24 Janeiro 2018
Alguns salmos, chamados de "imprecatórios", sempre causaram dificuldade por causa da violência de sua linguagem (em um livro de orações! na Bíblia!), a ponto de terem sido "censurados", "purgados" pela Liturgia eucarística e Liturgia das horas, quer na sua totalidade (Sal 58; 83; 109) ou em algumas partes (Sal 35; 69; 59 139,22, 137,9).
O comentário é de Roberto Mela, teólogo italiano, publicado por Settimana News, 22-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Capa do livro de André Wénin | Foto: Divulgação
Em 1971, quando foi avaliado se incluí-los ou não nos livros da liturgia oficial, Paulo VI optou pela "censura" alegando "dificuldades psicológicas" (cf. p. 13, nota 7).
O professor de grego, hebraico bíblico e exegese em Louvain-la Neuve e professor convidado do Pontifício Instituto Bíblico, André Wénin, ajuda muito leitores e crentes a se aproximar, entender e orar esses textos bíblicos. Não é o indivíduo que deve ou não orar, avaliando se os textos são condizentes com sua situação psicológica ou "espiritual" do momento. Quem reza deve aprender com a Bíblia a atitude a ser usada na oração e assumir para si os textos rezados pela comunidade, muitas vezes pelos mártires ou por comunidades que sofrem e não podem de outra forma manifestar seus sentimentos.
O pobre e o humilhado - às vezes apresentado como aquele que reconhece algum erro cometido, mas quase sempre é inocente - é apresentado como uma pessoa ofendida, acusada falsamente de ações jamais cometidas. Sente-se como se estivesse rodeado por um bando de acusadores que o sufocam com o próprio poder, com suas forças no tribunal, pessoas com o poder judicial na mão e que distorcem os fatos ao próprio interesse, tornando impossível ao "justo" defender-se e ver reconhecidas pelo tribunal as próprias razões e a própria inocência.
Muito importante é a análise feita por Wénin do Salmo 109 (pp. 59-74). Os vv. 6-19, que causam dificuldades devido ao seu tom violento e seu conteúdo inaceitável, representam na verdade as palavras dos acusadores relatadas pelo acusado. "Eles" falam "contra ele". Isso é determinante para a interpretação do texto do salmo.
O justo, o injustamente acusado, dirige-se a YHWH invocando a sua proximidade devida e esperada por estar vinculada à relação de aliança que desde sempre caracterizou a relação de YHWH com o seu povo. Como Deus libertador, defensor dos pobres e dos fracos, ele deve intervir para defender o seu próprio nome. O fiel não pode ser deixado sozinho por Aquele que fez do "amor fiel e misericordioso /hesed" seu traço característico.
O justo reclama, descreve com tons inflamados as palavras e a atitude dos adversários e pede a YHWH que intervenha, que saia do seu silêncio e da sua inatividade e corra em defesa do fraco.
O acusado às vezes fala de "vingança" e Deus é chamado também de "Deus das vinganças". Mas o termo bíblico não é equivalente ao que significa na língua italiana atual. É equivalente ao nosso "fazer justiça", certificar-se de que a justiça seja reconhecida.
Depois de ter várias vezes descrito o próprio estado miserável, muitas vezes causado pela lealdade a YHWH, o orante confia a YHWH a própria causa, muitas vezes deixando a ele a escolha das modalidades para que seja restaurada a justiça. Às vezes, também se menciona o desejo de que os adversários sejam punidos pelas próprias consequências de suas más ações (caiam no poço por eles mesmos cavado!).
Em todo caso, o que é expresso nesses salmos nunca é uma raiva ou um ódio gratuito, desmotivado e infantil. O que é expresso é a explosão da dor daquele que encontra todos os caminhos bloqueados, é reduzido à impotência diante do mal /malvado poderoso, seguro de sua impunidade, arrogante, esquecido de YHWH ( "YHWH não conhece ...").
Se YHWH não intervier para restaurar a justiça, desmente seu status de Deus justo e libertador, vinculado por um pacto bem claro com o seu povo. Na parte final do Pater, Jesus pede: "Livrai-nos do mal." É isso que o salmista pede, mesmo com o coração exasperado e a vida reduzida a farrapos. O mal deve ser extirpado desde a raiz, desde o seio violento da mãe idólatra/Babilônia.
Os salmos não incitam ao ódio ou à vingança e não envolvem YHWH em ações odiosas para o Deus da vida e do amor. Mas a vida tem muitas vezes traços odiosos e violentos, completamente "injustos" e muitas vezes justamente contra pessoas e povos inocentes, humilhados e feridos pela história.
O clamor por justiça pode então brotar com força, se bem interpretado e bem orado na comunidade "católica", que assume para si o grito de dor de tantos inocentes perseguidos.
A Bíblia não deve ser censurada. São os leitores/crentes que devem ser educados na escola da Bíblia. Depois de entender os valores em jogo, o orante poderá participar junto com sofrida oração do grito de dor de tantos "calados" e "descartados" da história, pisados na cara pelas botas dos opressores, que são feitos desaparecer nos oceanos ou nas prisões escuras, aniquilados por um mercado financeiro cego e cínico.
Um livro realmente importante e esclarecedor este de Wénin - como todos os seus livros, bem escritos, muito claros e informados - sobre um tema muito polêmico, mas decisivo para a fé cristã imersa em um mundo que ainda não é o paraíso ou o Reino realizado.
André Wénin, Salmi censurati. Quando la preghiera assume toni violenti (Studi Biblici 83), EDB, Bologna 2017, pp. 128, € 14,00.
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Os Salmos censurados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU