11 Dezembro 2021
"A liberdade individual é invocada como absoluta, ao modo do egoísmo individualista, como se virtude fosse, como se direito fosse", escreve Paulo César Carbonari, Doutor em filosofia (Unisinos), membro voluntário do NEP/CEAM/UnB, membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil).
“Às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade” é uma das afirmações do Ministro da Saúde em Entrevista Coletiva [1] na qual apresentou a posição do governo diante da recomendação das autoridades de vigilância sanitária para adoção de passaporte vacinal para ingresso de estrangeiros no país. O fez na antevéspera do Dia Mundial dos Direitos Humanos. Justificou-se invocando a necessidade de proteção dos direitos individuais, das liberdades individuais.
Posições deste tipo vêm se repetindo. A liberdade individual é invocada como absoluta, ao modo do egoísmo individualista, como se virtude fosse, como se direito fosse. Há que se diferenciar entre liberdade individual como direito e condição para o exercício dos direitos, e sua absolutização e, inclusive, da relativização de direitos tão fundamentais quanto ela, sacrificados em nome dela. Os direitos, todos os direitos, são interdependentes e indivisíveis, diz a Declaração e Programa de Ação da II Conferência Mundial dos Direitos Humanos (Viena, 1993) [2]. E, se assim, impossível colocar a uns direitos em patamar distinto dos outros. A rigor, esta é mais uma das estratégias deste governo que, para sustentar seu negacionismo, adere a visão ultraconservadora que destrói os direitos humanos ao tempo em que os invoca, pois, falar assim, é usar os direitos humanos para relativizar direitos humanos, destruindo sua unidade.
O Brasil não está em guerra e nem o Ministro da Saúde está falando às tropas que se preparam para algum combate. Este tipo de chamada lembra aquela das falanges franquistas na Guerra Civil espanhola. Ouvidos mais apurados devem ter escutados sussurros na sala onde se dava a Coletiva com o ressoar do: “Abajo la inteligencia, Viva la muerte!”, como nos idos de 12 de outubro de 1936, nos salões da Universidade de Salamanca, diante do reitor Unamuno, e na boca do oficial franquista José Milan Astray. Teria sido uma nefasta coincidência. Em que circunstância (“às vezes”) seria desejável “perder a vida”? Nem na guerra – ou não se discursa que todo o maior esforço de guerra é sempre perder o menor número possível de vidas? A fala do Ministro não caberia nem para animar a uma guerra.
Outro absurdo dito na Coletiva foi que defender a vacinação equivaleria a defender uma prática desigual e discriminatória: “não se pode discriminar as pessoas entre vacinadas e não vacinadas para a partir daí impor restrições”. Desigual e discriminatória seria se houvesse distinção por alguma razão de gênero, raça/etnia, geração. Não é o caso! Aliás, pelo contrário, as Nações Unidas, em Resolução sobre o tema, “insta encarecidamente a todos os Estados a que se abstenham de adotar medidas econômicas, financeiras ou comerciais que possam afetar negativamente o acesso equitativo, aceitável, justo, oportuno e universal às vacinas contra a Covid-19, em particular nos países em desenvolvimento” (tradução livre) [3]. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) também emitiu uma Resolução sobre vacinas contra a Covid-19. Talvez seja oportuno sugerir sua leitura e seu seguimento pelas autoridades brasileiras, já que estão submetidas ao direito internacional dos direitos humanos por força da adesão aos Tratados Internacionais dos Direitos Humanos.
Na Resolução n. 1/2021 [4], a CIDH/OEA diz que “é imperativo que se promova a distribuição justa e equitativa das vacinas e, em particular, torná-las acessíveis a um preço razoável para os países de renda média e baixa. A equidade deve ser o componente-chave não só entre países, mas também dentro dos países para poder pôr fim à fase aguda da pandemia”. Diz que o objetivo da referida Resolução “é contribuir para que os Estados assumam o alcance de suas obrigações internacionais no contexto das decisões sobre vacinação, a fim de garantir os direitos humanos, especialmente o direito à saúde e à vida. Para tanto, apresenta recomendações pontuais baseadas nos princípios de igualdade e não discriminação, dignidade humana, consentimento informado, transparência, acesso à informação, cooperação e solidariedade internacional”. Também afirma que “de acordo com o princípio de igualdade e não discriminação, o acesso universal e equitativo às vacinas disponíveis constitui uma obrigação de imediato cumprimento por parte dos Estados, motivo pelo qual as vacinas, tecnologias e tratamentos desenvolvidos para enfrentar a Covid-19 devem ser considerados como bens de saúde pública, de livre acesso para todas as pessoas”. No mesma Resolução há seis recomendações a respeito do “acesso a vacinas, bens e serviços de saúde em atenção ao princípio de igualdade e não discriminação”; quatro a respeito da “distribuição e priorização de doses de vacinas”; cinco a respeito da “difusão ativa de informação adequada e suficiente sobre as vacinas e combate à desinformação”; quatro a respeito do “direito ao consentimento prévio, livre e informado”; quatro a respeito do “direito de acesso à informação, transparência e combate à corrupção”; oito tratando de “empresas e direitos humanos com relação às vacinas contra a Covid-19”; e quatro sobre “cooperação internacional”.
O Ministro também disse que exigir um passaporte criaria: “mais discórdia do que consenso”. Incrível a postura seletiva: para certos temas haveria que ter consenso, para outros melhor que se espalhe a discórdia. Aliás, o que tem feito o senhor Presidente senão que espalhar discórdia, notícias falsas, sugerir medicamentos ineficazes, afrontar as autoridades sanitárias, contra todos os consensos, como o de que é preciso usar máscara, e que o vacinar-se é uma das mais profícuas medidas de proteção de si e, mais do que de si, também dos/as outros/as, para reduzir a força de transmissão do vírus. Um governo que o tempo todo se faz espalhando discórdia, agora quer consenso? Nem cabe consenso para o caso, visto que não é um tema de escrutínio da soberania popular, pois não está à disposição para consulta pública, para o voto, decidir se certas medidas sanitárias devem ser tomadas ou não. Como já alertou o grande filósofo J. Habermas, há questões que não podem estar à mercê de maiorias de ocasião. E, ainda que fossem submetidas à vontade popular, posições contrárias à vacinação, por exemplo, certamente perderiam por maiorias acachapantes, vide o alto percentual de brasileiras e brasileiros que compareceram aos locais de vacinação e voluntariamente a ela se submeteram. Mais uma vez o Ministro confunde e desqualifica o debate democrático e os direitos humanos.
A sociedade brasileira não suporta tantas violações de direitos humanos, por ação e omissão do governo federal no enfrentamento da pandemia. As muitas denúncias [5] já feitas aguardam procedimentos de seguimento e responsabilização. É isso que se espera neste momento: por justiça às vítimas. No dia mundial dos direitos humanos nos colocamos de pé para exigir direitos e para denunciar a todos e todas que usam dos direitos humanos para interesses contrários aos direitos humanos, para atacar e destruir os direitos humanos. A dignidade não está disponível. Viva a vida! Viva os direitos humanos, já!
[1] Realizada em 08/12/2021. Ver aqui.
[2] Ver aqui.
[3] Resolução A/HRC/46/L.25/Rev.1 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH/ONU).
[4] Ver aqui.
[5] Ver documentos aqui.
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Vida ou liberdade: sério?! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU