25 Janeiro 2017
Neste artigo, o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, aborda o tema do “pós-vida”, do “além”, a partir do ponto de vista teológico e histórico.
O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 22-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Volto ao tema do “pós-vida” que eu já propus em outras ocasiões. Desta vez, vou me mover mais livremente na incessante produção que, embora em nível subterrâneo, se deixa atrair por esse assunto, apesar do – ou talvez justamente por causa do – fato relatado por Bacon: “Os homens temem a morte como as crianças temem o escuro”.
Por isso, muitas vezes, os escritos maiores oscilam entre dois extremos. Eu poderia representá-los com frases igualmente lapidares. Por um lado, Schopenhauer, na sua obra-prima “O mundo como vontade e representação” (1819): “Desejar a imortalidade é desejar a perpetuação eterna de um grave erro”. Por outro lado, Spinoza, na sua “Ética demonstrada segundo a ordem geométrica” (1677): “Sentimos e sabemos que somos eternos”.
No entanto, vou me contentar com três indicações. Iniciarei com o nonagenário, mas ainda vivaz, Jürgen Moltmann, um dos maiores teólogos vivos, professor emérito da Universidade de Tübingen. O tema da escatologia é quase como um palimpsesto da sua produção, a partir daquela famosa “Teologia da esperança” (1964) que o tornou conhecido mesmo fora do horto teológico, dada a sua interlocução com o monumental “Princípio esperança” (1954-1959) do marxista (heterodoxo) Ernst Bloch.
Agora, ele reaparece com um ensaio em muitos aspectos atraente, tanto para o cristão quanto para o não crente (o subtítulo o define, de fato, como “uma contribuição ao atual debate sobre o ateísmo”). Também aqui reaparece Bloch, com o qual o teólogo pôs em prática – como confessa – “um tratamento paralelo do seu princípio esperança”, declarando, porém, que agora gostaria, acima de tudo, de “evidenciar as diferenças de uma teologia da esperança em relação à filosofia ateia da esperança” do pensador alemão.
O volume é um díptico com dois protagonistas. Na primeira tábua, aparece “o Deus vivo”, liberto das amarras de concepções metafísicas, a partir das quais aparecia como um motor imóvel ou um ser imutável e impassível, ou como o Onipotente relegado ao céu dourado da sua transcendência, ou um Infinito em dialética com a realidade criada, ou ainda como um mistério inefável, e assim por diante.
O fato de se ancorar nas Sagradas Escrituras faz emergir, no entanto, um Deus pessoal, vivo, até mesmo histórico, devotado à morte e glorioso ao mesmo tempo, para o qual “esta nossa vida mortal já é vida eterna: nós vivemos na Sua vida eterna, mesmo que morramos”.
É assim que se transpassa para a segunda tábua do díptico, que tem como protagonista a pessoa humana. Este é o quadro cromaticamente mais rico. Metáforas à parte, é o retrato que delineia a nossa “plenitude de vida” em todas as suas iridescências temáticas.
Os delineamentos são múltiplos e vão desde a liberdade ao amor, da alegria à espiritualidade dos sentidos físicos, do esperar ao pensar, do sofrer à festa sem fim, e assim por diante, em um arco-íris que conhece o violeta da existência terrena, mas também se estende ao vermelho flamejante da eternidade sem solução de continuidade.
O aspecto sugestivo desse esboço antropológico também está no constante diálogo com a cultura, de Schiller a Dostoiévski, de Buda a Hegel (“a coruja de Minerva de Hegel e a cotovia da aurora”), de Goethe a Feuerbach, até Schmitt e inclusive Bakunin.
A propósito do diálogo intercultural, pode-se associar a Moltmann outra figura acadêmica relevante, o historiador Peter Brown, professor emérito de Princeton, que aborda o nosso tema a partir de um ângulo particular, ilustrado também, neste caso, pelo subtítulo do seu ensaio, “Além e riqueza no primeiro cristianismo ocidental”, em ideal continuidade com a sua obra anterior, “Pelo buraco de uma agulha”, de 2014, que tinha estudado “a riqueza e a queda de Roma, e o desenvolvimento do cristianismo”.
O percurso proposto por Brown obviamente é histórico e parte do culto dos mortos no primeiro cristianismo, abrangendo o período que vai de 250 a 650. Penetra-se, assim, em uma rede de tramas complexas, que se amarram em torno da realidade do pecado que exige resgate, tanto no presente quanto no além.
Entra em cena, assim, a questão econômica para obter – através de ritos, sepulcros, obras de caridade expiatórias, atos penitenciais – justamente aquela redenção necessária para chegar à bem-aventurança paradisíaca. O Salmista, na realidade, estava convencido de que “o homem não pode resgatar a si mesmo nem pagar a Deus o próprio preço; seria caro demais o resgate de uma vida, nunca será o suficiente para viver sem fim... Só Deus resgatará a minha vida, arrancando-a da mão dos infernos” (Salmo 49, 8-10.16). O fato é que, porém, na tradição cristã, abriu-se espaço para uma conexão entre tesouro terreno, constituído pelos bens econômicos, e tesouro salvífico nos céus, onde “nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam e não roubam” (Mateus 6, 20).
Brown, às vezes, parece usar o seu modelo interpretativo, que tem uma indubitável confirmação no sistema de pensamento e de práxis da cristandade, como exclusivo e, portanto, onicompreensivo de uma realidade mais complexa e móvel. No entanto, é sugestivo seguir esse desdobramento de fios econômicos e teológicos que se desvendam e, muitas vezes, se enredam no horizonte terreno e meta-histórico, às vezes também com uma ansiedade pastoral genuína.
É o caso de Gregório, bispo de Tours do século IV, desejoso de inserir o outro mundo no presente, através daquela que os teólogos definem como “escatologia realizada” (ou, pelo menos, “em realização”). O certo é que o impedimento de fundo e subjacente é o inferno que, para Bernanos, era “não amar mais”, para Verlaine, a “ausência” por excelência, para Papini, “o paraíso invertido”, e, para Sartre, mais sumariamente, “os outros”.
Legiões de escritores dedicaram-se a descrevê-lo sem nunca tê-lo visitado, começando, obviamente, por Dante, assim como não faltaram aqueles que pintaram a “tábua das alegrias do paraíso”, título de um tomo de 640 páginas que o jesuíta alemão Jeremias Drexel publicou em 1609 para seduzir e converter os pecadores.
Delicioso, ao contrário, é o conteúdo macabro e às vezes indecifrável do pequeno poema “O inferno preparado” (em hebraico, Toftèh ‘áruk), do rabino Mošèh Zacuto, nascido em Amsterdam, mas que viveu em Veneza e em Mântua, onde morreria em 1697. Não temos a possibilidade de poder descrevê-lo agora, mas a suntuosa introdução e a refinada tradução (com texto hebraico ao lado) de Michela Andreatta, que leciona hebraico em Rochester, nos EUA, permitirão uma viagem extraordinária não só aos bolsões do nadir fosco e atormentado da Geena, mas também ao metatexto desse rabino marcado por referências ao fluido mundo cabalístico e à parênese judaica, aliás, não diferente da cristã barroca contemporânea a Zacuto. Uma leitura brutal mas fascinante, porque, como diz o autor na última linha, “inferno [por ele] preparado... é perfeito!”.
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Depois da vida, a esperança. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU