"Se não derrotarmos eleitoralmente o inominável atual presidente, o país se moverá de crise em crise, criando uma corrente de sombras e karmas destrutivos, comprometendo seu próprio futuro", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Tempos atrás publiquei no meu blog (Facebook e Twitter) um artigo com o título “O peso kármico da história do Brasil”. Hoje vejo a necessidade de retomar o tema pois a situação nacional, num cenário eleitoral, se obscureceu e ganhou contornos perturbadores, seja de ruptura constitucional, seja de grave e violenta convulsão social. Quando o atual e sinistro presidente afirma, publicamente, que só reconhecerá um resultado eleitoral - vale dizer, a sua reeleição -, caso contrário questionaria as urnas eletrônicas ou convocaria seus seguidores armados - provavelmente, os milicianos - e então ocorreria grave perturbação.
Ele é tão pouco político e desvairado que nem esconde o jogo. Revela-o às claras. Tal comportamento de um chefe de estado que se caracteriza por constantes ameaças às instituições e pelo permanente descaso da situação dramática do país, em especial, das 660 mil vítimas da Covid-19, dos milhões de famintos da insuficiência alimentar, dos desempregados, nos provoca graves preocupações e sérias apreensões.
Precisamos tentar entender o porquê de irromper esta onda de ódio, de mentiras como método de governo, de fake news, de calúnias e de corrupção governamental, impedida de ser investigada. Vieram-me à mente duas categorias: uma da psicanálise junguiana, a da sombra, e outra da grande tradição oriental do budismo e afins e entre nós, do espiritismo, o karma.
A categoria de sombra, presente em cada pessoa ou coletividade, é constituída por aqueles elementos negativos que nos custa aceitar, que procuramos esquecer ou mesmo recalcar, enviando-os ao inconsciente, seja pessoal, seja coletivo.
Efetivamente, cinco grandes sombras marcam a história político-social de nosso país: o genocídio indígena, persistente até hoje; a colonização que nos impediu de ter um projeto próprio, de um povo livre; o escravagismo, uma de nossas vergonhas nacionais, pois, implicava tratar o escravo como coisa, ”peça”, posta no mercado para ser comprada e vendida e submetida constantemente à chibata e ao desprezo; a permanência da conciliação entre si, dos representantes das classes dominantes, seja herdeiras da Casa Grande ou do industrialismo, especialmente a partir de São Paulo. Estes nunca pensaram num projeto nacional que incluísse o povo, projeto somente deles para eles, capazes de controlar o Estado, ocupar seus aparelhos e ganhar fortunas nos projetos estatais. Por esta razão emerge uma quinta sombra, a democracia de baixa intensidade que perdura até hoje e atualmente mostra grande debilidade. Medida pelo respeito à Constituição, aos direitos humanos pessoais e sociais e pelo nível de participação popular comparece antes como uma farsa do que, realmente, uma democracia consolidada.
Sempre que algum líder político com ideias reformistas, vindo do andar de baixo, da senzala social, apresenta um projeto mais amplo que abrange o povo com políticas sociais inclusivas, estas forças de conciliação, com seu braço ideológico, os grandes meios de comunicação, como jornais, rádios e canais de televisão, associados a parlamentares e a setores importantes do judiciário, usaram o recurso do golpe seja militar (1964), seja jurídico-político-mediático (1968), para garantir seus privilégios. Difamam, perseguem e até, sem base jurídica, colocam na prisão as lideranças populares. O desprezo e o ódio, outrora dirigidos aos escravos, foram transferidos covardemente aos pobres e miseráveis, condenados a viver sempre na exclusão. É o método denunciado pelo eminente sociólogo Jessé Souza em seu clássico A elite do atraso (2017). Esta sombra paira sobre a atmosfera social de nosso país. É sempre ideologicamente escondida, negada e recalcada.
Com o atual inominável como presidente e com o séquito de seus seguidores, o que era oculto e recalcado saiu do armário. Sempre esteve lá, recolhido mas atuante, impedindo que nossa sociedade, dominada pela elite do atraso, fizesse as transformações necessárias e continuasse com uma característica conservadora e, em alguns campos, como nos costumes, até reacionária.
As cinco sombras referidas acima se tornaram visíveis no bolsonarismo e em seu “cappo”: a magnificação da violência, até da tortura, o racismo cultural, a homofobia, os de outra opção sexual, o desprezo ao afrodescendente, ao indígena, à mulher e ao pobre. É de estranhar que muitos, até pessoas sensatas, possam seguir uma figura tão boçal, deseducada e sem qualquer empatia pelos sofredores deste nosso país e do mundo.
Essa é uma explicação, certamente, não exaustiva, através da sombra que subjaz às várias crises que atravessam toda a sociedade.
A outra categoria é a do karma. Para conferir-lhe algum grau analítico e não apenas metafísico (o destino humano) valho-me de um longo diálogo entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda, eminente filósofo japonês, recolhido no livro Elige la vida ( Buenos Aires: Emecé, 2005).
O karma é um termo sânscrito originalmente significando força e movimento, concentrado na palavra “ação” que provocava sua correspondente “reação”. Aplica-se aos indivíduos e também às coletividades.
Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa mas conota todo o ambiente. Trata-se de uma espécie de conta corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más que são feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista, carrega esta conta; por isso se reencarna para que, por vários renascimentos, possa zerar a conta negativa.
Para Toynbee, não se precisa recorrer à hipótese dos muitos renascimentos porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo (p.384). As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica atua na história, marcando os fatos benéficos ou maléficos, coisa já vista por C. G. Jung em suas análises psico-sócio-históricas.
Toynbee em sua grande obra em dez volumes “Um Estudo da História” (A Study of History) trabalha a chave Desafio-Resposta (Challenge - Response) e vê sentido na categoria do karma. Mas dá-lhe outra versão que me parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco as sombras nacionais e a sombra bolsonarista.
A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo. Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.
Vejamos o exemplo da cultura europeia ocidental. Ele criou a modernidade e projetou o ideal do ser humano como dominus, senhor de tudo, dos povos, dos continentes, da Terra, da vida e até os últimos elementos da matéria. Impôs-se globalmente a ferro e fogo e gerou as principais guerras, especialmente, as duas mundiais e atualmente, através da OTAN, apoiando a guerra na Ucrânia.
No dizer do grande e discutido analista Samuel P. Huntington em seu conhecido livro Choque de civilizações (1997): ”A intervenção ocidental nos assuntos de outras civilizações provavelmente constitui a mais perigosa fonte de instabilidade e de um possível conflito global num mundo multi-civilizacional” (p. 397). É a famosa arrogância ocidental de possuir a melhor religião (cristianismo), a melhor ciência e tecnologia, a melhor sociedade, a melhor democracia, a melhor cultura, tudo melhor etc. Respeitadas as diferenças semelhante juízo se aplica também à arrogância bolsonarista, do presidente e de muitos de seus ministros.
Tanto Toynbee quanto Ikeda concordam nisso: ”a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, acrescentaríamos, de sua sombra, através de uma revolução espiritual no coração e na mente" (p. 159), na linha da justiça compensatória e de políticas sanadoras com instituições justas.
Entretanto, elas sozinhas não são suficientes e não desfarão as sombras e o karma negativo. Faz-se mister o amor, a solidariedade, a compaixão e uma profunda humanidade para com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo, afirmam Toynbee e Ikeda, “é a Última Realidade”(p.387).
Uma sociedade perpassada pelo ódio e pela mentira como no bolsonarismo e incapaz de efetivamente amar e de ser menos malvada jamais desconstruirá uma história tão marcada pelas sombras e pelo karma negativo como a nossa. Isso vale especificamente pelos modos rudes, ofensivos e mentirosos do atual presidente do Brasil.
Não apregoam outra coisa os mestres da humanidade, como Jesus, São Francisco de Assis, Dalai Lama, Gandhi, Luther King Jr e o Papa Francisco? Só a dimensão de luz e o karma do bem livram e redimem a sociedade da força das sombras tenebrosas e das kármicas do mal.
Se não derrotarmos eleitoralmente o inominável atual presidente, o país se moverá de crise em crise, criando uma corrente de sombras e karmas destrutivos, comprometendo seu próprio futuro. Mas a luz e a energia do positivo sempre se mostraram historicamente mais poderosas que as sombras e o karma negativo. Estamos seguros de que serão elas que escreverão a página definitiva da história de um povo.