A sexualidade é, sem sombra de dúvida, uma dimensão pervasiva da existência humana. Diz respeito a todos os âmbitos da vida do homem e da mulher, de todas as idades e condições sociais. Marca o pensamento, os afetos, o corpo, as mais diversas ações realizadas ao longo da vida humana.
O comentário é de Roberto Mela, padre dehoniano italiano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 17-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Irmtraud Fischer, professora de Antigo Testamento da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Graz – já atuante em Viena, Bamberg e Bonn – examina com precisão e com crivo apaixonado e contundente as várias manifestações que a sexualidade encontra no interior do Antigo Testamento, tanto nos textos jurídicos quanto nos narrativos.
Como mulher empenhada no ensino, mas também no campo eclesial, ela lamenta várias vezes como o tema da sexualidade foi tratado (ou ignorado) no ensino dado aos discípulos de Jesus, favorecendo muitas vezes a submissão da mulher e uma visão machista das relações sexuais e afetivas.
“A sexualidade no Antigo Testamento. Amor, vício, prazer sexual e sofrimento”, em tradução livre, novo livro de Irmtraud Fischer (Foto: Divulgação)
Muitas vezes, deixamo-nos guiar pelas afirmações bíblicas marcadas pelo estado pós-lapsário (depois do pecado das origens), reafirmadas em alguns textos do Novo Testamento, que não favoreceram uma visão serena e positiva da sexualidade da relação paritária homem-mulher e do prazer que o exercício da sexualidade em suas várias expressões pode oferecer para uma vida feliz e equilibrada.
Em dez capítulos, a estudiosa aborda os vários aspectos da expressão da sexualidade humana tal como está presente no Antigo Testamento, chegando a avaliações que, em um caso ou outro, às vezes podem até não ser totalmente compartilhadas, mas que pretendem abrir uma janela de diálogo também no que diz respeito às relações entre pessoas do mesmo sexo. Um texto realmente interessante, muito documentado, raciocinado com a mente e com o coração, sem se deixar restringir por pré-compreensões consolidados ao longo dos séculos.
O primeiro capítulo (pp. 9-20) trata das áreas lexicais e problemáticas que descrevem a sexualidade humana, as representações iconográficas dos atos sexuais no Antigo Oriente Próximo (AVO) – inexistentes no Antigo Testamento – e da possibilidade e da necessidade de resgatar a mensagem bíblica no mundo de hoje, atualizando os textos canônicos. O segundo capítulo se concentra nas condições socioculturais e nas normas jurídicas relativas à sexualidade (pp. 21-44). Estudam-se a celebração do casamento e as suas formas, as relações sexuais legítimas, as proibições de casamento, o incesto, as relações e os atos sexuais tabus e o fenômeno da violência sexual e sexualizada no contexto jurídico. Não há textos jurídicos sobre a coerção sexual, mas as narrativas a mencionam (Betsabeia, Susana etc.).
Recorda-se a denúncia sexual (a acusação de uma jovem recém-casada de ter tido relações sexuais antes do casamento), o estupro, com os vários casos relativos a virgens prometidas ou não em casamento, violências cometidas na cidade ou no campo etc., o estupro de guerra (cf. Dt 20,5-8; 20,14; Jz 5,28-30 com as reflexões feitas pelas princesas sobre a legítima violência praticada contra as mulheres na guerra; cf. também Jz 4,12; 7,27; 9,2).
O terceiro capítulo foca os conceitos antropológicos, estudando a sexualidade como conditio humana nos relatos da criação (pp. 45-58). Em Gn 1-2, a sexualidade é vivida de modo igualitário como ordem divina da criação. Em Gn 3, ao contrário, delineia-se a sexualidade hierárquica como ordem da natureza humana da criação decaída. Muitas legislações posteriores no âmbito eclesial se referiram a essa última condição, esquecendo a beleza e a ordem igualitária da relação homem-mulher desejada por Deus não só no que diz respeito à procriação, mas também à vida afetiva de comunhão paritária no casal humano.
Alguns textos relatam a instrução dos pais como educação sexual e doutrina do matrimônio (capítulo quatro, pp. 59-66). Encontramos o eterno clichê das mulheres libidinosas que seduzem homens inocentes (cf. Pr 7 e a mulher estrangeira), mas também educação ao prazer erótico (cf. Pr 5,15-20) e educação para a esposa ideal (cf. Pr 19,14; 27,17; Eclo 42,12; Pr 31,10-31 com a apresentação da mulher não apenas como uma esposa terna, mas também como uma mulher completamente independente e com propriedades e autoridade legal).
Vários textos refletem, como sempre, uma sociedade patrilinear e androcêntrica, recomendando a expectativa da rigorosa fidelidade de uma mulher, a vigilância sobre a integridade e a virgindade das filhas, sobre sua educação à fidelidade e à maternidade. Alguns textos mostram mulheres que não são passivas no campo da sexualidade (cf. Raquel em Gn 30,1 e Lia em Gn 30,16).
A beleza identifica a esposa ideal (cf. Gn 12,11.14; 24,16; 29,17), mas pode representar um perigo se não for a da própria esposa. O Cântico dos Cânticos mostra que a beleza não se baseia apenas em critérios externos, mas também surge por meio da relação com a pessoa amada. O quinto capítulo analisa as relações sexuais bem-sucedidas (pp. 67-78), mesmo que o Antigo Testamento muitas vezes fale apenas de coisas trágicas ou ruins sobre os casamentos (infertilidade, abandonos, divórcios, incestos etc.).
Às vezes, narra-se apenas um amor unilateral. O Antigo Testamento também narra a vida feliz do escravo que prefere viver com o senhor mesmo depois de ter sido liberto. Às vezes, apenas uma das partes é feliz no casamento. Por exemplo. Jacó ama, mas Raquel não corresponde; Micol ama Davi unilateralmente, e não é evidente que Séfora ame Moisés (cf. Ex 18,2, “mandou de volta” pode aludir ao divórcio ou a uma longa separação).
Quanto às relações amorosas homossexuais satisfatórias, a estudiosa lembra os casos de Rute com Noemi e Jônatas com Davi. Diz-se de Rute que ela se “colou” a Noemi (verbo usado para a união sexual em Gn 2,24), e sobre Davi se afirma que o amor por Jônatas era para ele mais precioso do que o das mulheres. A estudiosa assume como evidente nos dois casos uma relação homossexual. Sobre Davi e Jônatas, discutiu-se muito, mas sobre Rute e Noemi a questão me parece nova e questionável (e baseada em um verbo...).
O capítulo sexto fala sobre a expectativa frustrada, o desejo que desaparece e a vida conjugal cansativa (pp. 79-100). Uma grande expectativa pode suceder a uma grande desilusão. A autora analisa Gn 24 (Rebeca e Isaac) e Jz 14 (a mulher de Tamna em relação a Sansão). Ela estuda também as palavras pregnantes e a frustração matrimonial como lembrada no livro dos Provérbios. Fala-se de situações e de relações frustrantes, marcados pelas brigas e pela incompreensão, com uma avaliação muitas vezes negativa da mulher.
A visão positiva de Pr 31,10-31 pode ser contrabalançada por algumas afirmações misóginas do Eclesiastes, mas que podem ser ambíguas, como as citações tiradas de outros e com as quais ele se confronta em citações não identificadas (cf. Ec 7,26-29). Detalhes narrativos de uma vida conjugal problemática estão presentes em textos que, no entanto, têm como principal interesse a realização e a transmissão das promessas divinas (cf. os patriarcas) e as problemáticas dinástico-políticas (histórias sobre os inícios do reino que insistem nisso, mais do que na vida sexual satisfatória dos primeiros governantes).
Cenas de um casamento difícil sob a promessa são aquelas oferecidas por Abrão e Sara em Gn 11,29ss e Gn 20 (Abrão nega que Sara seja sua esposa). Gn 16,1ss recorda o grave problema da esterilidade de Sara e a condução de Agar a Abrão para que tenha um filho dela. Se Abraão tinha resolvido seu problema, agora Sara resolve o dela...
Um exemplo de amor não correspondido é o de Jacó por Raquel (cf. Gn 29,9-30) e o de Micol por Davi (cf. 1Sm 18,20). A autora afirma que Davi, no fundo, amava apenas Jônatas. Nos textos sobre Davi, a sexualidade legitima o poder e não a função reprodutiva, como, em vez disso, enfatiza-se nos relatos sobre os patriarcas. Davi tem inúmeras esposas e concubinas, mas, no fim da relação com Micol, os dois não têm mais nada a dizer um ao outro. Micol não terá filhos: não por ser estéril, mas porque Davi não se une a ela (cf. 2Sm 6,23).
Uma atenção apagada entre casais é representada por Abigail e seu marido “estúpido” Nabal (cf. 1Sm 25). Fria, embora menos conflituosa, é também a relação conjugal entre a mulher de Suném (cf. 2 Re 4,8-37) e seu marido, sobre o qual muito pouco se fala, em comparação com tudo o que é narrado sobre a relação da mulher com o profeta Eliseu. O homem parece apático e participa apenas marginalmente da vida. A relação – segundo a autora – é provavelmente mais uma adaptação do que um verdadeiro matrimônio.
O capítulo sétimo analisa dificuldades, irregularidades e casos particulares (pp. 102-126). Nessas páginas, fala-se da esterilidade e da impotência (Sara e Abraão; Manué e sua esposa em Jz 13; Ana em 1Sam 1,2). A única menção à esterilidade masculina é feita para Abimelec em Gn 20,17s. Também são estéreis Maalon e Quelion, maridos de Rute e Orpa. Davi torna-se estéril na velhice (cf. 1Re 1,1-4).
Considerando-se a construção potencialmente poligínica do matrimônio, no Antigo Testamento pode-se falar de infidelidade sexual apenas quando uma mulher casada dorme com um homem que não seja seu marido. A infidelidade é sempre qualificada como adultério. A única narração detalhada de um adultério é a de Davi com Betsabeia (cf. 2Sm 11,1-27). Tamar é acusada disso, embora não tenha desfrutado da lei do levirato por parte de Judá (cf. Gn 38,6-11).
A autora estuda a formação do harém, devido a uniões régias interessadas em tecer relações políticas (cf. Davi e Salomão). As mulheres do harém podem desempenhar papéis políticos importantes (cf. Betsabeia). Salomão viola os ditames da Torá referentes ao rei, exibindo poder e pompa excessivos. Et 1 e 2 mostram o rígido cerimonial que rege a vida do harém e o processo de recrutamento das meninas: o único critério é a beleza.
Irmtraud estuda os textos sobre amor pago ou prostituição. Recorda-se a proibição aos sacerdotes de se casarem com uma prostituta. Os textos jurídicos tratam de situações especiais que regulam a prostituição e seus proventos, enquanto os textos narrativos falam de frequentações de prostitutas por parte de homens (famosos). Nos textos proféticos, o tema é frequentemente incluído tanto nas metáforas quanto na ameaça de punição (cf. Am 7,17). 1Re 3,16-28 narra o julgamento salomônico entre duas prostitutas que lutam por um filho.
Muitas vezes, a paternidade não pode ser determinada com precisão. Jefté é filho de uma prostituta e foi abandonado por seus familiares (Jz 11,1). Js 2 fala de Raab e de sua integração social, tornando-se depois mãe de Boaz e entrando na genealogia de Jesus (cf. Mt 1,5). Existia uma prostituição cultual, com prostitutas sagradas também (cf. 1Re 15,12ss, em que se narra que o rei Asa as elimina; 2Re 23,7 menciona uma casa no templo dedicada aos qedešim – diz-se assim cinco vezes nas pp. 120-121 –, prostitutas sagradas de ambos os sexos). Sobre os homens lascivos, falam Jr 5; Os 4,11-14; Am 2,7.
Sansão encontra uma mulher “justa” em Tamna – Jz 14,3: é assim que a autora traduz, e não com “que eu gosto” – para provocar um conflito militar, e essa intervenção vem também de YHWH (v. 4). Sansão vai também ao encontro de uma prostituta em Gaza (Jz 16,1) e depois de Dalila (cf. Jz 16,4). Sansão representa para Irmtraud o homem que vive sua sexualidade de forma a não se deixar vincular: “Um clássico playboy, sexualmente, mas também politicamente, mas cuja predileção pelas mulheres venais acaba por se tornar fatal” (p. 124).
Por fim, a autora recorda o abuso do álcool e sua relação com a sexualidade. O álcool pode favorecer um ambiente agradável para viver o sexo, mas pode tornar a pessoa agressiva, licenciosa, induzir à promiscuidade (Os 4,11-14), produzir a perda do autocontrole e a incapacidade de realizar o ato sexual. Seu abuso arruína as famílias e leva a comportamentos antissociais (1Sm 25,36: Nabal).
O capítulo oitavo fala da relação entre sexualidade e festa, afirmando que sexualidade é festa (pp. 127-136). O prazer inebriante de uma união sexual é bem ilustrado pelo Cântico dos Cânticos. Elogia-se o amor novo e inebriante de dois jovens, dos quais nenhum vínculo matrimonial é mencionado.
A união sexual não é apenas genitalidade, mas também abrange todo o mundo das pessoas, implicando uma festa para todos os sentidos. No livro, fala-se do tato, da audição, do olfato (com toda uma série de referências a perfumes e bálsamos), da visão. Não se deseja apenas “provar repetidamente o prazer sexual, mas sim o desejo de permanecer constantemente no clima de felicidade com a pessoa amada e de experimentar sua unicidade (2,3, 6,9)” (p. 131).
A autora se debruça para descrever a figura dos amantes do Cântico dos Cânticos, descritos entre o desejo ardente e a satisfação. Trata-se de textos de alto teor erótico, exaltando o amor sexual e a intimidade pessoal. É fonte de espanto – nascido sobretudo apenas a partir do século passado – que um livro da Bíblia seja inteiramente dedicado à sexualidade realizada sem um contexto conjugal. Hoje, aprecia-se sem falsos pudores esse elogio da sexualidade humana, depois de séculos de interpretações marcadas pela alegorização (amor entre Deus e a alma, a Igreja etc.). Os cânticos são postos na boca tanto do homem quanto da mulher, que se descrevem com admiração mútua e sem sentir nenhuma vergonha pela nudez assumida.
O capítulo nono é dedicado à análise da violência sexual e sexualizada nos textos narrativos (pp. 137-162). Irmtraud distingue sobretudo o assédio sexual da denúncia sexual. Com o primeiro, “entendem-se ações importunas cujo objetivo principal não é extorquir atos sexuais com a violência, mas podem servir tanto para iniciá-los – embora de modo inadequado – quanto para degradar o gênero de uma pessoa. A denúncia sexual, por outro lado, refere-se à difamação de uma pessoa, acusando-a de atos sexuais que não cometeu” (pp. 137-138).
Uma vítima masculina de violência sexual é José pela mulher de Potifar (Gn 37). A autora afirma que José não é jogado na prisão, mas colocado em uma casa de custódia de “prisioneiros políticos”, ou seja, personalidades importantes que caíram em desgraça. José sofre um assédio contínuo no local de trabalho, que no fim degenera em denúncia sexual por se recusar a obedecer. Se fosse uma escrava, teria sido estuprada, e ninguém teria vindo em seu auxílio.
Um adultério rejeitado seguido de uma denúncia sexual é o narrado em Dn 13, a história deuteronômica de Susana. A versão mais antiga da Susana é mais curta. É “uma narrativa hierárquica que retrata a comunidade representada por Susana (chamada de ‘a judia’ em Dn 13,22) nas mãos de chefes imorais da comunidade” (p. 141). Os dois voyeurs são juízes, mas não necessariamente anciãos. Na versão de Susana, falta a oração de Susana, e Susana não é representada como “uma pessoa cumpridora da lei, segura de si e incorruptível, que está disposta a enfrentar sua morte inocentemente de olhos abertos, mas sim uma mulher intimidada e abatida que invoca seu Deus apenas no pânico antes da execução da sentença. No entanto – continua a autora – a narração de ambas as narrativas leva ad absurdum a prática judicial da falta de separação das funções individuais no tribunal e expressa uma crítica social de que as mulheres são gravemente desfavorecidas no tribunal, especialmente quando os anciãos que devem pronunciar o juízo são réus” (p. 144).
Nm 5,11-31 relata uma denúncia sexual de outro tipo. É o ordálio do ciúme. “Trata-se aqui de um duplo caso legal em que um marido acusa sua mulher de adultério, que é culpada ou inocente [...] O procedimento conclui expressamente com a observação de que, seja qual for o resultado, o marido é irrepreensível [...] Esse ordálio do ciúme certamente é uma das leis mais misóginas de todo o Antigo Testamento” (p. 145), afirma indignada a autora. Basta o ciúme do homem para criar uma má imagem pública da mulher no templo. O casamento provavelmente já fracassou, e o homem quer se livrar da mulher sem um divórcio e acordo correspondentes.
A coerção sexual implica sempre o constrangimento físico, psicológico ou jurídico e difere do estupro pela ausência de força física bruta. Como exemplo de coerção sexual, a autora estuda 2Sm 11 (o episódio de Davi e Betsabeia). O estupro encontra dispositivos legais em Dt 22,23-29. Não há estupro se ocorrer na cidade, mas o dado narrativo diz o contrário. Gn 34,1ss fala da violência sexual contra Dina. A autora lembra como Siquém a sequestra, dorme com ela e não tanto a “estupra”, mas a “priva dos direitos civis” (*’nh) - como traduz a autora.
Eloquente é o relato da violência praticada por Amnon contra sua meia-irmã Tamar, filha de Davi (2Sm 13,1-22). A conclusão é a perda dos direitos civis (Tamar rasgará a túnica enquanto caminha pela cidade). Tamar volta para a casa de seu meio-irmão Absalão, que vai vingá-la. Amnon também implementa uma estratégia de culpabilização da vítima. O fato gerará a desavença entre os irmãos, e a história se tornará uma recordação perigosa que não permite que o infrator e seus cúmplices saiam impunes e revela uma estratégia de encobrimento.
Vários textos jurídicos vetam o incesto e as relações sexuais com parentes próximos por via matrimonial (cf. Lv 18; 20; Dt 27,20-23). Em Gn 35,22, encontra-se a brevíssima nota sobre o incesto de Rúben, que se une a Bala, a concubina de seu pai. Pode haver uma menção no fato de Abraão apresentar Sara como sua irmã, na realidade como sua meia-irmã, o que, segundo Abraão, removia o impedimento incestuoso ao matrimônio (cf. Gn 20,12). A problemática do incesto é tematizada em Gn 38 em relação a Judá e Tamar, a quem foi negado um marido de acordo com a lei do levirato.
Gn 19,30-38 narra detalhadamente o incesto de Ló com suas duas filhas. A autora nota a ausência da mãe e recorda a suspeita de que a iniciativa deva ser inequivocamente atribuível às duas mulheres. O texto não critica de modo algum o comportamento das filhas, que lutam para ter sua prole de forma nada convencional. Outro caso é o do terror sexualizado, descrito em Gn 19 (Sodoma) e em Jz 19 (a concubina do levita). A autora afirma que não se trata de episódios de homossexualidade masculina, mas sim de atos com os quais se pretende esclarecer quem manda na cidade.
Sexo e gênero como cenas de combate são apresentados em vários textos. A violência sexual contra as mulheres torna-se um meio de humilhar seus maridos, pérfida técnica de guerra, ainda muito utilizada. Jz 20,48 lembra que, para vingar a concubina do levita, matou-se praticamente tudo o que se movia. É preciso sequestrar as mulheres em Silo para fornecer mulheres aos benjamitas. Am 7,10-17 recorda que o profeta anuncia que a mulher de Amasias será violentada e sobreviverá exercendo a prostituição. Jz 5,28-30 relata um exemplo repugnante de violência contra as mulheres em guerra, quando a mais sábia das princesas consola a mãe de Sísara, lembrando que sem dúvida os homens que tardam estão se divertindo depois da vitória, estuprando as mulheres, reduzidas apenas à sua parte genital (“útero sobre útero”).
Alguns cantos de vitória são cantados por mulheres poupadas da violência porque seus guerreiros venceram (cf. Jz 5; 1Sm 18,6s; Jdt 15,12-16,17; Ex 15,20s). A cidade vencida é às vezes representada como uma mulher violentada (cf. Is 47,1-3), e a vingança na mesma moeda é invocada com força nos ditos proféticos sobre os povos (cf. Is 13,16; Lm 4,21).
O último capítulo lembra que eros e sexo fazem parte do imaginário de Deus presente no Antigo Testamento (pp. 163-174). No Antigo Testamento, há a metáfora do casamento que abrange uma vasta área do imaginário teológico erótico-sexual para a relação entre o Deus imaginado como masculino e o povo representado como feminino. A Escritura apresenta também a imagem divina do marido ciumento, que pune a infidelidade de sua esposa às vezes por meios marciais, mas depois acusa aqueles que realizaram essa escalada da violência e vinga os crimes com golpes de retaliação igualmente drásticos.
Um Deus sexualmente violento e os discursos proféticos de ameaça e julgamento criam um problema. Em alguns textos, a divindade reage como um marido ciumento com o divórcio (cf. Jr 3,8) ou com o abandono da esposa (cf. Is 50,1). No entanto, desde o início, a divindade tem a intenção de recuperá-la.
Outro grupo de textos, bem mais problemático e amplo, mostra o marido traído reagindo violentamente à infidelidade da esposa. YHWH pune a mulher com uma vara ou manda outros a castigarem (cf. Ez 16,23). No contexto das metáforas do casamento em Os 2, o povo e o país, personificados como mulher, são repudiados sob a acusação de culpa, utilizando a fórmula oficial do divórcio (cf. v. 4). Athalia Brenner falou de “pornografia profética”.
Hoje em dia, esses textos se tornam insuportáveis, afirma Irmtraud, pois apresentam um Deus que age por meio da violência sexualizada, um Deus cuja história começa com sua esposa infiel que abusou de seus filhos. Segundo a autora, esses textos “não podem mais ser mascarados como prova de uma justa punição por parte de um Deus soberano, mas devem ser designados com os conceitos atuais, pois não se trata apenas de textos históricos, mas também de textos canônicos que reivindicam validade ainda hoje” (pp. 165-166).
A autora analisa Ez 16 e 23, com os atos violentos cometidos por YHWH contra seu povo infiel e o cálice cheio de ira mencionado em Is 51,17-23. Vários ditos dos povos, presentes nos textos proféticos, mostram YHWH ameaçando os povos que se excederam na violência contra Israel a retribuírem na mesma moeda (cf. Br 4,5-5,9; em Is 13,16 anuncia-se na Babilônia que as esposas serão estupradas). Alguns textos mencionam o descobrimento dos genitais (cf. Is 47,2s; Jr 13,22.26 e Na 3,5).
Segundo a autora, uma imagem repugnante é representada por Is 23,15-18, um oráculo contra Tiro no qual se anuncia que a orgulhosa e rebelde cidade será obrigada a ganhar a vida como prostituta durante 70 anos. “Em todos esses textos – afirma a autora – é comum a problemática explosiva de que eles não apenas refletem as condições dos casamentos patriarcais no antigo Israel, mas também pode-se presumir que, em situações de separação, as mulheres – como frequentemente ocorre ainda hoje – foram expostas à brutal violência masculina, mas também que, ao longo dos séculos, a violência masculina no casamento pôde ser legitimada pelo testemunho bíblico de um Deus violento contra as mulheres” (p. 168).
A autora aconselha a não eliminar esses textos do uso pastoral, mas a lê-los “como memoria passionis, como textos de terror que não escondem o grito das vítimas, mas obrigam as comunidades religiosas a refletirem até que ponto eles legitimam a violência em geral e a porem em movimento um permanente exame de consciência para descobrir como eles também participam do crime de violência contra as mulheres que se verifica em todo o mundo e até que ponto são, portanto, cúmplices” (pp. 168-169).
A estudiosa conclui sua obra com um parágrafo sereno sobre o Deus de Israel apresentado como esposo ardente de desejo e o matrimônio como repertório de imagens para a teologia da aliança. Esses textos são o outro lado da moeda anteriormente representada e são temporalmente posteriores e um contraponto a eles. A retomada das imagens da esposa pode ser encontrada no primeiro Deutero-Isaías do tempo do exílio; a da esposa e do esposo sobretudo no Trito-Isaías pós-exílico. Is 49,14-21 e 54,1-8 marcam visivelmente a passagem da imagem da esposa (provisoriamente) abandonada e sacrificada à da noiva e da mulher acolhida no casamento.
A mulher estéril Sião ficará rica em filhos. A alegria de Sião em 61,10s – e não 62,10s, na p. 170 – também deve ser lida sob o pano de fundo da vergonha e do insulto. Is 62,1-5 apresenta Jerusalém coroada com um diadema real, destinatária do afeto e do favor de seu Deus, não mais abandonada e devastada, mas tornada “senhora” (assim Irmtraud traduz be‘ûlâ). YHWH se compraz de Jerusalém e se casa (b’l) com a terra. Deus exulta por Sião como um esposo pela esposa.
Jr 31,2-6 anuncia a reconstrução e a restauração da vida boa mediante uma declaração de amor. Sf 3,14-17 anuncia a revogação da condenação contra a filha de Sião, convidada a se alegrar. Os 2,21ss declara novamente seu amor em uma promessa matrimonial, o que, no entanto, ele faz igualmente após a separação de esposa amada. O Salmo 45 é um canto descritivo de uma cerimônia nupcial, que menciona o rei ungido por Deus, mas também teologicamente, de modo direto, o rei divino em sua entronização, em uma profusão de joias, vestes preciosas, perfumes exaltantes, inúmeros convidados e dons preciosos.
A autora enfatiza que a interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos referente ao amor entre Deus e seu povo encontra excelentes ganchos no texto, pois vários termos presentes podem facilmente remeter a outros textos que falam da relação amorosa entre Deus e seu povo. O Cântico, portanto, pode ser lido em um duplo sentido, e, desde que é canônico, também foi lido assim. “A chave dessas imagens encontra-se nos textos que descrevem YHWH e o povo em uma relação de amor caracterizada por atenções e desejo de unidade” (p. 173).
A estudiosa recorda que outro aspecto da relação de amor entre Deus e seu povo,
“que desconstrói a concepção do casamento patriarcal, entra em jogo metaforicamente por meio da personificação feminina da Sabedoria. Ela é vista em relação a Deus como cocriadora preexistente (Pr 8,22-31), corregente (Sb 9,4), amada por Deus (8,3) e como presença real da divindade entre os seres humanos (Eclo 24,1-22; cf. Jo 1,14). Mediante a personificação feminina da presença divina, mais tarde, em Sb 8,2-16, é até possível inverter as relações de poder das metáforas patriarcais do casamento: Salomão pode desejar como esposa a mulher-Sabedoria e admirar sua beleza (v. 2), escolhê-la como companheira (v. 9) e conselheira de governo (v. 10), que lhe dará prestígio entre o povo, no julgamento e no cenário internacional (vv. 10-15). Na intimidade de sua casa, o rei pode relaxar entre os braços da mulher-Sabedoria após cansativas incumbências de governo e sentir com ela júbilo e alegria (v.16), que lhe conferem um novo vigor para suas tarefas – todos dons que o prazer do amor é capaz de dar. Portanto, não surpreende – conclui Irmtraud – quando, em Eclo 24,12-19, a mulher-Sabedoria é descrita com as metáforas do Cântico dos Cânticos e é apresentada com todo o tipo de plantas e árvores esplêndidas, que, com seus frutos e suas especiarias, convidam ao prazer com todos os sentidos. Como em uma relação sexual bem-sucedida, o prazer proporciona uma satisfação profunda, mas a experiência, que encanta todos os sentidos e é esculpida profundamente na memória, exige ainda mais e aumenta o desejo (vv. 20ss; cf. Ct 8,7)” (pp. 173-174).
Na conclusão (pp. 175-176), a autora reafirma que a sexualidade determina toda a vida, pode ser vivida de forma diferente conforme a idade e a possibilidade ou não da fertilidade, e isso também em idade avançada. O exercício da sexualidade entre os idosos não deve ser reprimido. De fato, os rabinos relembram: “Três coisas têm algo do mundo vindouro: o sábado, o sol e a relação sexual” (Ber 57,b, cit. p. 176).
As notas de rodapé são esparsas, e não está indicada uma bibliografia. O livro se fecha com o precioso índice das passagens bíblicas (pp. 176-183). Uma obra verdadeiramente fascinante, rica em dados e em avaliações exegético-jurídico-sapienciais, escrita com entusiasmo e vontade de exaltar um elemento fundamental da vida humana, com uma atenção particular para a promoção da figura feminina contra o enorme poder patriarcal, do qual – segundo a autora – algumas Igrejas do nosso tempo também não estão imunes.
FISCHER, Irmtraud. La sessualità nell’Antico Testamento. Amore, vizio, piacere sessuale e sofferenza (Biblioteca Biblica 38). Bréscia: Queriniana, 2023 (original: Stuttgart, 2021), 192 páginas.