IPCC reconhece desigualdade como chave para o risco climático. Mas é preciso ir muito além, análise de Alexandre Costa

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10 Abril 2014

"É comum a esquerda negligenciar a crise ecológica. Mas isso é um grave erro. Entendemos que é central buscar respostas à questão da crise ecológica em geral (e da crise climática em particular); é crucial para os pobres, os trabalhadores do campo e da cidade, os indígenas, enfim, para os oprimidos e explorados no século XXI", escreve Alexandre Costa, Ph.D. em Ciências Atmosféricas e Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará, em artigo publicado por EcoDebate, 09-04-2014.

Eis o artigo.

No ano passado, o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (o IPCC, da sigla em inglês) deu início à divulgação do seu 5º Relatório de Avaliação (ou AR5), começando pelo trabalho do “Grupo I”, que trata das bases físicas da mudança no clima. Esta semana, essa divulgação teve continuidade, com a publicação do Sumário dos trabalhos do “Grupo II”, que lida com “impactos, adaptação e vulnerabilidade”.

É comum a esquerda negligenciar esta temática. Mas isso é um grave erro. Entendemos que é central buscar respostas à questão da crise ecológica em geral (e da crise climática em particular); é crucial para os pobres, os trabalhadores do campo e da cidade, os indígenas, enfim, para os oprimidos e explorados no século XXI. Afinal, a luta por evitar um desfecho catastrófico para essa crise engendrada pelo capitalismo é a luta para salvaguardar as condições materiais para sobrevivência, com dignidade, do gênero humano.

As conclusões do IPCC são confiáveis?

Em grande medida, são. O papel do IPCC é fazer um levantamento, na literatura científica, do que há de mais atual e avançado em matéria de conhecimento na área do clima e de seus impactos. Seus relatórios são compêndios científicos de alta qualidade e de grande valia não somente para fins acadêmicos. Mais do que isso: ao contrário do mito que os negadores da mudança climática tentam difundir, tentando desqualificar a comunidade científica, nada têm de “alarmistas” ou “catastrofistas”. Pelo contrário, a linguagem é moderada, conservadora e tímida, diante da magnitude do problema que abordam.

Esses relatórios não deixam dúvida em relação à amplitude e profundidade das alterações que ora ocorrem no sistema climático terrestre, nem em relação às suas causas. O planeta está aquecendo, o gelo nas calotas polares e geleiras tem encolhido, os mares estão se elevando e se acidificando, eventos extremos (ondas de calor, enchentes, secas, furacões) têm se tornado mais frequentes e/ou se intensificado. São fatos. Assim como é um fato de que não existe outra causa plausível para esse aquecimento que não o excesso de gases de efeito estufa (isto é, que retêm calor) na atmosfera, principalmente o CO2 produzido pela queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), mas também metano, óxido nitroso e halocarbonetos (como os CFCs). Só a concentração do CO2 cresceu mais de 40% desde o período pré-industrial (quando girava em torno de 280 partes por milhão, ou ppm) até agora. Em um ou dois anos ultrapassará 400 ppm na média anual (o que em 2014 já acontecerá durante vários meses).

Também é consenso junto à comunidade da Ciência do Clima que uma temperatura média vários graus mais quente deverá agravar tanto esse quadro, que o clima da Terra deverá se mostrar bastante hostil (esse pode se tornar um caminho irreversível se o aquecimento global ultrapassar 2°C, esperado para CO2 acima de 450 ppm). Importante frisar que as projeções apresentadas pelo IPCC ou têm-se confirmado ou têm se mostrado subestimadas (a realidade da elevação do nível dos oceanos e especialmente a perda de gelo marinho no Ártico é muito mais grave do que se pensava anteriormente).

Desigualdade nas emissões. Desigualdade nos benefícios. Desigualdade nos impactos

"Todos os aspectos da segurança alimentar são potencialmente afetados pela mudança climática, incluindo acesso e utilização dos alimentos e estabilidade nos preços"; “projeta-se que a mudança climática ao longo do século XXI deva aumentar a imigração"; "a mudança climática pode aumentar indiretamente o risco de conflitos violentos na forma de guerra civil e violência entre grupos ao amplificar motivações bem documentadas desses conflitos como pobreza e choques econômicos"; "Ao longo do século XXI, projeta-se que os impactos das mudanças climáticas devam desacelerar o crescimento econômico, tornar a redução da pobreza mais difícil, erodir ainda mais a segurança alimentar e prolongar armadilhas de pobreza existentes e criar novas, particularmente em áreas urbanas e regiões tradicionais de ocorrência de fome".

Nesses termos, a parte do relatório do IPCC sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade identifica de forma muito clara, como em nenhum outro relatório anterior, a possível amplitude e profundidade dos impactos sociais, admitindo a real possibilidade de aprofundamento de problemas relativos à fome, abastecimento de água, mortes por eventos meteorológicos severos, migração, conflitos, etc.

O relatório reconhece que os impactos sobre a sociedade são uma conjunção dos fatores climáticos, com o quanto se está “exposto” e “vulnerável” a esses fatores. É óbvio que esses dois últimos aspectos têm a ver com a profunda desigualdade entre ricos e pobres, entre os países capitalistas centrais e a periferia.

Mas é também evidente que o relatório não vai até o fim em suas conclusões, dizendo apenas que "transformações nas ações e decisões econômicas, sociais, tecnológicas e políticas podem permitir caminhos resilientes com relação ao clima" (ou seja, com frases tão genéricas, não vai a lugar nenhum, efetivamente). Ora, mas que transformações são essas? Que caminhos são esses? Como podemos vencer a crise climática?

Além das desigualdades nos impactos, a mudança climática é uma questão de desigualdade, de classe, em sua raiz. A extração e venda de combustíveis fósseis se concentra nas mãos de um punhado de poucas empresas (7 das 11 maiores empresas do mundo são petroquímicas e estas somam faturamento anual que supera o PIB francês) e permitiu o crescimento da economia capitalista, a acumulação e a concentração em níveis inimagináveis.

A riqueza gerada a partir da geração de energia por fontes fósseis também beneficiou somente uma minoria de países (principalmente Europa e EUA) e, claro, especialmente uma minoria dentro deles. Esses países possuem condições bem melhores de adaptação aos graves problemas inevitavelmente advindos com o aquecimento do sistema climático. Os ricos, dentro deles, gozam de condições ainda muito melhores do que os pobres. E o fosso só tende a se ampliar entre as elites mundiais e a ampla massa de depauperados dos países da periferia do capitalismo, os povos tradicionais, os países da África e insulares, etc., num cenário com redução da disponibilidade de água doce, redução da produtividade agrícola, mais cheias, secas e incêndios florestais, aumento da erosão e inundações costeiras. Essa é uma realidade que contrasta radicalmente com as ilusões vendidas pelo “capitalismo verde” (duas palavras que não têm como andar juntas), que diz habitarmos “uma mesma nave”, analogia sem sentido a não ser que esta seja como o Titanic, no qual existiam portões que impediram os passageiros da terceira classe de terem acesso aos botes salva-vidas e em que boa parte da primeira classe escapa, com a orquestra tocando em meio ao naufrágio.

Finalmente, o acúmulo crescente de CO2 na atmosfera (ao lado da contaminação dos ecossistemas) é uma prova inequívoca do “desequilíbrio metabólico” entre a produção industrial de mercadorias e a capacidade dos ecossistemas naturais em processarem os rejeitos dessa produção.

No material publicado sobre as bases físicas da mudança no clima, o IPCC reconheceu que é necessário impor severos limites ao uso de combustíveis fósseis para evitar que o clima entre numa espiral extremamente perigosa e irreversível, com mudanças num nível ao qual não se é possível adaptar. Mas também não aponta realmente como fazer isso, numa condição em que a indústria de combustíveis fósseis não só já é proprietária de jazidas que, se queimadas, seriam suficientes para ultrapassar em muito a barreira dos 2°C de aquecimento global (ou 450 ppm de CO2) como continua loucamente inaugurando novas fontes de exploração, seja a camada do pré-sal no Brasil, o Ártico, as areias betuminosas de Alberta ou o topo de montanhas contendo carvão na China.

Que política é necessário desenvolver diante das mudanças climáticas?

É evidente que a crise climática não tem como ser resolvida meramente nos marcos de “soluções de mercado”, longe disso.

O chamado “mercado de carbono” em que o “direito a emitir/poluir” é tratado como mercadoria se mostra como uma farsa total. Nem faz sentido, dada a necessária restrição de grande escala e acelerada nas emissões, comercializar um “direito” que não existe. É uma manobra para os grandes capitalistas nos países centrais se beneficiarem do tratamento diferenciado a países centrais e periféricos (pois, em qualquer acordo minimamente justos, as restrições às emissões de CO2 nos primeiros terá de ser bem maior do que nos segundos).

Na política energética, também não é possível apostar em soluções falsas como a continuidade da construção de grandes barragens (que além de levarem a emissões de CO2 e metano por conta da decomposição de material orgânico na área alagada, produzem uma série de outros impactos sócio-ambientais deletérios) ou muito menos na energia nuclear (que não é renovável, produz rejeitos que permanecem radioativos e perigosos por períodos muito longos, apresentam risco de acidentes, como bem mostrou Fukushima recentemente, e frequentemente acompanham a tentação dos fins bélicos).

Também não basta introduzir fontes renováveis (eólica, solar) na matriz energética. Hoje em dia, na maior parte dos casos, as mesmas têm sido simplesmente acrescentadas à matriz, como parte da política de “crescimento eterno” do capital, ao invés de substituir termelétricas fósseis (ou nucleares). Além disso, é comum que mesmo estas sigam sendo adotadas na lógica do capital, estabelecendo conflitos com populações tradicionais e/ou prejudicando ecossistemas costeiros, como na zona litorânea do Nordeste.

Para uma estratégia de saída bem sucedida para a crise climática, é preciso ir além de fontes renováveis aproveitadas em unidades de média e grande porte (hidrelétricas já instaladas, energia das ondas, das marés, geotérmica, eólica e solar). Mesmo adotando medidas para reduzir seus impactos, estas estão muitas vezes distantes do local de consumo, com perdas nas linhas de transmissão, e outros problemas. Daí, que se aposte em um sistema descentralizado, em que as cidades gerem parcela significativa da energia que consomem, com um amplo aproveitamento da energia solar por meio da geração doméstica e de pequena escala (uma associação de produtores/consumidores de energia, ou um “comunismo solar”).

Na política de transportes, a mera substituição dos veículos a diesel, gasolina, etc., por outros movidos a agrocombustíveis ou mesmo carros elétricos, está longe de ser uma miragem de uma solução decente. O etanol do milho ou da cana assim como o biodiesel em geral vêm da monocultura e agronegócio, com fortes ataques à segurança alimentar, invasão de pequenas propriedades e terras indígenas e de comunidades tradicionais, e uso massivo de agrotóxicos e fertilizantes.

Igualmente, se a eletricidade continuar a ser gerada predominantemente por térmicas a carvão (como é o caso em vários países e para onde o Brasil se voltou recentemente) e considerando outros aspectos relativos à sua produção (não só as emissões de CO2 na fabricação, mas também os impactos de mineração e poluição) bem como o inferno da imobilidade urbana provocada por uma frota de carros que cresce sem parar, percebe-se que os benefícios do carro elétrico são muito limitados. A perspectiva é a de romper por completo com o paradigma do transporte individual e, casando com a luta pelo passe livre e em defesa de mobilidade e qualidade de vida no meio urbano, promover um giro radical para uma política de transporte público, gratuito, de alta qualidade, não poluente e harmonizado com outros modais, voltado para atender os interesses da maioria e capaz de drasticamente cortar emissões.

É evidente que a produção por setores como a indústria de combustíveis fósseis, a indústria automobilística (para não falar de setores como a indústria de armamentos), que contribuem para o mito do “crescimento do PIB”, falsamente identificado com aumento de riqueza e melhoria da qualidade de vida em geral (a riqueza só é acumulada por um punhado cada vez menor de capitalistas), precisa ser inteiramente reorganizada. Isto pode ser feito de modo para que esses segmentos se voltem para o atendimento das necessidades de reestruturação da infraestrutura energética e de transportes. Além disso, pode-se e deve-se mostrar aos trabalhadores desses setores que a defesa do seu emprego e segurança reside, na verdade, numa profunda mudança no que é produzido e como, junto com a mudança da propriedade e gestão privada, vertical, autoritária, capitalista pela tomada de decisão coletiva, comum, radicalmente democrática.

Dado que a maioria das reservas fósseis precisa permanecer intocada, uma medida a ser tomada de imediato é a expropriação de todas as companhias de combustíveis fósseis e a sua colocação sob gestão democrática da sociedade. Em paralelo, é preciso que a produção no campo seja deslocada do agronegócio para a agricultura familiar, com forte incentivo à agricultura livre de fertilizantes químicos (grande fonte de emissão de óxido nitroso, o terceiro gás de efeito estufa em importância, atrás do CO2 e do metano) e o desmatamento (ainda individualmente a fonte principal de emissões no Brasil) seja não apenas zerado, mas revertido a partir da recuperação de áreas degradadas pelo latifúndio.

A crise ecológica (da qual a crise climática é a faceta mais global) é uma manifestação de uma etapa de desenvolvimento capitalista em que este avança sobre as últimas fronteiras possíveis de ampliação no âmbito do planeta Terra, ultrapassando os limites naturais e predando sem freios o ambiente que sustenta a sociedade humana ao mesmo tempo em que se torna mais violento, ao investir cada vez mais claramente contra os “obstáculos ao desenvolvimento”  (sejam estes os povos indígenas que “atrapalham” a expansão do agronegócio ou a mineração, ou as populações pobres localizadas nos terrenos pretendidos pela especulação imobiliária, nas cidades).

A parte da esquerda é cara a tese de que, para que se promovam mudanças substanciais na sociedade, não basta ocupar as posições no Estado burguês (burocrático, hermético à participação popular, com eleições dominadas pelo poderio econômico, corrupto, enfim estruturalmente constituído de modo a servir as classes dominantes). Mas para boa parte dos que reivindicam essa posição política, a percepção de que o aparelho de Estado não é neutro e de que não se pode simplesmente coloca-lo para funcionar “a serviço dos trabalhadores” não é estendida à base produtiva da sociedade. Para esse campo, a passagem a uma nova organização social se dá essencialmente pela via da simples troca da propriedade sobre os meios de produção vigente, colocando-o para “produzir a serviço dos trabalhadores”, como se fossem neutros as tecnologias, os métodos de organização do trabalho, as opções de fontes energéticas, etc.

Na realidade, nada mais falso. Além das contradições mais óbvias (a indústria armamentista, por exemplo), nem toda produção ora reinante no capitalismo deve ser mantida, nem qualitativa (o que produzir) nem quantitativamente (o quanto produzir). Numa perspectiva de longo prazo, não podem ser produzidos bens que levem a um desequilíbrio ambiental e climático como o que ora se tem e que, em se agravando, podem colocar em xeque a própria permanência de nossa espécie. É preciso deixar claro que combustíveis fósseis e energia nuclear não devem ter lugar numa nova sociedade.

A lógica de superprodução de bens supérfluos e da obsolescência programada também tem de ser superada e o próprio volume de produção de bens materiais precisa respeitar os limites impostos pelos fluxos de matéria e energia no sistema Terra, que implica na reciclagem dos rejeitos do processo produtivo e reposição dos recursos materiais e energéticos disponíveis para que este se dê de forma sustentada. A mera substituição de relações de propriedade sem avançar nesse conjunto de questões (e também nas relações humanas para além do terreno do trabalho e produção, onde teimam em residir preconceitos, opressões e microfascimos), diante da profundidade das transformações requeridas, aparece mais como um verniz de reforma, do que de verdadeira revolução social.

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