18 Julho 2016
Ainda que a decisão final do tribunal tenha sido, no mínimo, 50% acertada, o caso “VatiLeaks” foi um grande erro desde o começo. Ele fez o Vaticano parecer vingativo e insensato. Foi um embaraço para o Vaticano e para a Igreja.
O comentário é de Thomas Reese, jesuíta, jornalista, em artigo publlicado por National Catholic Reporter, 14-07-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A história tem início em novembro de 2015, com a publicação dos livros “Avareza”, de Emiliano Fittipaldi, “Mercadores do templo”, de Gianluigi Nuzzi, baseados em documentos do Vaticano que vazaram a jornalistas italianos. Estes foram acusados de violar a lei vaticana por solicitar documentos e pressionar funcionários a lhes passar os materiais sigilosos.
“O roubo de documentos é crime”, disse o Papa Francisco depois da publicação dos livros. “É um ato deplorável que não ajuda em nada”.
Uma nova lei foi aprovada por Francisco fez o ato de pegar, distribuir e publicar documentos sigilosos do Vaticano ter um status de crime no Estado da Cidade do Vaticano. Esta lei foi uma resposta a vazamentos anteriores feitos pelo mordomo do Papa Bento XVI e outros.
Também acusadas no caso VatiLeaks foram as pessoas que supostamente teriam vazado os materiais:
• Francesca Chaouqui, especialista em relações públicas e membro da antiga Pontifícia Comissão para Referência na Organização da Estrutura Econômico-Administrativa da Santa Sé.
• O Mons. Lucio Vallejo Balda, secretário da Prefeitura dos Assuntos Econômicos da Santa Sé, que admitiu repassar os documentos sigilosos.
• Nicola Maio, que atuou como assistente pessoal de Vallejo Balda quando trabalhou na citada comissão.
Eles foram acusados de formar uma “associação criminosa organizada” com o objetivo de “cometer diversos atos ilegais, como divulgar notícias e documentos relativos a interesses fundamentais da Santa Sé e do Estado (da Cidade do Vaticano)”.
De um ponto de vista americano, o julgamento foi bem estranho. Seguindo o costume italiano, o tribunal teve três juízes, liderados por Giuseppe Della Torre, mas nenhum júri. Os juízes podem atuar ativamente interrogando as testemunhas e os acusados. Não há um direito equivalente à Quinta Emenda, ou seja, que proteja o indivíduo contra uma autoincriminação.
Além disso, os advogados dos acusados foram nomeados pelo próprio tribunal. No início do julgamento, o sítio Catholic News Service informa que Vallejo Balda e Nuzzi pediram para ter os seus próprios advogados representando-os, mas o tribunal negou o pedido. Chaouqui teve autorização para ter um novo advogado quando se opôs ao seu primeiro proposto.
Outros procedimentos foram igualmente estranhos. Um datilógrafo de dois dedos registrava os procedimentos em um computador tão rápido quanto podia durante o depoimento. Às vezes, ele pedia que as testemunhas ou os juízes fizessem uma pausa enquanto escrevia. Em alguns momentos, o juiz principal repetia a pergunta e o núcleo da resposta dada no tribunal, tudo, segundo o Catholic News Service, a fim de assegurar-se que as respostas registradas eram objetivas e pertinentes à questão.
No final da sessão do dia, o registrador então lia a transcrição que fizera para o tribunal. Os juízes e advogados discutiriam sobre ela, fariam correções ou esclarecimentos, antes de ser incluída no histórico.
Este processo é de entorpecer. O Vaticano não parece se importar tanto assim que não paga um transcritor profissional.
No final do julgamento, a promotoria admitiu que não tinha provado o seu caso contra Fittipaldi e, portanto, pediu ao tribunal que retirasse todas as acusações contra ele. Por que eles não reconheceram isso desde o início é um outro mistério.
Ao analisar o julgamento, importa fazer a distinção entre os jornalistas e os funcionários do Vaticano.
Desde o começo, os jornalistas sustentaram que estavam apenas fazendo o seu trabalho e que tal reprimenda a eles era uma violação da liberdade de imprensa. E, como cidadãos italianos, desafiaram o direito do Vaticano de processá-los.
“Estamos defendendo um cidadão italiano que exerceu o seu direito à liberdade de imprensa”, explicou o advogado de Nuzzi.
Fittipaldi disse ao Catholic News Service que eles estavam sendo julgados “por simplesmente terem feito perguntas”.
“Nos Estados Unidos, os jornalistas do Boston Globe fizeram perguntas e foram homenageados com o Prêmio Pulitzer por descobrirem informações importantes sobre pedofilia na Igreja, no caso Spotlight, tendo esta história tornando-se um filme premiado com o Oscar”, disse ele. “Na Itália, jornalistas que fazem perguntas, que investigam questões importantes sobre uma estrutura econômica crivada de corrupção acabam sendo julgados e correm o risco de pegar de quatro a oito anos de prisão, pelo simples fato de fazerem perguntas”.
Francamente, fiquei surpreso que os repórteres compareceram ao tribunal, uma vez que o Vaticano não poderia enviar a Guarda Suíça para a Itália a fim de forçá-los a participar das sessões. Talvez eles se fizeram presentes porque pensaram corretamente que a publicidade em torno do julgamento ajudaria a vender seus livros.
Nuzzi testemunhou que ele e Vallejo Balda foram chamados por Chaouqui, mas que ela não lhes deu nenhum documento. A descrição que fez dela não foi nada lisonjeira, dizendo que era uma pessoa “pouco confiável”, “bipolar” e propensa “a criar confusão”.
O seu testemunho contra Balda foi condenatório, relatando que o monsenhor lhe deu a senha para acessar a sua conta de e-mail do Vaticano, que continha vários documentos sigilosos. Este testemunho fez pouca diferença, dado que o monsenhor já havia confessado.
Nuzzi se recusou a dar o nome da pessoa que lhe passou um áudio de uma reunião sobre finanças com o Papa Francisco.
Fittipaldi, por outro lado, disse que o seu livro já estava quase finalizado quando recebeu os documentos e somente usou dois deles: um orçamento semioficial do Instituto para as Obras de Religião – comumente conhecido por Banco do Vaticano – e uma carta assinada pelo Cardeal George Pell, prefeito da Secretaria para a Economia.
O julgamento começou no final de novembro e, com inúmeras interrupções e atrasos, não havia terminado até o dia 7 de julho, quando o tribunal decidiu finalmente que não possuía jurisdição legítima sobre os jornalistas e que eles estavam protegidos pela liberdade de imprensa.
De novo, tais procedimentos deixam os americanos com uma pulga atrás da orelha. Em qualquer tribunal dos EUA, o juiz teria de decidir-se sobre se o seu tribunal tem, ou não, jurisdição para atuar, antes de seguir adiante com algum caso. Por que desperdiçar tempo e dinheiro num julgamento visto que não se tem jurisdição sobre ele?
Haveria algum motivo legítimo para se trazer um jornalista a julgamento?
Um caso legítimo poderia ser perpetrado contra um jornalista que usasse da violência física contra um empregado no intuito de obter documentos. O mais próximo que chegou a isso, neste caso do Vaticano, foi uma ameaça vaga por parte do esposo de Chaouqui, quem enviou um e-mail a Lucia V. Balta dizendo: “Tenha cuidado ao humilhá-la porque isso pode ser perigoso dado os contatos que ela tem”. Este e-mail, porém, não envolvia documentos.
E quanto à chantagem?
Se um jornalista tem uma foto de um monsenhor do Vaticano dançando sobre uma mesa num bar gay, o clérigo poderia ser chantageado a fornecer informações. De novo, foi Chaouqui, e não os jornalistas, quem apareceu estar ameaçando o seu colega, Vallejo Balda: “Vou destruí-lo em todos os jornais e o senhor sabe que eu posso fazer isso”.
Subornar funcionários é um outro problema. Se todo jornalista que levasse um colaborador do Vaticano a um jantar fosse processado, a sala de imprensa desta cidade-Estado estaria vazia.
Em todo caso, nada disso foi alegado contra os jornalistas. O tribunal chegou à decisão acertada, mas o caso nunca deveria ter sido levado a cabo.
Na maior parte das situações, a maneira correta de lidar com jornalistas é através de organizações profissionais, que podem repreendê-los por violar a ética profissional jornalística, ou por meio da Sala de Imprensa da Santa Sé, que pode negar privilégios de imprensa a infratores.
E quanto aos funcionários?
Certamente qualquer organização tem o direito de estabelecer regras próprias sobre o vazamento de documentos à imprensa e ao público. Se documentos são vazados, funcionários podem ser disciplinados e mesmo demitidos. Se segredos comerciais ou informações confidenciais são roubados, aqui pode estar envolvido um crime real.
Se aqueles documentos vazados pertencessem a uma diocese, ninguém afirmaria que tivesse havido um crime. Poucos teriam feito objeções se estes colaboradores do Vaticano tivessem sido demitidos.
Qualquer organização poderia ter feito o mesmo.
Aqui, no entanto, o Vaticano não estava agindo como uma organização qualquer, muito menos como uma igreja. Pelo contrário, agiu como um Estado, onde segredos estatais ou a segurança nacional estão envolvidos.
Será que o vazamento de um relatório interno sobre uma má administração financeira ameaça a segurança nacional do Estado da Cidade do Vaticano ou a Santa Sé? Não. Sejamos honestos. Um tal vazamento é somente embaraçoso. Na verdade, nem sequer é embaraçoso porque ele mostrou que o Vaticano estava, na realidade, tentando limpar as suas finanças.
Será que pode haver vazamentos verdadeiramente criminosos?
Com certeza, por exemplo: qualquer vazamento de planos que dizem respeito à segurança do papa ou do Vaticano seria criminoso. Vazar negociações diplomáticas delicadas poderia ser um ato criminoso se tal prática pôr em risco alguns países. Mesmo o vazamento de informações confidenciais num processo de licitação poderia igualmente ser classificado como criminoso, caso venha a permitir que um concorrente trapaceie o Vaticano num contrato.
Mas nada disso esteve envolvido no caso VatiLeaks. Algumas autoridades vaticanas ficaram irritadas porque um relatório que queriam que fosse mantido em segredo foi tornado público.
O tribunal considerou o Monsenhor Vallejo Balda culpado de roubar e passar adiante documentos sigilosos aos jornalistas. Foi condenado a 18 meses de prisão, uma pena ridícula, mas menor do que os três anos e um mês pedido pelo promotor, Giampiero Milano. Lucio Vallejo Balda deveria simplesmente ter perdido o seu título de monsenhor, assim como ser demitido e banido de Roma. A maioria dos analistas espera que Francisco vá perdoá-lo, da mesma forma como Bento XVI perdoou o seu mordomo.
O ex-assistente de Vallejo Balda, Nicola Maio, foi considerado inocente em todas as acusações, embora o promotor havia pedido uma pena de um ano e nove meses.
O promotor pediu que o tribunal impusesse a maior pena – três anos e nove meses – a Chaouqui, que, segundo ele, “inspirou e foi a responsável pela conduta alegada”. A advogada Vallejo Balda, Emanuela Bellardini retratou-a como uma “femme fatale” responsável por todo o caso.
Mas visto que Chaouqui deu à luz um bebê durante o julgamento, ninguém esperava que ela fosse passar um tempo na cadeia. O Vaticano mandar uma mãe nestas condições para a cadeia seria um desastre em termos de relações públicas. O tribunal a considerou culpada por incentivar o vazamento e deu-lhe uma pena suspensa de 10 meses.
O embaraço final do caso é que, até agora, este é o único processo que se sucedeu após inúmeros escândalos financeiros no Vaticano.
Em dezembro passado, a Moneyval, agência internacional cuja missão é evitar lavagens de dinheiro e o financiamento do terrorismo, publicou o seu segundo relatório de progresso a respeito das finanças vaticanas. Ele conclui que o Vaticano mostrou progressos significativos na resolução de deficiências técnicas em sua legislação e em seus regulamentos. Porém, perguntou-se por que nenhum criminoso havia ainda sido processado, muito embora existiram investigações contra a lavagem de dinheiro envolvendo “fraudes, evasão fiscal, corrupção, falência, venda de informações privilegiadas e manipulação de mercado”.
“Anda permanece, no entanto, uma carência de indiciamentos por lavagem de dinheiro ou por delitos graves envolvendo rendimentos”, lê-se no relatório da Moneyval. “Esta situação precisa ser melhorada”.
A agência vaticana que monitora suas operações financeiras, a Autoridade de Informação Financeira, remeteu 17 relatórios ao Departamento de Promotoria de Justiça do Vaticano para possíveis acusações criminais. Atualmente, 11.2 milhões de euros em fundos foram congelados em consequência destas investigações.
Com todos estes casos para julgar, por que o Vaticano empregou o seu tempo com estes jornalistas e as pessoas que vazaram tais documentos? E os crimes que envolvem arcebispos e cardais, o Vaticano não deseja processar? Será que estão com medo de escândalos? A esta altura, deveremos ter aprendido que o maior escândalo é o acobertamento.
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VatiLeaks: Um caso insensato e embaraçoso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU