“Será interessante ver se a Igreja na Itália será capaz de responder ao escândalo dos abusos, não apenas no nível de relações públicas e no tribunal, mas também no nível do discurso teológico, religioso e cultural. Será um desafio para a resistência da Igreja italiana em aceitar tudo o que sabemos sobre o abuso hoje, também graças à evolução da moral – especialmente no que diz respeito à nossa maior consciência da dignidade de crianças e menores, mulheres e adultos vulneráveis. É um despertar para o qual a tradição católica contribuiu com algo importante, embora muitas vezes de maneira inconsciente, não intencional e indireta”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 01-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Após um longo atraso em comparação com muitos outros países, a Conferência Episcopal Italiana – CEI apresentou, em 17 de novembro, seu primeiro relatório de abuso sexual do clero. Centrou-se na atividade de prevenção e formação realizada pelos serviços diocesanos (interdiocesanos e regionais) para a proteção de menores e os testemunhos que as vítimas contaram nos centros de escuta diocesanos.
O relatório é fruto da colaboração entre a CEI e dois pesquisadores da Universidade Católica de Milão. Em comparação com outros países, é muito mais limitado em escopo e mais institucionalmente vinculado à Igreja Católica na Itália. É uma clara tentativa de estabelecer um modelo próprio para evitar o impacto catastrófico que as revelações de abuso tiveram em outros países.
Este relatório é muito diferente dos recentes esforços da Igreja em outras partes do mundo. Não vem de uma comissão independente (como foi feito na França), nem de uma comissão nacional estabelecida pelo governo (como a Comissão Real na Austrália), nem é um estudo científico de instituição contratada pela Igreja (como a John Jay College of Criminal Justice nos Estados Unidos).
E nem sequer é um estudo nacional sobre o fenômeno dos abusos na Igreja. Em vez disso, é um catálogo de testemunhos recolhidos nos vários territórios da península italiana, mas apenas desde 2019.
Em breve haverá outro relatório sobre casos de abuso nos últimos 20 anos, o que ainda é um período de tempo muito curto em comparação com outros estudos. Grupos de vítimas criticaram duramente essa abordagem, que pinta um quadro complexo de onde a Igreja na Itália está no caminho global para fazer um balanço do fenômeno dos abusos.
Também revela o “ponto cego” estrutural do episcopado italiano sobre o assunto, como observou o teólogo Marcello Neri. Particularmente preocupante foi a tentativa de dom Lorenzo Ghizzoni, chefe do setor de proteção aos menores da CEI, de menosprezar a comissão independente da França e seu relatório. Mas, ao fazer isso, Ghizzoni revelou a forte resistência dos bispos italianos a uma investigação completa.
Felizmente, há muitos outros bispos que falam mais abertamente sobre a situação italiana em particular e seguem políticas diferentes e mais proativas. Já passamos do momento em que se poderia dizer, sem medo de errar, que a Igreja na Itália não tem problema de abuso.
A publicação do relatório da CEI foi seguida, no dia seguinte, pelo “Dia Mundial para a Prevenção e Cura da Exploração, Abuso e Violência Sexual Infantil”, promovido pela ONU. Telefono Azzurro, organização sem fins lucrativos de escuta e intervenção contra o abuso de menores, realizou uma conferência para marcar o evento. O Mons. John Kennedy, de Dublin, secretário da seção disciplinar do Dicastério para a Doutrina da Fé, afirmou que a Itália ocupa algo como o quinto ou sexto lugar em todo o mundo em termos de número de casos de abuso. Surpreendentemente, sua declaração quase não teve nenhuma reação significativa na grande mídia italiana.
Ao mesmo tempo, é encorajador que a Igreja na Itália tenha (finalmente) iniciado um caminho de reconhecimento, tratamento e prevenção, por mais corrigida e integrada que seja ao longo do caminho. Isso foi observado por Maria Elisabetta Gandolfi, editora da revista católica independente Il Regno (nota pela transparência: da qual sou membro), que frequentemente publica artigos sobre a crise dos abusos. Gandolfi também apontou que os bispos que apresentaram o relatório da CEI reconheceram que “um terreno culturalmente insensível é talvez também uma das razões para o atraso geral da sociedade italiana em pedir uma ação decisiva e coerente contra a pedofilia e a violência contra menores”.
Esse “terreno culturalmente insensível” é um fator-chave para entender a demora da Itália em enfrentar a crise dos abusos. Até hoje, havia um amplo consenso na Itália de que o problema dos abusos relacionados à Igreja não era uma prioridade. O relatório da CEI é apenas um começo. É também um teste para o chamado “mondo cattolico” mais amplo na Itália: clérigos e religiosos católicos, intelectuais leigos, políticos, agentes sociais e pastorais, membros de movimentos e associações.
Também será importante ver as reações e contribuições das associações e redes teológicas católicas italianas, todas elas operando em um sistema eclesial que precisa estar em um país que o Vaticano historicamente viu como seu próprio quintal. Intelectualmente, será útil adotar uma perspectiva que olhe para a crise em sua complexidade e tenha o cuidado de evitar uma abordagem hipócrita que tente defender que a Igreja na Itália fez (e está fazendo) tudo o que pode e deve fazer. Também será importante evitar uma abordagem populista que tente indiciar a Igreja Católica como uma organização criminosa dedicada a perpetrar e ocultar abusos.
Procurar uma explicação monocausal – como o ensino da Igreja sobre sexualidade, celibato ou homossexualidade – revela uma simplificação que reforça o status quo. Como notaram Danièle Hervieu-Léger e Jean-Louis Schlegel em seu livro publicado recentemente na França, o desafio é institucional, mas também cultural e teológico. O escândalo dos abusos abriu um imenso canteiro de obras teológicas que apavora muitos na Igreja, e não apenas na hierarquia clerical. Levará gerações para cavar e reconstruir.
Infelizmente, a Igreja institucional não é a única entidade na Itália que há muito ignora o escândalo dos abusos. As instituições públicas (como a polícia, o sistema de justiça e o sistema escolar), bem como o sistema de mídia leigo, secular e independente também ignoraram o escândalo. Somente nos últimos anos jovens jornalistas, católicos e não católicos, quebraram o silêncio facilitado por uma cultura midiática e política historicamente relutante em investigar a Igreja Católica.
Há um longo caminho a percorrer, para todos os italianos, não apenas para os bispos ou funcionários do Vaticano. Minha experiência pessoal como pesquisador católico que migrou para os Estados Unidos me ensinou muito. Minha primeira viagem curta ao país foi na primavera de 2004. Uma das paradas foi em Boston, onde as investigações “Spotlight” do Boston Globe mudaram para sempre nosso conhecimento e compreensão do abuso na Igreja. Isso começou a abrir meus olhos. Mas quando voltei para a Itália, percebi que ninguém, nem mesmo católicos esclarecidos e progressistas, estava interessado em ouvir e falar sobre a crise dos abusos.
O escândalo já havia estourado na década de 1990 na Irlanda, por exemplo, mas na Itália simplesmente não foi registrado. Naquela época, a ideia na península era que este era um problema americano, não um problema italiano. Certamente foi assim que o Vaticano o viu. E também como a maioria dos católicos italianos a via, até muito recentemente.
Só percebi a escala e a profundidade da crise quando me mudei para os Estados Unidos em 2008. Como teólogo católico leigo ensinando jovens estudantes, com uma família jovem e filhos indo para uma escola paroquial em uma das dioceses dos EUA mais atingidas pelo escândalo, a crise tornou-se inevitável. Não apenas intelectualmente, mas também emocionalmente, como estudioso, professor, pai e membro da Igreja.
Testemunhei os efeitos do caso McCarrick em 2018 e tornei-me ativo na área, como acadêmico e professor. Antes de vir para os Estados Unidos, eu era um daqueles católicos italianos de berço que nunca conheceu ninguém que tivesse revelado ter sido abusado. Também não tinha ouvido nada sobre abusos na Igreja, a não ser nas notícias vindas do exterior.
Os pontos cegos vistos nos bispos italianos hoje eram meus pontos cegos até poucos anos atrás. De certa forma, eu era um dos muitos espectadores. Alguns sabiam e ficavam em silêncio, enquanto outros ouviam algo, mas não achavam que valia a pena se envolver. A maioria era apenas culturalmente insensível. Esse papel dos espectadores (para abusos na Igreja, mas também nas escolas: o professor como espectador no bullying escolar) é uma das coisas que os pesquisadores têm observado com mais atenção nos últimos anos.
Essas poucas pessoas que levantaram a voz foram ignoradas e silenciadas, e não apenas pelos bispos. A crise de abuso é muito mais complicada do que uma divisão nítida em dois campos, entre vítimas e sobreviventes de um lado e perpetradores e facilitadores do outro lado. Há uma vasta zona cinzenta sobre a qual o padre jesuíta Hans Zollner – o maior especialista em abuso e prevenção – já falou anos atrás na revista cultural alemã Die Zeit. “A zona cinzenta, não são só os outros. A zona cinzenta também somos nós”, disse.
A Itália é um caso de teste crucial para compreender os efeitos do escândalo dos abusos na consciência de nossos contemporâneos, católicos e não católicos, em relação à sua percepção da Igreja. Isso estará vinculado ao legado do Papa Francisco ao lidar com a crise dos abusos. Também fará parte do legado do cardeal Matteo Zuppi, que foi eleito presidente da CEI graças ao forte apoio do papa.
Será interessante ver se a Igreja na Itália será capaz de responder ao escândalo dos abusos, não apenas no nível de relações públicas e no tribunal, mas também no nível do discurso teológico, religioso e cultural. Será um desafio para a resistência da Igreja italiana em aceitar tudo o que sabemos sobre o abuso hoje, também graças à evolução da moral – especialmente no que diz respeito à nossa maior consciência da dignidade de crianças e menores, mulheres e adultos vulneráveis. É um despertar para o qual a tradição católica contribuiu com algo importante, embora muitas vezes de maneira inconsciente, não intencional e indireta.
O jeito italiano de lidar com a crise dos abusos é particularmente importante porque, em nosso catolicismo policêntrico e global, a península onde o Vaticano está localizado ainda é o marco zero dessa mudança de paradigma que marcou época. Vítimas fatais ou sobreviventes na Itália enviariam um sinal particularmente perturbador para todos os católicos do mundo.