Direita e Esquerda: das revoluções liberais ao capitalismo globalizado

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15 Junho 2013

Nos idos de 1789, a França estava em polvorosa com a ebulição das lutas sociais da Revolução Francesa. Se você se lembra um pouco das aulas de História, deve saber que esse foi o nome dado ao conjunto de movimentos capitaneados pela ascendente burguesia comercial - aliada a setores populares - que pôs fim, naquele país, ao absolutismo e aos privilégios das classes que então ditavam os rumos do país, notadamente a nobreza e o clero. O período deu origem à primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, difundindo paulatinamente para a Europa e para o resto do mundo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

A reportagem é de André Antunes, publicada no portal da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), 12-06-2013.

A Revolução Francesa deu origem também a definições que usamos até hoje para designar posicionamentos no âmbito do espectro político, como as noções de esquerda e de direita. Mas será que essas noções são válidas ainda hoje? Pois é, como diria aquele personagem de um famoso programa humorístico: há controvérsias... Que o diga Marina Silva, que em pronunciamento feito durante o lançamento de seu novo partido, em fevereiro deste ano, afirmou que ele não será "nem de direita nem de esquerda", e sim "à frente". E ela não está sozinha. Pelo contrário, com a afirmação, Marina passou a fazer parte de um vasto rol de políticos contemporâneos, como o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab, que defendem que falar em esquerda e direita na política atual perdeu o sentido ou tornou-se anacrônico.

História e tensionamentos

A classificação das correntes políticas e ideológicas entre direita e esquerda tem origem na posição que cada setor ocupava na Assembleia Nacional da Revolução Francesa. Os setores do chamado Terceiro Estado - formado pela burguesia, baixo clero, trabalhadores urbanos e camponeses -, que clamavam por mudanças mais profundas na sociedade francesa, sentavam-se à esquerda, enquanto o Primeiro e o Segundo Estados, que representavam a nobreza e o clero respectivamente, e defendiam a manutenção de seus privilégios, sentavam-se à direita.

A historiadora Virginia Fontes, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que o significado dessas noções passou por diversas inflexões nesses mais de dois séculos desde a Revolução Francesa. "No século 19 as noções de direita e esquerda passam a recobrir de maneira mais incisiva essa marca que vão conservar até hoje, dos que defendem o capitalismo e os que o contestam. Do ascenso da luta operária até a Revolução Russa de 1917, e daí ao longo de praticamente todo o século 20, a noção de esquerda incorporou um elemento anticapitalista forte", afirma. No início do século 20, diz ela, cristaliza-se uma cisão no interior da própria esquerda, entre os que defendiam a ruptura com o capitalismo por meio de uma revolução e setores que acreditavam que o capitalismo poderia ser melhorado, ou reformado, de modo a oferecer melhores condições de vidas aos trabalhadores. "Esse foi o papel cumprido classicamente pela socialdemocracia na Europa, ainda que no início do século 20 tivesse como objetivo o socialismo", explica.

A noção de direita também ganhou novos contornos, especialmente com a eclosão das revoluções comunistas do século passado notadamente, na Rússia, na China e em Cuba - e a emergência da Guerra Fria, como explica Virginia Fontes: "Nela constituiu-se uma contrarrevolução preventiva com um teor nitidamente anticomunista que endureceu um pouco essa categoria, à medida que a direita passou a defender um capitalismo mais duro, inclusive com condições de intervenção política para esmagar a democracia se houvesse risco de ela conduzir para uma situação socializante ou considerada como tal. Foi o que ocorreu com o golpe de Estado de 1964 no Brasil, por exemplo".

Não por acaso, o período imediatamente anterior à tomada do poder pelos militares, durante o governo João Goulart, foi, para o professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Caio Navarro de Toledo, o momento da história republicana do Brasil em que o embate entre projetos políticos de esquerda e de direita se mostrou de maneira mais clara. "Havia um contexto político que permitia que se reivindicasse maior participação popular: os sargentos passaram a reivindicar o direito de voto, as Ligas Camponesas invadiram a cena fazendo comícios, os estudantes, através da UNE, se mobilizaram para defender a realização das reformas sociais, etc. Na medida em que se acenou com transformações sociais mais amplas, que poderiam permitir até romper a ordem capitalista, a direita se impôs e bloqueou esse caminho", explica.

Fim das ideologias?

O fim da Guerra Fria, com a derrocada da experiência do chamado ‘socialismo real' no Leste Europeu e o fim da divisão do mundo entre capitalistas e socialistas, que tem como maior símbolo a queda do Muro de Berlim, em 1989, foi outro marco importante na história do embate entre direita e esquerda. "Ali se passou a proclamar que o capitalismo hoje hegemônico pôs fim às disputas ideológicas que dividiram os homens na sociedade contemporânea. E então, esquerda e direita não fariam mais sentido", diz Caio Navarro de Toledo, concluindo: "Mas no fundo a afirmação da inexistência de disputas ideológicas não deixa de implicar uma determinada posição ideológica. Afirmar que não existe esquerda nem direita é dizer que o capitalismo democrático e liberal se consolidou na história e de que não há alternativa. Significa dizer que fora da ordem capitalista há apenas ilusões".

De acordo com Eurelino Coelho, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), o fim da União Soviética foi um acontecimento emblemático, sobretudo pela maneira como foi interpretado. "Desde então, não foram poucos os intelectuais e militantes que afirmaram isso que Marina Silva está dizendo agora, abandonando suas filiações anteriores a partidos e organizações de esquerda, em alguns casos organizações de uma esquerda agudamente anticapitalista", afirma, complementando em seguida: "A esquerda que afirmava a necessidade do protagonismo político independente da classe trabalhadora na perspectiva de construir um poder de tipo novo na sociedade sofreu um impacto revisionista ou liquidacionista. Vários partidos comunistas no mundo simplesmente fecharam as portas".

Mas e a direita, como se insere nesse processo? Segundo Virginia Fontes, o final da Guerra Fria acelerou um movimento que já estava em curso, que é a recuperação, pelos defensores do capitalismo, de bandeiras e termos clássicos da esquerda como sendo bandeiras do capital. "A tendência da direita, que considera que não há cisão na vida social, somente gente querendo atrapalhar, é tentar apagar os traços dessa cisão dizendo que não existe mais esquerda nem direita, porque todo mundo usa a mesma linguagem. O fim da URSS e o redirecionamento da China impulsionaram setores conservadores a dizer que não há mais direita nem esquerda, permitindo a eles de certa forma recuperar o que eram os elementos dos adversários que não ofereciam nenhum perigo para a manutenção da ordem estabelecida ou que permitiam enfrentar as reivindicações frente a essa ordem, convertendo numa espécie de adequação, cooperação. Não é à toa que não se chama mais empregado de trabalhador, é colaborador. Apaga a cisão: não tem mais capital e trabalho, aqui todo mundo é colaborador", diz.

No Brasil, como aponta Eurelino Coelho, o final da Guerra Fria acelerou um processo que ele chama de "reviravolta teórica e programática" da esquerda, com a renúncia, por parte de muitos militantes, de discursos e posições anticapitalistas. Embora o fim da URSS tenha sido visto como causa dessa reviravolta, Eurelino aponta que ela foi movida por outros fatores. "Eu denomino esses fatores de transformismo, que é um conceito que apanhei de Gramsci. Através dele podemos entender que esses sujeitos dessa esquerda que estou estudando no Brasil realizam um deslocamento não apenas do plano teórico conceitual filosófico, mas também um deslocamento na experiência, migrando de um polo para outro na luta de classes. Para pessoas como Marina Silva, dessa esquerda que se transforma, a vida material mudou. Há indicadores bastante sólidos de que essas pessoas passaram por um fenômeno que sociologicamente se pode chamar de burocratização, ou seja, deixaram de ser militantes de primeira geração, nas oposições sindicais, passando a ser detentores de mandatos e cargos de assessoria", aponta Eurelino.

Para ele, o atual cenário político brasileiro encontra-se marcado pelo fenômeno do transformismo. "Grande parte das organizações oriundas das lutas populares dos anos 1980 deixou de funcionar na lógica para a qual foi criada e passa de um jeito ou de outro a adotar uma perspectiva que rompe com a independência da classe subalterna e com o espírito de cisão. Os discursos são agora de uma sociedade para todos. As estratégias governamentais, alianças partidárias e os projetos políticos agora envolvem a colaboração de classes, e esses dirigentes que a classe subalterna construiu na luta por sua própria autonomia nos anos 1980, se tornaram dirigentes do capital, são festejados e reconhecidos governantes dos interesses do capital nos anos 1990 e 2000", lamenta.

Capitalismo com hegemonia

Virgínia Fontes lembra que se a relutância em se assumir de esquerda é um fenômeno relativamente novo no Brasil, do outro lado esse é um fenômeno antigo, já que são poucos os políticos e forças sociais que se assumem como de direita. No entanto, diz ela, é fácil definir no espectro social e político brasileiro ao longo de todo o século 20 essa posição de esquerda e de direita. "São absolutamente impressionantes as falas antipopulares, a truculência das direitas. Quer sejam mais conservadoras, quer sejam mais pró-expansão do capitalismo e ‘modernas', elas compartilham uma truculência muito peculiar que é atribuída por muitos autores ao caráter da expansão de uma burguesia periférica ou dependente. Porém, ao longo do século 20, essa burguesia precisou apelar às formas eleitorais, dependendo de voto". E completa: "A violência continua funcionando, mas não é suficiente. Então se usam outras armas, financia-se uma série de entidades populares e organizações através da responsabilidade social e outras iniciativas, cujo alvo é fundamentalmente aceitar de maneira parcial a reivindicação, retirando o perfil anticapitalista. É uma forma nova de adequação das massas populares para o caso brasileiro. Significa capitalismo com hegemonia; é diferente de capitalismo em crise de hegemonia, cuja contenção das massas se dá só pela violência". Essa nova realidade, diz a historiadora, torna confuso o espectro político, levando muitas pessoas a achar que já não faz mais sentido falar em esquerda e direita.

Critérios de distinção

Mas faz mesmo sentido falar em esquerda e direita? O filósofo italiano Norberto Bobbio dedicou o livro ‘Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política', publicado em 1994, a essa questão. Nessa obra, procurou elencar critérios pelos quais seria possível definir quem é de esquerda e quem é de direita em um dado terreno de luta política. Segundo ele, que se considerava um liberal de esquerda, essa distinção existe e tem como principal critério a atitude diante da ideia de igualdade: enquanto o partidário da esquerda acredita que os homens são mais iguais do que desiguais e que a maioria das desigualdades são sociais e, portanto, elimináveis, o partidário da direita crê, ao contrário, que os homens são mais desiguais do que iguais, e que a maioria das desigualdades é natural e ineliminável. Para o professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Assis Brandão, o critério proposto por Bobbio pode ser utilizado ainda hoje no Brasil, embora haja, segundo ele, uma "relativa indistinção" entre partidos de esquerda e de direita. "Direita e esquerda se enfrentam no Brasil atual no âmbito de um número variado de questões, todas elas expondo como pano de fundo a dimensão da igualdade. Dois campos fundamentais em que, a meu ver, isso se expressa de maneira evidente são: a amplitude das políticas públicas e a sua relação com a carga tributária e a política democrática. A esquerda enfatiza a necessidade de extensão das políticas sociais e a necessidade de uma democracia de alta intensidade, enquanto a direita se queixa da amplitude da carga tributária, se satisfaz com a ‘democracia realmente existente' e questiona a natureza da participação nos espaços em que ela se configura. O pressuposto é que mais democracia implica mais igualdade", analisa Assis.

Caio Navarro de Toledo vai além: "A ação política da direita nunca privilegia a realização de reformas sociais que objetivem uma sociedade mais igualitária e pouco se empenha para a expansão das liberdades políticas na busca de uma democracia política com ampla participação popular. Ela não deixa de afirmar a necessidade de reformas sociais, mas o que a distingue das esquerdas é que a liberdade política defendida pelas direitas é uma liberdade restrita, é a democracia no limite formal que não aceita a igualdade e o fim das distinções de classe. Para os políticos e ideó-logos da direita, a propriedade privada é declarada sagrada e inviolável; eles se opõem radicalmente à ampliação dos direitos sociais e à realização de mudanças socioeconômicas, bem como repudiam a ativa participação dos movimentos sociais".

Para Virginia Fontes, a atualidade da distinção entre esquerda e direita está fundamentada na luta de classes. "Quando a gente acha que não existe mais direita e esquerda, o risco é não enxergar a cisão que está na vida social, que opõe trabalho e capital. Vivemos numa sociedade capitalista porque massas são expropriadas e reduzidas à força de trabalho. O núcleo da cisão é a que sustenta o capital", explica. Eurelino Coelho complementa: "Claro, o capitalismo mudou, mas isso é da dinâmica do capitalismo, ele se reveste de novas formas, constrói práticas novas. Só que o referente histórico para as políticas que chamávamos de direita e esquerda continuam postos. De modo algum acho que foram cancelados. Do meu ponto de vista, vivemos muito mais hoje do que no passado numa sociedade marcada pela exploração do capital. Precisamos mais do que nunca de uma política que enfrente essas questões".

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