indígena. “Foi muito difícil, mas pouco a pouco nós mulheres fomos ganhando espaço dentro das organizações indígenas. Antes eram apenas os homens que tomavam as decisões. Agora vivemos um momento histórico”. Zuker acompanhou as plenárias do Fospa entre os dias 28 de abril e 1º de maio, em Tarapoto. Para agência Amazônia Real, o jornalista entrevistou personagens que resistem, de baixo, à destruição de seus territórios e modos de vida na Floresta Amazônica.
O depoimento de Margarita Rodriguez Weweli-Lukana é publicado por Amazônia Real, 20-05-017.
Algumas mulheres do meu povo vieram participar desse VIII Fórum Social Panamazônico. Temos uma organização indígena em que participam 150 mulheres Sikuani, na qual trabalhamos para a sobrevivência de nosso povo, do ponto de vista ambiental, cultural e político.
Temos um conhecimento histórico de como a colonização vem destruindo a população étnica e cultural. Vivemos entre Venezuela e Colômbia, por isso nos consideramos colombiano-venezuelanos, no Departamento de Vichada. Mas já vivemos em vários outros departamentos, como Meta, Arauca, Guainía, Guaviare, e existem populações Sikuani espalhadas por estes estados.
É da minha avó, que participou nas Guerras Mundiais, que trago o nome tradicional, Weweli-Lukana [alguns momentos depois, eu pergunto, de maneira ingênua, de quais guerras mundiais ela se refere, intrigado pelo comentário acima. E Margarita me responde, seca: “a guerra é a colonização”]. Dois de seus filhos sobreviveram, mas um morreu de morte natural e outro quarto o levaram durante a guerra. Iriam matá-la também, mas acabaram assassinando apenas a sua irmã. Cortaram os braços, abriram o seu tronco e, em uma forma redonda, fizeram com que as outras guerreiras observassem como batia o seu coração, com ela viva, toda aberta. Ao final, lhes retiraram o seu coração… Antes eu não conseguia falar disso. Sentia muita dor de ver como sofria minha avó, como sofreu com essa desgraça…
Ela só me contou isso nos últimos anos de sua existência. Ela morreu há três anos. É ainda algo recente. Ela faleceu no dia 8 de março. E foi algo muito especial, pois ela faleceu no Dia Internacional da Mulher, e eu lhe homenageio neste dia. Os dons de nascimento que trago comigo vem desta irmã da minha avó, que foi uma xamã, uma cacica. E a minha avó também foi uma vidente. Por isso tenho o nome completo tradicional da minha avó, e também o nome que deram à ela com a colonização.
Foi muito difícil, mas pouco a pouco nós mulheres fomos ganhando espaço dentro das organizações indígenas. Antes eram apenas os homens que tomavam as decisões. Agora vivemos um momento histórico, de ascensão das mulheres nas decisões políticas dentro de nossas comunidades, mas também fora delas…
Ainda respiramos ar puro, e ainda temos rios limpos, mas posso dizer que existe uma empresa que ameaça a nossa vida, localizada no lugar em que nascem os nossos rios. Afinal de contas necessitamos de lugares preservados em nosso território, nossos lugares sagrados, onde nada se corte; nem mesmo uma árvore ou uma folha. Onde estão as nossas plantas medicinais. Os lugares específicos de encontro e trabalho espiritual. Os lugares específicos de pesca, de caça, de coleta de frutos.
Temos que ter permissões especiais [refere-se a seres sobrenaturais] para nos movimentar pelo território. Uma certa vez, passando por um certo lugar, não pedimos as devidas autorizações, e fomos surpreendidos por uma forte tempestade, que me obrigou a fazer uma mediação para que tudo se acalmasse. E assim aconteceu. A chuva, o vento e os relâmpagos cessaram. São coisas que ocorrem, e que o mundo branco não entende.
Não comemos arroz e nem comemos esses alimentos que vem em materiais plásticos e enlatados. Produzimos nossas pimentas, sem nenhum tipo de química, sem sal; são produtos limpos. Temos produção de aves locais para consumo também. Sabe, as pessoas estão morrendo jovens. Por quê? Por não terem os nutrientes básicos para sobreviver na Terra. Pois comem apenas enlatados e coisas em plásticos. E o dinheiro nunca os salvará. Está é uma reflexão que os povos indígenas de Vichara oferecem ao mundo.
Dizem que isso aqui é água potável [aponta para uma pequena garrafa de água]. Isso não é água potável, passa por cloro. É a natureza que filtra e purifica a água. Nossos avós viveram muitos anos assim. Naquela época não tinha poluição nem contaminação, não sofriam de parasitas, nem de gastrites, nem de apendicites, nem de problemas de cólon, não sofriam de hepatite, nem de nervos, nem de más formações… mas agora com a comida, que leva muitos produtos químicos, temos todos esses problemas. E isso é o que não queremos como povos.
Começamos a ver, muito claro, que já não tem oxigênio em outros países, que já não tem água em outros países. Ainda que tenham muitos pontos de poluição em nosso território, vemos que ainda respiramos um ar puro. Em outros lugares vivem com os narizes sempre congestionados, com catarro o tempo todo. Por isso queria fazer essa reflexão, uma visão dos povos da Amazônia, para que transformemos outros povos, e suas maneiras de ver o mundo.
As sementes estão secando. E temos que preservá-las. Existem espíritos que sustentam a Terra, que podem acabar em um minuto com todo o mundo. Mas nós, povos indígenas, fazemos as cerimônias, o controle ambiental para deixar tudo estável. Nesta Amazônia, poderíamos salvar a todo o mundo. Por isso, é lamentável o que acontece. Não podemos explorar o ouro, não podemos explorar o petróleo. O petróleo é o que sustenta a Terra, é como tirar o sangue de uma pessoa. Como ficaria ela? A terra tem riquezas, mas ela necessita de seu próprio sangue para viver. E a terra se está secando…
O governo colombiano afirmou, em 2009, que existem 19 povos em vias de extinção no país [outras fontes afirmam ser 34 povos nesta mesma situação]. Com certeza! Mas isso decorre da ação do próprio Estado, que abre as portas às empresas, às petroleiras. As multinacionais que conduzem esses projetos fazem consultas apenas a governadores dos departamentos e aos prefeitos. Mas eles não possuem nenhum conhecimento do que vivemos, pois não vão às aldeias.
Os governadores e prefeitos não tem ideia de como vivemos, nem como nos alimentamos, nem como está a saúde indígena, nem como estão as vias de acesso nas aldeias. Temos vias são de difícil acesso, não temos comunicação e nem segurança.
Vivemos no mesmo território que nos foi concedido em 1986, mas ele é insuficiente, pois não reconhecia as populações que já viviam lá. Em 1991, solicitamos mais uma parte do território, que nos foi negada. Disseram que não havia fundos para os estudos necessários. Bom, isso é muito duro, pois logo depois, em 1992, chegaram os latifundiários. Não tenho ideia se isso está legalizado ou não. Vieram apenas os brancos, e a eles foi entregue todo o território, com tentativas inclusive de desalojar-nos das comunidades.
Estamos resistindo, pois não temos para onde ir. Nos corrieran desde el viento [de difícil tradução, pelo modo como joga, poeticamente, com o espanhol. Em uma tradução livre, algo como: “nos expulsaram como ao vento”]. Praticamente nos foram expulsando de lugar em lugar: desde as Cordilheiras, e agora nos deixaram com um pedaço de terra do qual não podemos mais sair. As fazendas e empresas nos proíbem de sair para caçar e pescar, e estão nos ameaçando [penso no contraste entre o modo como Margarita se refere à necessidade de solicitar permissão para o deslocamento junto aos seres sobrenaturais, em contraposição à violência da imposição dos governos e das multinacionais, proibindo sua circulação]. Recebi ameaças diretas, com armas de fogos, e objetos cortantes. Não temos segurança nenhuma…
Nossa pequena organização de lideranças mulheres se chama Consejo de Mujeres Indígenas Sikuani JUMENIDUAWA. O nome da associação é o de uma mulher forte, que salvou o mundo. Trovejava muito, e muita gente morria. Tudo ia se acabar com o grande relâmpago. Mas essa mulher, Jumeniduawa, conseguiu retirar a arma potente do juiz celeste. Daí o nome do conselho. Temos o comitê de mulheres indígenas e trabalhamos a partir de dois eixos fundamentais: a escola produtiva (com os produtos que mencionei antes) e a escola de direitos e empoderamentos, que é a escola de formação para mulheres, para que tenhamos vozes.
Trabalhamos mais do que tudo a partir da carta das Nações Unidas, ao redor da resolução 1325, e da Lei de Vítimas em Colômbia. Já passamos os informes às Nações Unidas sobre abusos e violências contra as mulheres, compilados em diversas localidades. Mas as denúncias sobre violência contra as mulheres nunca são ouvidas por aqui; os processos nunca tem seguimento. Tudo fica em branco, ou tudo é arquivado.
Estamos tentando fazer com que essas questões sejam escutadas, e que cheguem também às grandes empresas. Pois elas dizem que não poluem, que tudo o que fazem é para o desenvolvimento. Mas não é o que vemos.
A visão do Estado tem como signo-peso a terra [como explica depois, signo-peso é o conceito utilizado por Margarita para se referir à importância que alguns elementos têm na organização do todo]. Para nós, indígenas, a terra possui um significado de patrimônio cultural, um significado de resistência. Para nós a terra não é dinheiro. E o que mais nos preocupa são as vidas das pessoas. Porque se acabamos toda essa floresta, se acabamos com os povos indígenas, acabaremos com todo o mundo… sem distinção de raça e cor, seja indígena, branco, pobre, negro, jovem, velho, estrangeiro, gringo, rico… tudo se acabará. (Colaborou com a entrevista Meredith Castro Rios).
Veja o documentário JUMENIDUAWA, e conheça mais da luta do Consejo de Mujeres Indígenas Sikuani.
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A força e a voz das mulheres indígenas Sikuani, etnia da Colômbia e Venezuela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU