Como a desigualdade e a injustiça são produzidas e reproduzidas na sociedade contemporânea? Para a antropóloga e historiadora norte-americana Ann Stoler, isso não poderia acontecer sem o incentivo de grandes nações capitalistas e seus sistemas coloniais. Professora da New School for Social Research, de Nova York (Estados Unidos), Stoler há mais de quatro décadas pesquisa temas como imperialismo, gênero, governança colonial, epistemológicas raciais e políticas do conhecimento.
No último mês de outubro, a pesquisadora esteve na Unicamp participando do 47 ° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), no qual proferiu a palestra “Shatterzones of Inequalities” (zonas de conflitos de desigualdades, em tradução livre). Na ocasião, Stoler conversou com o Jornal da Unicamp sobre sua trajetória de pesquisa, democracia e o imperialismo hoje sustentado por grandes potências globais.
Autoria da entrevista é de Paula Penedo, fotos de Felipe Bezerra e edição de imagem de Paulo Cavalheri e Alex Calixto. Entrevista publicada por Jornal da Unicamp, Campinas, 08 a 26 de nov, 2023.
Professora da New School for Social Research, de Nova York, Ann Stoler há mais de quatro décadas pesquisa temas como imperialismo, gênero, governança colonial, epistemológicas raciais e políticas do conhecimento. (Fotos: Felipe Bezerra)
Como a senhora se interessou pelos temas de colonialismo e democracia?
Uma palavra muito influente para mim é coação [duress], que se refere a suportar o peso de ser oprimido. Sabemos que a etimologia da coação é durée, resistência, mas também é algo que perdura. E é isso o que o Estado de Israel tem feito na Palestina, mas também é o que o colonialismo faz. Meu trabalho começou tentando entender o que faz com que a desigualdade não apenas exista, mas seja produzida e reproduzida.
Meu primeiro trabalho foi em Java [Indonésia], estudando a maneira como mulheres sem terra estavam perdendo ainda mais trabalho devido à revolução verde trazida pelos Estados Unidos. Grande parte do que estávamos observando era o poder dos Estados Unidos se descontrolando, mas não eram apenas os norte-americanos. Eram a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, Portugal...
Eu fiz esse primeiro trabalho, mas percebi que não estava perto o suficiente do “olho do furacão”, que é o capitalismo. Então eu fui trabalhar nas grandes multinacionais de borracha e de óleo de palma, viver com os trabalhadores e tentar entender como era a vida deles. Na época, compreendi que o gênero formava uma parte crucial nesse sistema, mas não era apenas o gênero. Era o fato de esses trabalhadores serem expulsos do local onde estavam, serem deslocados. Eles estavam longe de suas famílias, na periferia das plantations e sem apoio.
Trata-se de uma velha tática: espoliar as pessoas, confiná-las, colocá-las em algum lugar onde não têm apoio. É nisso que se baseia a plantation e é nisso que se baseia o colonialismo. Basicamente, foi nisso que trabalhei por cerca de 40 anos. Tentei entender como esses sistemas de desigualdade conseguem se sustentar.
E quais foram as suas conclusões sobre a sustentação desses sistemas de desigualdade?
Uma enorme quantidade de pessoas se tornou fabulosamente rica nesses sistemas e um exército inteiro foi mobilizado em torno disso. Michel Foucault disse que tudo é justificado para que a sociedade seja defendida, inclusive matar. Segurança! Segurança! Segurança! Esse é o sistema imperial, esse é o sistema colonial, é o que Israel está dizendo agora. “Devemos nos defender e devemos matar, aniquilar o máximo de palestinos que pudermos.” Esse é provavelmente um dos princípios mais duradouros do poder.
Portanto, há um grande investimento em acumulação por meio de espoliação, que é o termo que David Harvey usa. Outro princípio, citado por Rosa Luxemburgo há 150 anos, é que você só pode continuar acumulando caso se espalhe para mais e mais lugares, lugares nos quais o liberalismo será mais barato e mais explorável. Essa é a única maneira pela qual o capitalismo pode sobreviver, e eu argumentaria ser essa a única maneira pela qual a democracia pode sobreviver.
Seguindo esse raciocínio, não é possível uma democracia sem desigualdade?
Talvez existam lugares, tenho certeza, mas os mais poderosos e que se autodenominam cheios de liberté, egalité, fraternité [liberdade, igualdade e fraternidade, em francês] são realmente os mais perniciosos. E nesses locais as pessoas estão muito vulneráveis porque há uma espécie de noção utópica de que, se eu melhorar um pouco, vou receber essas recompensas. Só que tão poucas pessoas têm acesso a essas recompensas... E o racismo está na base disso. O racismo não é algo que se possa simplesmente eliminar e a democracia ficará bem. Eu argumentaria basicamente que existe um contrato da democracia com a desigualdade.
E como seria um sistema alternativo?
Uma revolução mundial! [risos] Um mundo virado de cabeça para baixo. Um governo que limite o máximo possível a riqueza que uma pessoa pode acumular. Talvez US$ 5 milhões, e todo o resto será distribuído. Não temos leis, não temos um único lugar que determine um limite. Por que não pode ser US$ 10 milhões, US$ 5 milhões, em vez de US$ 1 bilhão, US$ 2 bilhões, US$ 3 bilhões? Para mim, isso é obsceno, mas os governos são cúmplices do capitalismo, em absolutamente todos os lugares.
Hoje é um dia deprimente. Sabemos que, a cada minuto, crianças e bebês estão morrendo [na Palestina], hoje, agora. Não estou tentando ser dramática, mas acho que, coletivamente, precisamos encontrar alguma maneira de interromper essa insanidade. Deve haver algum tipo de respeito mínimo pelo ser humano, mas é assim que as coisas estão se desenrolando agora. Há aqueles considerados subumanos.
A senhora defende que Israel é um estado colonialista?
É a epítome do colonialismo democrático. Eles acreditam que têm aquela terra e que têm direito a ela por causa do Holocausto, mas não se lida com sua própria dor causando dor aos outros, certo? [Na Faixa de Gaza] não há eletricidade agora, as UTIs [unidades de tratamento intensivo] estão desligadas, não há comida. Israel é considerado a democracia do Oriente Médio. Quem poderia descrever Israel, desde o início, em 1947, com o Nakba [êxodo palestino], como uma democracia? Com base em quais possíveis argumentos você poderia descrevê-lo como uma democracia? E as grandes potências são cúmplices em transformar Israel em uma democracia.
Eu dei aula em uma prisão de segurança máxima em Nova York ao mesmo tempo em que estava dando aula na Palestina e, para mim, foi simplesmente extraordinário lidar com essas duas populações realmente maravilhosas. Rob Nixon chamou de “violência lenta” essa violência que destrói o sujeito muito vagarosamente, cujo peso é sentido ao longo do tempo.
Essas são populações semelhantes no que diz respeito à dor que sofrem?
De maneiras diferentes. Quero dizer, as pessoas chamam o que ocorre na Palestina de prisão. Não é que as pessoas estejam sempre em desespero. São pessoas incríveis, vivendo em comunidades, cuidando de suas famílias, fazendo o que podem dentro desse espaço, mas ainda estão sendo destruídas, suas crianças ainda não podem ir para boas escolas, ainda não podem atravessar a fronteira, ainda têm que gastar sete horas para chegar a lugares que os israelenses levam uma hora para alcançar, e isso porque as estradas são segregadas. É como o Apartheid na África do Sul. Toda a geografia é construída dessa maneira e você pode argumentar o mesmo no caso dos Estados Unidos.
Em seus livros, as palavras “colonial” e “ imperial” são muito usadas. O que a senhora quer dizer com cada uma dessas categorias?
Ao longo dos anos tenho mudado minha abordagem para enfatizar que a formação imperial tem dois aspectos: democracia e colonialismo. E agora, mais do que nunca, eu compreendo o problema dessa forma. O colonialismo situa-se em um lugar. Já as formações imperiais são estruturas de organização que garantem rotas comerciais, garantem o acesso à terra, garantem quais mercadorias estão se movendo e para onde, permitem o colonialismo, permitem que a democracia se beneficie.
Quando uso a palavra democracia, é disso que estou falando. Estou falando dos Países Baixos, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Bélgica, de um conjunto europeu inteiro, uma rede de formações imperiais, de impérios do capitalismo crescendo juntos.
Nesse contexto, a preferência por termos como “estudos coloniais” ou “(pós-)coloniais” é uma forma de reconhecer que o colonialismo ainda existe?
Eu nunca uso a palavra colonialismo, digo que existem condições coloniais, relações coloniais. E também não digo que tudo é causado pelo colonialismo. Argumento que há um vocábulo específico que considero muito pouco produtivo, a “descolonização”. Tudo é atribuído ao colonialismo, absolutamente tudo, desde o chão até a escola, até a universidade, até as bibliotecas públicas. Acredito que isso está desviando a atenção da desigualdade que enfrentamos.
Ser “decolonial” faz com que todos se sintam bem por serem políticos, mas por que as pessoas não estão olhando para os termos exatos? Não para aquilo que é necessariamente colonial, mas para aquilo que, na verdade, faz parte do liberalismo e da democracia em si e de sua articulação? Por isso, me incomoda que as pessoas usem a descolonização sem terem ideia do que é o colonialismo. Nunca o estudaram, não se importam em estudar. Eu digo nomeie, mas não coloque um guarda-chuvas em tudo e chame isso de descolonização!
A senhora também estudou como as condições coloniais controlam a sexualidade. Como esse tipo de poder é exercido?
Acho que a única coisa que posso dizer é que não se pode falar em colonialismo sem falar sobre sexualidade, classe e raça, e acho que o desejo em falar de interseccionalidade não reconhece que esses três elementos já vêm sendo articulados, compreendidos e escritos há cerca de 50 anos. Estamos sempre construindo e não reconhecer aquilo em que nos baseamos é algo que não permito que meus alunos façam. Se você está usando algo ou uma ideia de outrem, explique isso em sua nota de rodapé: “Estou tentando trabalhar com o conceito de [Jacques] Derrida, de Angela Davis”. É uma questão de humildade e honestidade intelectual diante da história de pessoas tentando repetidamente entender as mesmas coisas. Você pode estar fazendo melhor agora, mas isso não significa que eles não tenham feito bem. E essa é uma tendência que está acontecendo. As pessoas vão odiar o que acabei de dizer!
Falando nisso, uma das formas com que as relações coloniais exercem seu poder é por meio do controle do conhecimento. A senhora já sofreu perseguições por causa do seu trabalho?
Eu vim de uma tradição de estudos históricos “de baixo para cima”, o marxismo, e foi isso que aprendi. Então, trabalhando em plantations, percebi que não sabíamos o suficiente sobre a história “de cima para baixo”, que não sabíamos o suficiente sobre como o poder funciona. E, quando eu comecei a fazer esse trabalho, não houve perseguição, mas algumas pessoas questionaram por que eu estava indo por esse caminho, dizendo que nós tínhamos que olhar para os de baixo. E eu respondia: “Sim, mas como vamos entender a base sem entender o que o topo está fazendo?”. Algumas pessoas provavelmente não gostaram e eu estou acostumada com isso. Você não consegue agradar a todos sempre e nem deveria querer isso. Acho que o que você deve fazer é se questionar sobre se vale a pena responder essas perguntas.
Os estudos coloniais ocupam atualmente um papel central em diversos campos das ciências humanas. A quais fatores a senhora atribui essa centralidade?
Acredito que há muitos fatores. Existem tantas genealogias diferentes para seguir. Você pode seguir a genealogia de Edward Said, que em 1978 explorou esses estudos ao falar da Palestina e de Israel. Poderíamos voltar a [Frantz] Fanon, poderíamos voltar a todo um conjunto de textos que já tratava desse tema, mas que não era analisado dessa forma.
Temos que olhar para o momento político em que estamos. Por que agora? Por que neste momento? O que está acontecendo agora? Qual é o contexto de quem se recusa a fazer essa pergunta? O que impede a pergunta e o que a inicia? Acho que essa é uma ótima pergunta para continuar sendo feita.
Então, na sua opinião, não há uma resposta para o que está acontecendo agora?
Há muitas maneiras pelas quais essas situações estão sendo vistas como parte da própria história das pessoas que não tiveram espaço para serem vistas. Algumas delas vêm dos estudos negros, algumas vêm dos palestinos, algumas vêm do novo pensamento sobre arquivos. Olhamos para eles como fatos em vez de sujeitos de documentação política. Você está me perguntando sobre momentos originais, mas nenhuma história acontece assim. Foucault diz para não procurar origens, não procurar o momento do fascismo, o momento do sexismo, porque na vida real há dispersão por toda parte.
Há muitas razões pelas quais as coisas estão se unindo em diferentes movimentos, como os povos originários dos Estados Unidos, o movimento Vidas Negras Importam, os palestinos. Eu diria que há algum tipo de consolidação dessas coisas se unindo não como entidades separadas, mas na compreensão do quão relacionadas elas estão entre si. Mas não acho que seja possível olhar para um só lugar. Quem quer que você odeie, seja o Hamas ou [Donald] Trump ou [Jair] Bolsonaro ou [Tayyip] Erdogan, é preciso fazer perguntas sobre todos eles.