Pagamento de juros e amortizações da dívida pública sem contrapartida cresceu 42% entre 2020 e 2021 depois de aumento de 33% no ano anterior, aponta relatório da Auditoria Cidadã da Dívida.
A reportagem é de Gilson Camargo, publicada por Extra Classe, 12-07-2022.
Em 2021, o governo federal gastou R$ 1,96 trilhão com juros e amortizações da dívida pública, o que representa um aumento de 42% em relação ao valor gasto em 2020, que por sua vez já tinha sido 33% superior a 2019.
Portanto, nos últimos dois anos, os gastos financeiros com os serviços da dívida federal quase dobraram.
“Apesar desses vultosos pagamentos, em 2021 a Dívida Pública Federal aumentou R$ 708 bilhões, tendo crescido de R$ 6,935 trilhões para R$ 7,643 trilhões”, aponta a auditora fiscal Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), associação sem fins lucrativos que fiscaliza o endividamento público no país.
Segundo a coordenadora da ACD, está ocorrendo um verdadeiro saque das riquezas nacionais para alimentar o Sistema da Dívida, “enquanto todos os outros investimentos necessários ao nosso desenvolvimento socioeconômico são deixados de lado, sob o falacioso argumento de que não haveria recursos”.
Mas recursos não faltam, contrapõe. Além de cerca de R$ 5 trilhões em caixa houve “Superávit Primário” em 2021, no valor de R$ 64 bilhões. Esse valor é a soma dos resultados da União, estados e municípios.
“É importante considerar todos os entes federados, pois grande parte do superávit de estados e municípios é destinado ao governo federal, na forma de pagamento das dívidas destes entes com a União”, acrescenta Maria Lucia. Ela diz que o problema é que todo esse dinheiro está reservado para o rentismo.
A coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida explica que a explosão do crescimento da Dívida Pública Federal em 2021 se deve, em primeiro lugar, aos juros elevados.
“Enquanto o mundo todo está praticando taxas de juros próximas de zero ou até negativas há anos, o custo médio da dívida divulgado pelo Tesouro Nacional em 2021 foi de 8,91% ao ano, custo bem mais elevado que a média da taxa básica de juros Selic, uma vez que a maior parte da dívida está indexada a outras taxas de juros bem superiores”, detalha.
Ocorre que os juros consumiram bem mais que o valor de R$ 256 bilhões informado pelo governo no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) a título de juros da dívida.
“Esse valor está extremamente subestimado, o que se evidencia pela simples estimativa calculada pela multiplicação do estoque da dívida federal no final de 2020 (de R$ 6,935 trilhões) pela taxa média divulgada pelo Tesouro Nacional (8,91% a.a.), que resulta no valor estimado de no mínimo R$ 618 bilhões”, revela.
A Auditoria Cidadã da Dívida constatou que essa estimativa conservadora sequer considerou os juros decorrentes de novas dívidas surgidas em 2021 e “escancara a falta de transparência do governo em relação ao efetivo gasto com juros, o que reforça a urgente necessidade de realização da auditoria da dívida”.
Fattorelli acrescenta que o gasto com juros tem sido, historicamente, o principal fator de crescimento da dívida pública. Em 2021, a situação se tornou ainda mais grave diante da disparada da Selic pelo Banco Central, sob a falsa justificativa de “controlar inflação”.
O gráfico do Orçamento Federal Executado em 2021 evidencia o privilégio do Sistema da Dívida:
(Infográfico: Divulgação | Extra Classe)
Além dos juros altos, o volume total de operações de crédito realizadas pelo governo federal em 2021, resultantes da emissão de títulos públicos, alcançou o patamar exagerado de R$ 2,031 trilhões.
“Caso esse montante tivesse sido empregado em investimentos para o desenvolvimento socioeconômico do país, estaríamos vivenciando outra realidade”, ilustra.
A maior parcela desses recursos, R$ 1,670 trilhões, foi destinada aos gastos com juros e mecanismos financeiros da própria dívida.
Os R$ 307 bilhões restantes “ficaram parados no caixa do governo federal, aumentando o chamado “colchão de liquidez” que serve para dar garantias aos rentistas e deixar os bancos tranquilos de que o dinheiro para o pagamento dos próximos juros já se encontra armazenado em caixa”, revela.
Para a auditora, enquanto faltam recursos para garantir as necessidades básicas de grande parte da população e o governo alega diariamente que não há dinheiro para um auxílio emergencial para todos, corta investimentos em saúde, educação, pesquisa, o saldo de dinheiro disponível na Conta Única do Tesouro Nacional ao final de 2021 atingiu R$ 1,736 trilhão.
“Apenas R$ 54 bilhões decorrentes da emissão de títulos da dívida foram destinados para áreas sociais, o que demonstra a falácia do argumento neoliberal, copiado por alguns outros economistas, no sentido de que a dívida pública estaria financiando áreas sociais como a Previdência Social por exemplo”, contrapõe Maria Lucia.
A dívida tem servido para subtrair recursos das áreas sociais: além de consumir praticamente todos os recursos advindos da emissão de novos títulos, ainda absorve recursos provenientes de outras fontes, que poderiam ser destinados a investimentos em áreas sociais.
“Conforme dados do próprio governo, R$ 291 bilhões dos gastos com a dívida em 2021 foram financiados com outras fontes de receita, tais como lucros do Banco Central (R$ 121 bilhões) e royalties do Petróleo (R$ 41 bilhões)”, elenca.
A coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida explica que o desperdício de recursos públicos com o pagamento dos serviços da dívida tem impacto direto na vida dos brasileiros.
“Esse elevado volume de royalties do petróleo destinado ao pagamento da dívida tem impacto direto do Sistema da Dívida na vida do povo, que sofre com o altíssimo preço do gás de cozinha e demais combustíveis, como diesel e gasolina, enquanto o lucro da Petrobras enriquece acionistas e a parcela destinada ao governo é consumida no gasto com a dívida”, exemplifica.
Enquanto países desenvolvidos continuamente tomam empréstimos para investir na economia, gerando resultado em termos de desenvolvimento socioeconômico, geração de emprego e renda – no Brasil novos títulos têm sido sucessivamente emitidos para pagar juros e amortizações de dívidas anteriores, além de alimentar outros mecanismos do Sistema da Dívida.
“Além de não servir para financiar o nosso desenvolvimento socioeconômico, como já declarado inclusive pelo TCU, o Sistema da Dívida transfere sistematicamente renda e riqueza dos mais pobres para os muito ricos, acirrando a injustiça social e o atraso tecnológico”, constata.
Fattorelli reitera que um dos mecanismos que alimentam o Sistema da Dívida no Brasil é a “política monetária suicida” e mecanismos operados pelo Banco Central, “que consomem centenas de bilhões de reais anualmente e geram crescimento exponencial de dívida ilegítima devido às taxas de juros historicamente elevadas, à remuneração diária da sobra de caixa dos bancos, escandalosos contratos de swap, entre outros”.
Um dos expressivos fatores que provocam o crescimento exponencial da dívida pública é representado pelo mecanismo da contabilização de grande parte dos juros como se fosse amortização, como vem denunciando a Auditoria Cidadã da Dívida desde a CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009/2010).
De acordo com a auditora, a rolagem da dívida nada mais é do que a contabilização de grande parte dos gastos com juros como se fossem amortizações ou refinanciamento, uma estratégia que fere o artigo 167 da Constituição Federal.
“Em 2021, o custo estimado dos juros da dívida pública federal foi de R$ 618 bilhões, mas o governo somente contabilizou R$ 256 bilhões na rubrica dos juros, ou seja, cerca de pelo menos R$ 362 bilhões referentes a juros estão sendo indevidamente embutidos na rubrica das amortizações, e são propagandeados como se fossem rolagem”, ilustra Fattorelli.
Trocando em miúdos, a rolagem significa a mera troca de um título que está vencendo por uma outra dívida.
“Na realidade os dados comprovam o contrário: nova dívida está sendo contraída, o estoque está aumentando, e os novos títulos públicos emitidos são consumidos pelo Sistema da Dívida, inclusive para pagar gastos com juros (despesa corrente), e isso não pode ser chamado de rolagem”, ressalta.
Maria Lucia lembra que anualmente a ACD publica o gráfico com o lançamento correto dos valores, o que incomoda analistas ligados aos beneficiários da dívida pública.
“São representantes de bancos, consultorias e comentaristas de grandes empresas de telecomunicações financiadas por instituições financeiras que, evidentemente, se recusam a enfrentar o injustificado e sigiloso gasto financeiro com o Sistema da Dívida, e ficam alegando que o problema das contas públicas estaria em gastos com Previdência e servidores públicos”.
Ela observa que a centralidade da dívida pública é inegável, pois essa dívida está por trás de todas as contrarreformas, teto e corte de gastos, privatizações, funcionando como um dos principais pilares do modelo econômico produtor de escassez no país.
“O conformismo diante do imenso gasto com a chamada dívida pública sem contrapartida em investimentos de interesse do povo e a falácia de que todo o gasto com o Sistema da Dívida seria mera rolagem impede o enfrentamento do problema e a mudança de rumo, condenando o país ao atraso e o nosso povo à miséria”, resume.
Maria Lucia defende “a urgente a realização da auditoria integral dessa chamada dívida, com participação da sociedade, pois a auditoria é a ferramenta que possibilita documentar a ilegitimidade do Sistema da Dívida, que não tem servido ao povo, e virar esse jogo”.