24 Abril 2014
"Em tempos nos quais se discute a espionagem estadunidense via rede de computadores e o envio de drones para eliminar alvos na "guerra contra o terror", o filme acaba sendo uma metáfora da grande questão que paira sobre a humanidade deste tempo: em quem confiar? E, principalmente, que uso os depositários desta confiança farão dela?" pergunta Renato Ferreira Machado, teólogo, em sua resenha crítica sobre o filme Capitão América - O Soldado Invernal.
Segundo o articulista, "o paralelo com o caso Edward Snowden é inevitável. A grande questão é que talvez ele nunca consiga encontrar o que busca, pois pode chegar à conclusão que a sede pelo poder sempre foi uma constante na história de seu país e na própria cultura ocidental".
Eis o artigo.
Em tempos de questionamento da hegemonia e intervencionismo estadunidense sobre o mundo, fica difícil engolir um personagem que se veste com a bandeira deste país. Sem dúvida, o Capitão América é um personagem tão icônico que precisa de uma serie de cuidados semióticos para ser posto em diálogo com um público globalizado, que tem acesso irrestrito a informações e tende a questionar supostos modelos culturais universalizantes. Ao mesmo tempo, o personagem poderia, facilmente, se tornar um ícone neoconservador, justificando todo um discurso de rejeição ao pensamento de esquerda que vem circulando nos mais diversos meios. Pois bem: Steve Rogers, o Capitão América é muito maior do que isso.
Da Segunda Guerra à contracultura
Criado por Joe Simon e Jack Kirby em 1941, o personagem foi pensado como símbolo da atuação estadunidense na Segunda Guerra Mundial: era um recruta franzino que, através de um experimento científico, se tornava um supersoldado e que portava, como arma, um escudo que evocava a bandeira dos Estados Unidos. Ou seja: até o mais fraco dos estadunidenses estaria disposto a combater no front, mas apenas se o país fosse atacado, pois, neste caso, os Estados Unidos estariam apenas se defendendo e não atacando. Com o envolvimento real do país no conflito, o Capitão América, junto a outros personagens similares, tornou-se uma figura popular e inspiradora para as crianças e jovens da época. Aliás, vivia-se a Era de Ouro dos quadrinhos de super-heróis e, também nesta época, figuras como Superman e Batman viviam seu auge. Com o fim do conflito bélico, o Capitão América foi se tornando descontextualizado, até ter suas revistas descontinuadas. Ele volta apenas em 1964, já na Editora Marvel: cria-se a história de que, no final da guerra o Capitão teria caído de um avião nas águas do Atlântico Norte e ficado congelado desde então. Descoberto pelos Vingadores – Homem de Ferro, Thor, Gigante e Vespa – ele é reanimado e passa a viver nos Estados Unidos dos anos sessenta, descobrindo uma sociedade bem diferente daquela que conhecera algumas décadas antes. O ano no qual se decide reviver o Capitão América não é uma mera casualidade: em 1963, John Kennedy havia sido assassinado, vivia-se o auge da Guerra Fria e da contracultura, que questionava o american way of life estabelecido no final da Segunda Guerra. Assim, se inicialmente o herói evocava os valores de sua geração como forma de amenizar os conflitos internos dos Estados Unidos da década de sessenta, aos poucos, roteiristas e desenhistas, também egressos de movimentos contraculturais, foram colocando o personagem em crise com o governo e com o suposto patriotismo que ele defendia. O Capitão América, assim, ia se tornando cada vez mais um rebelde portando a bandeira de seu país, ao invés de um defensor cego dos valores estadunidenses. O plot perfeito para isso era dado pela forma como ele viera parar nos tempos atuais: ao ter ficado algumas décadas em animação suspensa, Steve Rogers se tornava um homem fora de seu tempo e, com isso, um observador privilegiado das grandes mudanças que estavam em curso.
Da Segunda Guerra ao Século XXI
Quando a Marvel, editora do personagem, começou a transportar seu universo heroico para o cinema, o Capitão América, sem dúvida, se tornou uma crise a ser administrada: como apresentar um personagem como esse no contexto das guerras no Oriente Médio, por exemplo? De que forma tornar verossímil a história de um homem que veste a bandeira de seu país e empunha um escudo com as cores desta mesma bandeira em um tempo no qual este símbolo tem representado o que de pior existe em termos de exploração financeira, dominação ideológica e intervencionismo bélico? Ainda haveria lugar para um personagem como esse no Século XXI? Pode-se dizer que as respostas foram sendo dadas em três filmes: Capitão América – O primeiro Vingador, dirigido por Joe Johnston e lançado em 2011; Os Vingadores, dirigido por Joss Whedon e lançado em 2012; e, finalmente, Capitão América – O Soldado Invernal, dirigido por Anthony e Joe Russo, lançado em 2014. O primeiro mostra a origem do personagem e se passa na década de quarenta, terminando com seu despertar em 2011. O segundo foi o grande blockbuster da Marvel Studios, reunindo seus principais personagens em um único filme – no qual o Capitão América assume a liderança dos heróis e tem grandes conflitos com Tony Stark, o Homem de Ferro, que é um típico playboy estadunidense. E o terceiro filme, que está em cartaz nos cinemas, talvez seja aquele que melhor apresente a relevância do personagem para os tempos atuais. Cabe destacar que, se nas histórias em quadrinhos, o personagem desperta nos Estados Unidos vinte anos depois do fim da Segunda Guerra, nos filmes isso se dá setenta anos depois. Seu estranhamento e adaptação são bem mais intensos.
Nesse sentido, Capitão América – O Soldado Invernal não é um filme de super-heróis, mas um thriller político, cujos personagens são super-heróis. Em sua adaptação aos tempos atuais, Steve Rogers realiza trabalhos para a agência de espionagem chamada S.H.I.E.L.D., que é o equivalente à CIA nos quadrinhos da Marvel. Coordenado pelo Coronel Nick Fury e auxiliado pela agente Natasha Romanoff, a Viúva Negra, o Capitão América faz as vezes de um operativo paramilitar enviado para missões de alto risco, que exigem rapidez e discrição. No filme, após resgatar agentes da S.H.I.E.L.D. feitos reféns por terroristas internacionais, o personagem se depara com informações a respeito de um projeto secreto da agência de espionagem que o coloca em crise com esta e o leva a ser perseguido por ela. Steve descobre que a S.H.I.E.L.D. estaria desenvolvendo um sistema informatizado capaz de detectar e eliminar possíveis ameaças aos Estados Unidos antes que estas acontecessem, ou seja, a agência iria perseguir e eliminar inimigos em potencial, antes que estes efetivamente tivessem feito algo que os incriminasse. Em seguida, o próprio diretor da agência é vítima de um atentado, o que revela uma rede de contraespionagem no interior da S.H.I.E.L.D. Buscando resolver estas questões, o Capitão América e a Viúva Negra chegam a uma base militar abandonada, onde encontram uma rede de computadores antigos. Nestes computadores subsiste a mente do maior cientista nazista do universo Marvel: Arnin Zola. E é no encontro dos heróis com este vilão que o filme revela um perturbador texto político.
O fascismo oculto no poder
Zola revela que, terminada a guerra, ele fora cooptado pelo governo estadunidense para montar uma central de inteligência que prevenisse o mundo de outra grande guerra. Nascia, ali, a própria S.H.I.E.L.D., que com o tempo e a tecnologia implementada por Zola, iria se tornar a maior força de espionagem do mundo. O que passara desapercebido é que Zola pertencia a uma divisão nazista chamada Hidra, que continuou existindo secretamente, mesmo após o fim da Segunda Guerra. Assim, tudo aquilo que era desenvolvido para a S.H.I.E.L.D. estava, na verdade, servindo aos propósitos da Hidra, que mantinha agentes infiltrados no alto escalão político de Washington.
Então, em uma cena muito emblemática, o vilão diz que o poder troca de mãos, mas no fundo sempre é o mesmo e que, hoje, o poder é um vírus eletrônico ao qual as pessoas entregam todas as suas informações e pelo qual se deixam guiar. Zola se referia à própria internet, que, segundo o personagem, era a arma de dominação mais eficaz que alguém já poderia ter criado. Enquanto o personagem fala, a cena vai exibindo imagens de fatos históricos importantes ocorridos desde o fim da Segunda Guerra e, no centro da tela, é mostrada a imagem de uma insígnia em forma de águia, que vai mudando com o tempo: primeiro, é uma águia nazista, símbolo do Terceiro Reich; depois, torna-se a águia presente nos brasões estadunidenses; finalmente, muda-se na águia que serve de símbolo à S.H.I.E.L.D. O poder é o mesmo. A vontade de dominação é a mesma. E seu motor, o fascismo, se encontra em sua raiz.
Em tempos nos quais se discute a espionagem estadunidense via rede de computadores e o envio de drones para eliminar alvos na guerra contra o terror, o filme acaba sendo uma metáfora da grande questão que paira sobre a humanidade deste tempo: em quem confiar? E, principalmente, que uso os depositários desta confiança farão dela? Neste contexto, o Capitão América torna-se um símbolo de resistência, pois, ao se desvincular desta teia de poder e voltar a adotar seu informe da década de quarenta, parece se colocar em busca do que se perdeu no tempo em que ele esteve em animação suspensa.
Aliás, o paralelo com o caso Edward Snowden é inevitável. A grande questão é que talvez ele nunca consiga encontrar o que busca, pois pode chegar à conclusão que a sede pelo poder sempre foi uma constante na história de seu país e na própria cultura ocidental. Aqueles que vislumbram outros horizontes acabam se tornando, como ele, pessoas fora de seu tempo.
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Capitão América – O Soldado Invernal: o fascismo é um vírus eletrônico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU