15 Julho 2023
"Ultradireita captura corpos tensionados e oferece brutalidade. Mas a esquerda se desconectou do Eros social. A transformação não virá apenas dos ideais; só um afeto cura outro. E ela surge da força dos fracos, do Cuidado – e da 'raiva digna'", escreve Amador Fernández-Savater, em artigo publicado por CTXT e republicado por Outras Palavras, 30-06-2023. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Fernández-Savater é pesquisador independente e ativista que vai e vem entre o pensamento crítico e a ação política, buscando sempre seu encontro. É editor da Aquarela Livros, dirigiu durante anos a revista Archipiélago e participou ativamente em diferentes movimentos coletivos e de base em Madri. É autor de Filosofia e ação (Editorial Limite, 1999), coautor de Red Ciudadana tras el 11-M: cuando el sufrimiento no impide pensar ni actuar (Acuarela Livros, 2008). Atualmente transmite na Rádio Círculo o programa Uma linha sobre o mar, dedicado à filosofia de garagem.
O que significa “a onda reacionária” globalmente e aqui na Espanha? Como entender esse fenômeno complexo e multifacetado, para melhor combatê-lo?
Proponho a seguinte interpretação: a onda reacionária está tentando sustentar um mundo em crise, um modelo que se esvai em toda parte.
O que hoje se chama de “policrise” (conjunto de crises climáticas, energéticas, alimentares, econômicas, etc.) refere-se basicamente a uma “crise de presença”, entendida como a crise do modo de vida ocidental que é baseado no impulso constante à expansão, ao crescimento e à conquista. Uma crise civilizacional de alcance planetário.
As diversas crises são sintomas de um modo de estar em um mundo consumista e predador que já atinge seus limites por todos os lados: o esgotamento de corpos, o esgotamento de vínculos, o esgotamento de recursos, um colapso que é ao mesmo tempo psíquico, social e ambiental.
O chamado “negacionismo” da onda reacionária, no que diz respeito à emergência climática, desigualdade social ou violência contra as mulheres, é a vontade premeditada de não ver nenhum desses sintomas, de não ouvir ou pensar nada sobre isso, de não empreender nenhuma mudança a partir desses fatos para, assim, ir em frente como se nada estivesse acontecendo.
Esses sintomas, visto a partir desse esquema cognitivo, são interpretados como “danos” que alguns poderes malignos infligem à ordem social. A supressão desses inimigos permitiria restaurar o bom estado das coisas, a presença dominadora no mundo.
Nenhuma responsabilidade a assumir, então, pelo curso catastrófico do mundo. A onda reacionária desafia substancialmente os sujeitos que se assumem como vítimas da situação. A vítima delega a elaboração de seu desconforto a certos poderes que prometem um “retorno à normalidade” uma vez que os males tenham sido erradicados: “Make America great again” (Trump), “Let’s take back control” (Brexit).
O caso do Vox é muito claro nesse sentido. Pode ser lido como um verdadeiro contragolpe em relação a tudo o que o modelo em crise havia questionado a partir dos sintomas do mal-estar: primeiro o 15M, depois o Podemos, depois o feminismo e, finalmente, o referendo de 1º de outubro [para a independência da Catalunha].
Os “inimigos da Espanha” devem ser jogados no lixo da história, como explica muito graficamente o cartaz pendurado pelo partido de Abascal em Madri, para recuperar a ordem e a hierarquia de raça e nação, de gênero e poder de classe, da propriedade e de suas prerrogativas.
O que se desencadeou, em escala global e local, é uma lógica de bode expiatório que necessariamente desencadeia a violência generalizada. Há muitos inimigos a eliminar, muitos movimentos sociais a reprimir, muitos corpos a sacrificar, para se continuar vivendo como se nada tivesse acontecido.
Essa lógica e essa paixão pelo sacrifício é o que Freud pensou há 100 anos, no calor da primeira grande carnificina do século XX, como a “pulsão de morte”. Ou thanatos.
A pulsão de morte, segundo o psicanalista vienense, é a busca instintiva de um estado de “tranquilidade psíquica” anterior à própria vida. Thanatos dá um empurrão para retornar à inércia do inorgânico, suprimindo as tensões da existência.
Essa tranquilidade psíquica, no campo social e político, se expressa como um ideal de normalidade perdida, quase sempre puramente fantasiada. A pátria quando não havia estrangeiros; a raça quando os brancos imperavam; o sexo quando os homens mandavam sem serem contestados; a vizinhança antes daquela primeira mulher pobre se mudar…
Do lado de fora, o instinto de morte se projeta como energia destrutiva contra tudo aquilo que perturbe a ordem. Por dentro, o sujeito se volta contra ele mesmo numa espiral autodestrutiva de culpa e dívida. Ambos os movimentos se retroalimentam: o sentimento (interior) de culpa é satisfeito ao procurar culpados (externos). O ódio à primeira mulher pobre na vizinhança canaliza essa maldita inquietação interior de não entender…
As tensões por serem eliminadas diferem de acordo com as geografias e as histórias políticas nacionais, mas sem dúvida existe uma chave comum às mil faces com que hoje se mostra a onda reacionária: a promessa de segurança. Uma segurança contra, uma segurança na desigualdade, uma segurança que passa pela insegurança do outro.
Odiamos tudo o que evoca sintomas, tudo o que indica que “algo não está bem”, tudo o que nos lembra que as mudanças são necessárias e urgentes.
A desigualdade é afirmada brutalmente, contra qualquer tentação de “bondade”, como se denomina de forma pejorativa ter um mínimo de sensibilidade social ou compaixão.
É aderente ao que existe: a liberdade já está aí, pode-se fazer o que quiser, é a liberdade de fruição privada, de consumo, de desconsiderar o comum, a liberdade de [Isabel] Ayuso [liderança política do conservadorismo espanhol].
Como escapar dessa lógica de bode expiatório, dessa paixão pelo sacrifício, dessa pulsão de morte desenfreada? O pessimismo freudiano nos dá mais pistas do que o idealismo progressista.
Perto do fim de sua vida, e depois de acumular anos e anos de experiência clínica, Freud observou o seguinte: muitos pacientes simplesmente não querem ser curados. Observação terrível.
A cura psicanalítica consiste em um longo processo de mudança e metamorfose. Mas há pacientes que preferem se contentar com a repetição do mal-estar, a satisfazer-se com o status de vítima, ainda que isso doa, a limitar-se a apontar os culpados e exigir punição, tudo ao invés de embarcar nessa difícil aventura que é a transformação pessoal, a mudança de pele.
No artigo “Análise terminável e interminável”, Freud oferece três explicações possíveis para este fenômeno: 1) a resistência imposta às mudanças de proteções que o sujeito vem construindo ao longo da vida, o peso temível da inércia, o esgotamento da capacidade física e a plasticidade mental; 2) a própria ação da pulsão de morte, agora expressa como “narcisismo de defesa”: a ideia de que minha segurança passa pela insegurança do outro, mors tua vita mea; e 3) a rejeição visceral da feminilidade, ou seja, a recusa de se abrir ao outro para receber ajuda, de mostrar fragilidade, de entregar-se a um certo não saber.
Não é uma questão de vontade, mas de corpo. Corpos atados, emparedados e narcisistas são incapazes de autotransformação e cura. Eles preferem se acomodar na repetição e apontar inimigos-culpados do lado de fora, mesmo que o mal-estar os devore por dentro.
Levando isso para o plano político, o problema é que a esquerda não sabe o que fazer com os corpos. Ela acredita que a mudança é uma questão de pedagogia, de moral, de argumentos, de explicações, de números, de gráficos, de histórias, de significantes, de imaginários. Ela é profundamente idealista. Um verdadeiro materialismo só pode passar pelos corpos e suas pulsões. Não é que as pessoas sejam más, estúpidas ou desinformadas. Não se trata de comunicar melhor, ter mais meios ou apresentar bem os números. A onda reacionária se expande graças à tensão dos corpos.
O clima físico e afetivo hoje é revanchista, desigual, sacrificial aos mais fracos. É neste clima que se inflamam as mensagens da onda reacionária. Não tanto por sua força de convicção, persuasão ou sedução, mas porque ressoam com corpos tensos.
Só um afeto pode curar outro, só um clima pode deslocar outro, só o amor permite escapar à repetição, “só Eros pode conter a pulsão de morte”, diz Freud no fim de O mal-estar na civilização.
Esta é a chave para entender como, enquanto em toda a Europa as plantas venenosas da onda reacionária já germinavam após a crise de 2008, na Espanha a saída da crise foi depositada em um impulso igualitário e nas mudanças, justamente o inverso da lógica do bode expiatório.
O 15M foi sem dúvida a expressão política de um Eros social, uma qualidade que continua sem ser totalmente pensada 12 anos depois, devido à incapacidade de pensar politicamente os afetos e a partir dos afetos.
Diante da vitimização ressentida, da responsabilidade, do comando e da proeminência de qualquer um. Diante do apontamento de inimigos, da culpabilização e do desejo de punição, da ação transformadora e não delegada, da expansão da sensibilidade social, do contágio da empatia.
Diante do narcisismo mortal das pequenas diferenças, da inclusividade e da cooperação, da abertura e do gosto pela pluralidade. Diante da violência contra os fracos, uma força dos fracos, uma raiva que não é desencadeada contra ninguém e de forma alguma, mas é ativada em defesa da vida, “raiva digna” como chamam os zapatistas.
Um Eros social e político é a pulsão organizada para frear a destruição, é a pulsão de cooperação que inventa formas de se estabelecer e perdurar, a arte da composição sensível com o outro. Um amor a partir da autonomia de pessoas, vínculos ou territórios, amor entendido como o cuidado com potencial libertador.
Hoje, Eros é destruído diariamente, devastado em uma sociedade que faz da extração do lucro e controla o vínculo com as coisas e com o mundo. Na escola, no trabalho, nos bairros, impõe-se a guerra de todos contra todos. Mas apenas a força de Eros pode recapacitar os corpos para a mudança, reinventar as proteções da vida a partir da segurança mútua, permitir uma doce abdicação da presença dominadora dos modos “femininos” de estar no mundo.
Como vamos reativar a força de um Eros social hoje, em meio às ruínas deixadas pela guerra cotidiana de todos contra todos? É, politicamente, a questão mais difícil e urgente.
Eros também busca a “tranquilidade psíquica”, explica Freud, mas não através da supressão das tensões das anomalias, das diferenças e das alteridades, não como a paz dos cemitérios, mas a partir do cuidado, do enriquecimento e embelezamento da vida. Por isso apenas Eros pode conter Thanatos: ele satisfaz o mesmo desejo da pulsão, mas de outras maneiras.
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Para trazer o corpo de volta à política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU