10 Novembro 2022
Quando se escuta Gérard Haddad, psicanalista francês nascido na Tunísia, percebem-se as pegadas do cruzamento de diferentes culturas e línguas. Seu interesse pelo estudo do fanatismo e a conceitualização do complexo de Caim, temas recentes em seus livros, especialmente em El complexo de Caín, não é alheio à sua experiência de vida. Em seu francês que não ignora o árabe e em seu sentimento religioso judaico, que conhece o texto bíblico, articulam-se algumas das peculiaridades deste autor.
Observador atento de seu tempo, Haddad considera que sua contribuição à psicanálise e à sociedade em que vive exige adentrar no estudo do fanatismo e as lutas fraternas: “Os sistemas totalitários produzidos por certos partidos fanáticos sempre destrataram a psicanálise, e isso tem uma razão fundamental. O inconsciente freudiano é por essência um buraco do qual emerge, sob certas circunstâncias, sob a forma de um lapso, uma ocorrência, um sonho, uma palavra que fratura o verniz social e suas ilusões. Ao mesmo tempo, a relação do sujeito com essa instância de seu inconsciente constitui seu nexo com a ordem simbólica, com sua história pessoal e familiar, com a questão paterna”.
Ele situa a violência gerada pelo fanatismo no complexo de Caim, a rivalidade fraterna não temperada pela paternidade e a articulação com o complexo de Édipo.
A entrevista é de Sara Cohen, publicada por Clarín-Revista Ñ, 08-11-2022. A tradução é do Cepat.
Como é ser judeu na Tunísia?
A Tunísia é um país pequeno, em outro período havia uma grande comunidade judaica. Quando deixei o país, em 1962, havia um sentimento de muita hostilidade aos judeus, era algo muito forte. Mas, vamos falar do presente… Em março de 2022, fui convidado para estar na Biblioteca Nacional da Tunísia, um novo e grande estabelecimento, onde me fizeram uma homenagem. Foi um colóquio consagrado a meu trabalho, no marco de várias homenagens realizadas a judeus da Tunísia que adquiriram certa notoriedade.
Fui incluído nesta série por causa do amor que tenho pelo meu país natal. Atualmente, existe uma comunidade ativa. Os judeus desempenharam um papel importante na Tunísia, foram grandes incentivadores da cultura, interessados pelo teatro, o espetáculo, a música. Há uma certa saudade. Alguns saem e retornam. Eu mesmo pensei em morar um tempo lá e um tempo na França.
Você considera que ter nascido na Tunísia foi um marco relevante em sua formação como psicanalista?
Sim, fiz meus estudos secundários na Tunísia, em francês com um pouco de árabe. Vivi uma adolescência complicada pessoalmente, mas muito rica culturalmente. Vinham grandes companhias de teatro, Michel Foucault vinha para dar aulas. Quando cheguei a Paris, tinha um bom nível cultural.
Sempre tenho saudades de meu país natal e sempre retorno. O tunisiano tem uma característica que não é própria do mundo árabe, tem uma hospitalidade e uma gentileza que o torna diferente. Houve uma mistura com a cultura italiana e francesa. E o que é muito diferente é a libertação da mulher tunisiana que não ocorre no resto do mundo árabe.
Em seus livros, refere-se à importância que a religião teve para você e que esta descoberta vem de sua análise com Jacques Lacan.
Sim, as religiões são múltiplas e devemos seu estudo aos etnólogos. Lacan incentivava a análise do sentimento religioso e a importância que dou a esse tema devo à minha análise com ele. Por que se privar da beleza do Talmud e da filosofia de Maimônides, ou das belas coisas do Islã e do Cristianismo? Eu defendo uma herança comum, pensante, em oposição ao sentimento messiânico que faz tábua rasa da história. Não analisar isto leva as instituições psicanalíticas a funcionarem como seitas.
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Em Psicoanálisis del fanatismo, Gérard Haddad diz que o seu livro “nasceu após uma longa estadia na Tunísia, meses antes que o terrorismo islâmico enlutasse a França e a Europa”. Nele, estuda o fanatismo em suas diferentes formas, buscando articular o social e o histórico com a estrutura psíquica daquele que é capturado pelo fanatismo.
Diz assim: “Um fanático isolado, assim como um racista isolado, compete ao campo da psiquiatria. Mas assim que essa pessoa integra um grupo, acessa uma dignidade superior, aquela que confere a ambição de desviar a história”. Isso leva o autor a trabalhar o ódio e o complexo fraterno de forma mais específica em El complejo de Caín.
O autor vinha de um país árabe-muçulmano e na França tinha renunciado à nacionalidade tunisiana, sendo, então, um judeu parisiense há muitos anos. Em 2014, quando foi convidado à Tunísia para fazer um discurso de encerramento em um encontro de psiquiatras, sentiu-se profundamente tocado. Escreve a esse respeito: “Nunca imaginei que esse fato marcaria a minha carreira profissional, mais uma dessas misteriosas guinadas que minha vida me ofereceu de forma generosa, sem que eu jamais pudesse prevê-las”.
Qual é a articulação que você faz entre o Complexo de Édipo e o de Caim?
Embora eu não seja o primeiro, minha descoberta do complexo fraterno me levou a pensar que a rivalidade fraterna não tem solução e está na origem da violência em que a lei não pôde operar. A realidade psíquica é muito pouco trabalhada acerca do fraterno nas análises e eu quis introduzir um pensamento complexo entre Édipo e Caim.
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Haddad escreveu que houve “um silêncio estrondoso da psicanálise sobre a questão do fratricídio, por um século”. Em seu livro, debate o lugar preponderante dado ao parricídio na obra de Freud.
Atribui à sua análise com Lacan o fato de ter sido capaz de se confrontar com a obra de Freud, Totem e tabu, e progressivamente questioná-la.
Você acredita que o psicanalista pode intervir para além do campo específico de sua prática?
A psicanálise não é um bom exemplo, não é um bom modelo, observe o que acontece entre os analistas e suas instituições. Não seria assim, caso o complexo fraterno fosse analisado, caso houvesse espaço ao complexo de Caim nas curas, como Lacan fez comigo. Ele esteve muito atento a esse respeito.
Penso que as relações entre analistas poderiam melhorar muito. O que se reprime aumenta e se torna violento. Ao menos poderia atenuar os problemas entre analistas. A psicanálise não deve ser um messianismo, é preciso varrer o lixo.
Além de ser psicanalista, você é psiquiatra. Existe também uma violência na psiquiatria?
Há psiquiatras que foram melhores que os psicanalistas. Lacan falava do grande psiquiatra Henri Ey, que conseguia acomodar o paciente, sem ser analista. Mas há psiquiatras atuais que estão na química. Eu morei três anos em Israel e trabalhei no hospital de Berseba, e certamente era muito diferente de como os pacientes são tratados na França, e muito próximo a como são atendidos nos Estados Unidos.
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Em Psicoanálisis del fanatismo, Haddad escreve: “Trinta anos atrás, morei três anos em Jerusalém. Impactou-me, então, o fervor messiânico que havia se apoderado de amplas camadas da população israelense, bem como a concomitante escalada de um férreo nacionalismo, ambas as correntes se aliando para bloquear qualquer compromisso político razoável com os palestinos”.
O autor menciona que quando foi convidado pela Universidade de Tours para um encontro sobre o tema do fanatismo, recebeu uma pergunta do público que, por um instante, trouxe-lhe perturbação, para depois arriscar uma resposta. Escreve assim: “Qual é a relação que você estabelece entre fanatismo e inconsciente? A questão me deixou atordoado por alguns segundos, então surgiu uma resposta, também fulgurante: o fanatismo é uma mordaça colocada sobre o inconsciente, sobre o desejo do sujeito”.
Você é crítico a qualquer posição que leve ao fanatismo. Na França, o momento atual é bom para a psicanálise?
Não, os atuais intelectuais franceses falam com ironia do estruturalismo, eu sou estruturalista, meu trabalho é de estrutura. Nos anos 1970, não tinha só Lacan, pois o período da minha formação foi de grande ebulição: Foucault, Roland Barthes etc. Os intelectuais atuais estão midiatizados. E os meios de comunicação e as editoras pertencem a um poder econômico concentrado.
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“O fanatismo é uma mordaça sobre o desejo”. Entrevista com Gérard Haddad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU