10 Março 2021
O verdadeiro diálogo se instaura não entre religiões entendidas como simples sistemas doutrinais, mas entre crentes de carne e osso, capazes de colocar novamente no centro uma fé que coincida verdadeiramente com uma “boa notícia para a humanidade”.
A reportagem é de Francesco Gnagni, publicada por Formiche, 03-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há poucas horas, o Papa Francisco aterrissou em Roma, concluindo assim a sua histórica visita a uma terra, o Iraque, que, como ele mesmo explicou antes de partir, ficará para sempre no seu coração. Sentimento retribuído pelo presidente iraquiano, Barham Salih, que escreveu em um tuíte: “A sua presença, sinal de paz e amor, permanecerá para sempre no coração de todos os iraquianos”.
Chegando ao país de maioria xiita como “peregrino de paz”, acolhido por muitos sinais de festa e hospitalidade, o pontífice retornou com uma mensagem clara, pronunciada durante o voo de volta no seu costumeiro diálogo com os jornalistas: “Caridade, amor e fraternidade são o caminho”.
“Eu acredito que, por uma vez, o termo ‘histórico’ não é abusado”, explica nesta conversa o padre Claudio Monge, dominicano, diretor do Centro de Documentação e Formação Intercultural e Religiosa DoSt-İ, de Istambul, onde ele vive há quase 18 anos, nomeado pelo Papa Francisco em 2014 consultor do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso.
“É realmente fácil constatar que esta viagem representa uma ‘primeira vez’ em muitos aspectos: em um país de maioria xiita, no coração de uma sociedade profundamente ferida e instável (era desde os tempos de Pio XII, entre os escombros do bombardeio de San Lorenzo em Roma, que não se via um papa em meio a tanta desolação), nas areias movediças de uma diversidade cristã de tradições e ritos que nunca estiveram em perfeita harmonia (nunca antes se viu um papa presidir uma eucaristia em rito não latino), sem falar do atual momento de pandemia global...”
Qual é o significado das imagens que vimos e das palavras que ouvimos nesses três dias?
É preciso reconhecer que, para quem segue de perto o magistério do Papa Francisco (feito de gestos e de encontros, tão importantes pelo menos quanto os discursos e os documentos oficiais), essa viagem fortemente desejada (e já sonhada por João Paulo II) é perfeitamente coerente com aquilo que o bispo de Roma tem repetido desde o primeiro dia do seu mandato e com aquilo que, de forma mais sistemática, ele está dizendo desde a assinatura do famoso Documento sobre a Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência, de Abu Dhabi, passando pelas encíclicas Laudato si’ e Fratelli tutti: quem segue os caminhos de Deus não pode ser contra alguém, mas por todos, assumindo cotidianamente a tarefa, até mesmo arriscada, de curar, sem preferências nem distinções, as feridas da humanidade.
O Iraque é a terra onde foram dados os primeiros passos da história da salvação, enquanto hoje é uma terra de mártires, de violência, de medo, onde os cristãos quase não existem mais. Francisco terá sucesso na empreitada de restabelecer a paz nesses lugares ou, melhor, de impulsionar a população local nessa direção?
Na verdade, nem a Palestina e Israel ou a Turquia e a Síria, a propósito de Terras Santas da história da salvação, estão se saindo muito bem. Quanto à hemorragia de cristãos, se nos limitarmos aos dados estatísticos, o país em que eu vivo, que acolheu quatro papas nos últimos 45 anos, também não pode nem remotamente pensar em uma acolhida pública, com tantas autoridades políticas também presentes mesmo em eventos religiosos ou com multidões em festa ao longo das ruas, como vimos nesses três dias na planície de Nínive e no Curdistão iraquiano! Essa viagem do Papa Francisco obriga a todos a uma profunda reflexão, enviando mensagens que levarão anos para serem verdadeiramente somatizadas, na esperança de que não sejam primeiro “domesticadas” e, portanto, neutralizadas no seu alcance. A sacudida ocorreu em todos os níveis, mas a paz e a estabilidade política, social e religiosa são fruto de longos processos, e não de golpes de varinha mágica.
Qual é o ponto ao qual se deve dar mais atenção?
Acredito que o tema número um, e voltamos ao Documento sobre a Fraternidade, é o de uma cidadania inclusiva, reiterado explicita e implicitamente dezenas de vezes em uma terra como o Iraque, que é por excelência um mosaico de religiões e etnias, de pertencimentos ferozmente identitários e em parte autorreferenciais, cujas relações na história foram em grande parte reguladas pela força ou pela brutalidade das lideranças de plantão, internas ou internacionais.
Há anos você se ocupa de diálogo inter-religioso e de “teologia da hospitalidade”. Qual é o significado profundo do diálogo entre as fés e entre os povos que o papa invoca? Acima de tudo, como ele pode ser realizado? Como é possível passar da violência recíproca à convivência?
Por meio de uma revolução antropológica bem antes que teológica. Dito sinteticamente: o verdadeiro diálogo se instaura não entre religiões entendidas como simples sistemas doutrinais, mas entre crentes de carne e osso capazes de colocar novamente no centro uma fé que coincida verdadeiramente com uma “boa notícia para a humanidade” e que, portanto, é indissociável do reconhecimento e do cuidado com aquilo que é autenticamente humano, denunciando aquilo que é desumano!
O Papa Francisco – que, ao introduzir a oração de sufrágio pelas vítimas da guerra, em Hosh al-Bieaa, em Mosul, disse: “Se Deus é o Deus da vida – e o é –, não nos é lícito matar os irmãos no seu nome. Se Deus é o Deus da paz – e o é –, não nos é lícito fazer a guerra no seu nome. Se Deus é o Deus de amor – e o é –, não nos é lícito odiar os nossos irmãos” – afirma implicitamente que o “cuidado” do humano e a responsabilidade na sua defesa são a via privilegiada para reconhecer o Deus em quem se diz acreditar, presente na história!
O papa falou de falsas imagens de Deus, da dor do fratricídio e da guerra, do dano incalculável da fuga dos cristãos, contra a fidelidade do amor do Pai e do Deus da aliança.
Cada declaração mereceria longas considerações. Falar de falsas imagens de Deus, por exemplo, é muito mais radical do que fazer uma mera distinção entre “bons e maus fiéis”, porque identifica implicitamente, como ato de idolatria (substituição do Deus verdadeiro por uma imagem própria de Deus, que é ídolo), toda violência em nome de Deus. Portanto, quem mata dizendo “Deus o quer” é blasfemo, e o fanatismo religioso não é um mero problema sociológico, mas sim uma doença da vida espiritual que leva ao “fratricídio”: isto é, a matar não um inimigo, ou simplesmente um “estranho” ao seu mundo, mas sim um irmão/irmã, uma criatura que compartilha com você uma sacralidade que deriva da matriz divina comum.
Francisco também convidou a seguir o exemplo dos santos e a percorrer o caminho do perdão. Isso é possível?
Humanamente falando, é impossível, quando já se cruzaram os abismos da violência e do ódio. Mas o apelo de Francisco, nesse caso, é de fiel para fiel: o perdão humano só pode estar enraizado no perdão do Cristo na cruz! Mas eu acrescentaria uma coisa: a história das terras há décadas martirizadas por uma violência sem precedentes também demonstra que o “olho por olho” só multiplica o sofrimento por gerações...
Bergoglio disse claramente: “Que cessem aqueles interesses externos que se desinteressam pela população”. Há também responsabilidades internacionais que devem ser trazidas à tona ou os próprios iraquianos são os primeiros atores e construtores da sua história?
O princípio de soberania nacional, como direito de autodeterminação da comunidade sociocultural, identificada na nação, é um dos mais afirmados e, ao mesmo tempo, desconsiderados. Enquanto não houver a clara percepção de uma história comum a ser compartilhada, enquanto os chamados interesses “nacionais” nada mais forem do que a expressão de uma parte, que reprime todas as outras sem envolvê-las, é impossível a afirmação de uma soberania nacional que se baseie no bem social, na liberdade e no progresso. Mas, fora desse quadro, as interferências internacionais se multiplicarão e, em geral, como expressão de interesses particulares (geralmente de base econômica: as famosas “guerras do petróleo” vendidas como defesa da democracia) e certamente não como expressão de um “direito de interferência” para a proteção dos direitos humanos.
Em Najaf, vimos o aiatolá al-Sistani se levantar e invocar a paz para os iraquianos.
Um dos méritos dessas corajosas iniciativas do Papa Francisco, homem de fé e de paz, corajoso tecelão de relações, é o de evidenciar a diversidade e os interesses particularistas que emergem no coração de fronts que pareceriam monoliticamente coesos, mas não o são. A sua proposta é exigente e suscita a necessidade de um debate urgente dentro do próprio universo islâmico e não apenas em âmbito cristão e em um quadro inter-religioso.
A estrada que o levou a Najaf passou pelo Cairo, depois por Abu Dhabi e, em seguida, por Rabat. Depois de solicitar um debate dentro do mundo sunita, buscando como margem o compromisso da escola jurídica malikita no contraste ao extremismo religioso, com uma leitura aberta e conciliatória do Islã (que provoca um necessário debate com o imperialismo saudita, inclinado a favorecer o Islã do puritanismo wahhabita, usado como instrumento de dominação para fins econômicos), agora ele busca uma margem no universo xiita. Mas a surpresa é que ele não se dirige diretamente ao Irã e à escola teológica de Qom (com a qual, aliás, o Vaticano tem boas relações), que apoia a teocracia política dos aiatolás imposta no Irã pela revolução khomeinista de 1979. Ele olha para o velho líder carismático Sistani, representante da corrente tradicionalista xiita da hawza de Najaf, o mais importante seminário teológico do xiismo iraquiano.
Quem é e o que pensa al-Sistani?
O aiatolá Sistani considera todo poder temporal desprovido de legitimidade, uma vez que, segundo a crença religiosa, esta é prerrogativa exclusiva do Mahdi, o 12º imã dos xiitas, o líder da comunidade de fé que a teologia duodecimana considera temporariamente oculto. Este voltará messianicamente no fim dos tempos para instaurar o Reino da Justiça. O desejo de uma relativa autonomia da política em relação à religião, intrínseca ao quietismo da espera, levou Sistani a ser um ferrenho opositor da aberração do Califado islâmico, que reduziu o Iraque, e não só, a escombros. Um “pacificador” ao qual Francisco olha com respeito, precisamente em nome dos princípios enunciados no Documento sobre a Fraternidade Humana e na esperança de que as minorias não sejam feitas reféns de mais guerras de poder sangrentas!
Pode-se dizer que as sementes lançadas pelo papa com a Declaração Conjunta do Documento da Fraternidade Humana estão dando seus primeiros frutos?
Claro, trata-se de um caminho muito longo e que requer perseverança e paciência. Mas há um elemento que me parece importante sublinhar: aquela que Francisco chamou de “guerra mundial em pedaços” está despedaçando o sonho de futuro de muitas gerações. Aquele que parece apenas um exigente apelo às mulheres e aos homens de fé corresponde, na realidade, ao sonho mais arraigado e natural de todo ser humano: sair de uma existência que é uma simples tentativa de sobrevivência no presente, para poder sonhar um futuro a ser oferecido de herança aos próprios filhos.
Aqui volto à pergunta: como tornar isso possível?
É preciso abandonar as perspectivas particularistas, o encurvamento sobre a busca apenas do próprio bem-estar. O Papa Francisco repete: “Sim, precisamos sair de nós mesmos, porque precisamos uns dos outros”. A pandemia nos fez compreender que “ninguém se salva sozinho”...
Nas tempestades que estamos atravessando, não seremos salvos pelo nosso isolamento, não seremos salvos pela corrida para reforçar os armamentos e erguer muros, que, pelo contrário, nos tornarão cada vez mais distantes e enraivecidos. Não seremos salvos pela idolatria do dinheiro, que nos fecha em nós mesmos e provoca abismos de desigualdade nos quais a humanidade afunda. Não seremos salvos pelo consumismo, que anestesia a mente e paralisa o coração. O caminho que o Céu indica para o nosso trajeto é outro, é o caminho da paz.
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Papa no Iraque: uma revolução antropológica. Entrevista com Claudio Monge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU