A tecnologia pode melhorar ou piorar a educação, e os impactos da IA no ensino devem ser observados do ponto de vista das partes envolvidas, afirmam os pesquisadores
“Esta é a realidade que vivemos: quando menos esperamos, surge uma tecnologia nova”, disse Yuri Oliveira de Lima, referindo-se ao ChatGPT, um programa de computador que utiliza técnicas de inteligência artificial para entender e gerar textos em linguagem natural, desenvolvido pela OpenAI, um laboratório de pesquisa de inteligência artificial norte-americano, que, em apenas cinco dias, foi acessado por um milhão de usuários.
Segundo ele, “não existem áreas onde as novas tecnologias não sejam ou não serão relevantes, ou nas quais não serão aplicadas” e, portanto, “a educação para o trabalho precisa acompanhar os avanços tecnológicos”. Apesar dessa aposta, sublinha, uma das preocupações relativas às novas tecnologias é o descompasso entre a capacidade de criá-las e “a capacidade de pensar as consequências sociais, éticas, econômicas que essa tecnologia gera”.
No âmbito educacional, pontua, “precisamos usar o ChatGPT (…) mas temos que fazer isso da melhor forma possível, de modo que a utilização possa melhorar o ensino ao invés de piorá-lo”.
A opinião é compartilhada por Pedro Henrique de Castro, para quem a discussão em torno do uso do ChatGPT no ensino “atualiza”, com “contornos e delineamentos contemporâneos”, o debate sobre a função do professor quando o Google passou a ser utilizado como ferramenta de pesquisa. “Ocorreu uma discussão muito parecida com o debate atual, quando a internet começou a se difundir. Quando o Google surgiu, parecia que ia acabar a função do professor, tal como hoje alguns pensamentos podem se apresentar em relação ao ChatGPT e à inteligência artificial. Essa discussão já aconteceu, talvez não com a intensidade e velocidade que vemos hoje, mas já vem acontecendo ao longo dos últimos séculos”, afirma.
Segundo Pedro de Castro, no uso de novas tecnologias de inteligência artificial, dentro do processo de ensino e aprendizagem, perpassa uma reflexão sobre a função da escola e as disputas em torno da formação do currículo escolar. “Atualmente, estamos vivendo a implementação do Novo Ensino Médio – NEM, que vem num discurso muito semelhante de quem é adesista à inteligência artificial. No sentido de que é preciso mudar porque a educação tradicional já não serve, e as práticas didáticas e os itinerários formativos necessitam ser novos, alinhados com o mercado de trabalho, criativos e datados de inovação. Contudo, a resolução que o NEM dá aos nossos alunos e às futuras gerações que vão assumir cargos de trabalho e de poder na sociedade, é, para a grande maioria do ensino público, aula para fabricar bolo de pote”, adverte.
A seguir, reproduzimos no formato de entrevista os principais trechos da conferência virtual sobre ChatGPT e os impactos da Inteligência Artificial na educação, ministrada por Yuri Oliveira de Lima e Pedro Henrique de Castro no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 30-03-2013. A conferência na íntegra está disponível aqui.
Yuri Lima (Foto: Reprodução YouTube)
Yuri Lima é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, mestre em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia – COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, na área de Gestão e Inovação e foco em Projeto Organizacional e Organização do Trabalho. Cursa doutorado em Engenharia de Sistemas e Computação na mesma instituição. É pesquisador do Laboratório do Futuro da COPPE/UFRJ, onde coordena a linha de Futuro do Trabalho.
Pedro Henrique Castro (Foto: Reprodução | Linkedin)
Pedro Henrique Castro é licenciado e mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Educação pela mesma instituição. Leciona na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 24-04-2023.
IHU – Quais suas projeções sobre o futuro do trabalho a partir do advento de novas tecnologias?
Yuri Oliveira de Lima – Não existe resposta certa para esta questão, mas o futuro da educação e do trabalho são dois temas correlatos. Quando penso no trabalho, penso principalmente na robótica, na inteligência artificial (ou IA) e nas formas como as novas tecnologias irão alterar nosso modo de trabalhar, para além da questão da automação.
O primeiro exemplo é o robô da empresa Moley Robotics, que cozinha. Podemos imaginar, às vezes, que cozinhar é uma tarefa muito criativa e humana, que não seria dominada por uma máquina. Mas, no fim das contas, desde o processo de pegar uma receita até desenvolvê-la, o robô desenvolve um conjunto de passos que são traduzíveis para a tecnologia. Se isso é possível, então pode ser que uma tecnologia venha a fazer isso. Outro exemplo são os robôs de uma empresa americana [Boston Dynamics] que vêm evoluindo ao longo do tempo para poder fazer cada vez mais atividades, como a construção de andaimes.
Com a inteligência artificial, um dos casos é a sua alimentação com roteiros de filmes e a escrita e gravação de roteiro próprios: a IA escreveu o roteiro, as falas e músicas para um filme. É um exemplo de como a tecnologia pode avançar sobre atividades que dependem da criatividade.
Por fim, os óculos de realidade aumentada permitem a criação de um escritório virtual dentro de casa e exemplificam como a tecnologia pode mudar a forma como trabalhamos. A partir desses exemplos, podemos imaginar como serão as pessoas, os profissionais, quais serão as necessidades de habilidades, formação e educação para esse público.
Para dar uma perspectiva histórica e mostrar que não estamos isolados, é interessante voltarmos ao passado e mostrar o que aconteceu antes deste momento que estamos vivendo, a partir da história das revoluções industriais.
A revolução industrial é um momento de intensa mudança nos modos de produção. Quando eles mudam intensamente, a sociedade muda intensamente: a economia, as formas como nos relacionamos, a política. Muita coisa acontece em função disso; não se trata apenas da introdução de uma nova tecnologia. Na primeira revolução industrial, foi produzida a máquina a vapor, em 1760-1840. Várias coisas aconteceram neste período: o surgimento das fábricas, a mudança na forma como as casas e famílias eram organizadas, a produção de itens que hoje consideramos comuns, como uma meia ou um chapéu. Esses itens, antes, eram coisas raras que somente rainhas e reis tinham acesso. Essa revolução gerou uma produção muito grande e uma difusão do consumismo.
Na segunda revolução industrial, a eletricidade é a principal tecnologia implementada, entre 1850-1945. Do ponto de vista da organização da produção, surgem as linhas de produção fordista e taylorista e uma série de mudanças nas empresas e na sociedade em relação à forma como se produz.
A terceira revolução industrial, de 1950-2000, corresponde à introdução de novas tecnologias de computação. Computadores que antes ocupavam andares foram, ao longo do tempo, se miniaturizando para caber nos nossos bolsos.
Um processo que mudou ao longo do tempo foi a velocidade com a qual as tecnologias se espalharam pelo mundo e isso é importante para entendermos o ponto que vivemos hoje. Se, na primeira revolução industrial, uma tecnologia com base a vapor levou 120 anos para se espalhar mundo afora, na segunda revolução industrial esse tempo caiu para 44 anos no caso dos carros e, na terceira, a internet, em apenas oito anos, se espalhou pelo mundo – apesar de ainda hoje nem todos terem acesso à rede. Nesse processo, o ChatGPT levou cinco dias para atingir um milhão de usuários. Comparando com as tecnologias anteriores, é uma velocidade muito maior. Isso é algo para refletirmos, porque impacta a forma como trabalhamos, a forma como vamos pensar a educação.
A quarta revolução industrial é uma grande combinação de tecnologias – bio, nano, computacional, robótica – para criar e impactar todas as áreas de trabalho que conhecemos: da saúde ao direito, passando pela educação.
Em 2018, uma pesquisa que realizamos indicava, segundo o estado da arte da inteligência artificial e da robótica, que o impacto mais importante da tecnologia sobre o trabalho e a educação seria em relação à automação. 60% da força de trabalho do Brasil estaria sob alto risco de automação nas próximas décadas. Cabe pensarmos o quanto isso evoluiu nos últimos cinco anos, desde que essa pesquisa foi feita. Esperava-se que mais de 2.500 profissões fossem extintas, entre elas, telemarketing (99%), operadores de caixas (97%), recepcionistas (96%), assistente de serviços legais (94%), motoristas privados (89%), seguranças (85%).
IHU – O que a tecnologia não era capaz de fazer e tem sido capaz de fazer? Que outras profissões podem ser automatizadas ou substituídas por novas tecnologias?
Yuri Oliveira de Lima – Uma delas é a inteligência social, que significa negociação, comunicação, empatia. Essas eram capacidades que se acreditava que a tecnologia não absorveria tão cedo. Outro aspecto é a criatividade, a capacidade de inovar, de pensar ideias que possam ser concretizadas, como escrever filmes, músicas e melhorar um processo de negócio. Outro aspecto é a recepção e manipulação avançada. O exemplo aqui são os cirurgiões ou artistas que têm que lidar com objetos de uma forma muito minuciosa. Essas eram as áreas em que se imaginava que a tecnologia não atuaria. Nesse sentido, as profissões menos afetadas seriam médicos e cirurgiões (0,42%), gerentes de RH (0,55%), professores (0,74%), enfermeiros (0,9%), engenheiros (1,9%) e advogados (3,5%). Acreditava-se que um conjunto de profissões estariam livres do processo de automação.
É importante destacar o que aconteceu com os professores nos últimos anos. Não vejo um risco de automação muito grande se quisermos manter a qualidade da educação, porque não dá para substituir o professor. Mas o que temos visto no país é uma mudança do próprio modelo de negócios da educação: um avanço cada vez maior da educação a distância, a redução das disciplinas presenciais, que reduz a necessidade de mais professores. Apesar de poucos riscos, o que vimos em estudos que realizamos é que o número de professores no mercado de trabalho diminuiu nos últimos anos, apesar do aumento do ensino superior ter ocorrido durante a pandemia.
Entre as profissões que deixarão de existir e vão continuar existindo, novas profissões irão crescer. Entre elas, destacam-se: psicólogo ciborgue, que pode ajudar pessoas com planos robóticos ou vícios digitais a lidarem com suas realidades; nostálgicos, que são pessoas que criarão realidades virtuais para pessoas que sentem saudades de outras que se foram ou pessoas que sentem saudades de momentos de nostalgia positivos; projetistas de carros autônomos; intérpretes de IA; negociadores de propriedade intelectual; negociador de dados; engenheiros nanomédicos, e outros. A questão da educação é como formar profissionais para essas novas áreas que nem existem ainda.
IHU – O que é o ChatGPT e como pode ser compreendido neste contexto de transformações?
Yuri Oliveira de Lima – O ChatGPT é o mais popular no momento, mas seus correlatos, outras aplicações de inteligência artificial, vêm surgindo ao longo dos últimos anos.
Perguntei para o ChatGPT o que é o próprio ChatGPT e tive uma boa resposta:
“Nada mais é do que um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI, com base em uma arquitetura de GPT (Generative Pre-trained Transformer) 3.5. Eu fui treinado em uma grande quantidade de dados de linguagem natural e programado para interagir com usuários de forma semelhante a um humano. Em outras palavras, eu sou um programa de computador que utiliza técnicas de inteligência artificial para entender e gerar textos em linguagem natural, com o objetivo de responder perguntas, realizar tarefas e manter conversas com os usuários.”
Ele é programado para conversar como se fosse uma pessoa. É possível fazer uma pergunta a ele ou pedir que faça uma tarefa, como escrever uma carta, um e-mail ou um código de software, que ele vai entender e interpretar. Basicamente, trata-se de um programa que usa inteligência artificial para entender o que as pessoas estão falando e respondê-las. Essa é a ideia por trás do ChatGPT.
Existem várias outras tecnologias que atuam com o próprio GPT3, que escreveu como coautor artigos acadêmicos. Outras tecnologias de inteligência artificial estão recebendo patentes por invenções, softwares estão ajudando programadores a escrever seus códigos. Isso significa que a tecnologia está avançando sobre essas áreas, ajudando as próprias áreas e substituindo profissionais. A Lu do Magalu virou a influenciadora virtual com o maior número de seguidores no mundo em decorrência de uma aplicação de tecnologia; neste caso, uma tecnologia de computação gráfica. Um robô no Japão prepara uma massa em 45 segundos. Esses são exemplos de tecnologias que usam inteligência artificial para fazer uma atividade que poderia ser desenvolvida por uma pessoa, ou uma atividade que poderia ajudar uma pessoa em seu trabalho.
IHU – Quais as questões éticas que surgem em decorrência do uso dessas tecnologias?
Yuri Oliveira de Lima – As tecnologias nunca são neutras; são criadas com um propósito. A forma como são criadas define o limite e o potencial de usá-las, sendo que algumas são muito amplas. O Facebook, por exemplo, pode ser utilizado tanto para compartilhar a foto de um cachorro quanto para influenciar uma eleição. As possibilidades são amplas, assim como o ChatGPT tem possibilidades imensas. Adotar ou não essa tecnologia também vai definir como as pessoas serão afetadas. Adotar o ChatGPT em uma universidade ou escola modificará aquela realidade de forma sensível. O modo como utilizamos a tecnologia também pode transformar a intenção original, ou seja, é possível criar uma rede social voltada para um determinado fim e aquele fim ser modificado no meio do caminho. A tecnologia é extremamente complexa e não existe de forma isolada da sociedade; ela tem que ser trabalhada neste contexto.
O que preocupa quem pesquisa o assunto é o descompasso entre a capacidade de criar tecnologias e a capacidade de pensar as consequências sociais, éticas, econômicas geradas, e como acompanhar ou controlar essas tecnologias. Existem exemplos, do ponto de vista ético, que tentam estabelecer instruções para ajudar quem cria ou quem aplica uma tecnologia a fazer isso de uma forma mais correta. Reflexões sobre essas questões demandam mais tempo – se quisermos fazê-lo dentro de uma democracia, participativamente – do que a criação de uma tecnologia, que é algo dependente de empresas com milhões de dólares em investimentos. Um exemplo de discussão democrática é uma carta que várias pessoas assinaram – como o cofundador da Apple [Steve Wozniak] e o professor Yuval Noah Harari – sobre a interrupção de grandes experimentos com inteligência artificial.
IHU – O que podemos esperar disso tudo?
Yuri Oliveira de Lima – As posições sobre o ChatGPT são distintas, desde grupos dizendo que não irão bani-lo das escolas e o utilizarão para a aprendizagem, até outros que o veem como uma ameaça. Tanto na imprensa nacional quanto na internacional, o debate está acontecendo e não há respostas para avaliar se o ChatGPT é bom ou ruim; existem formas de analisar essa tecnologia e é isso que estamos fazendo: analisando o impacto da tecnologia sobre os alunos, professores, sobre plágio e assuntos que precisamos repensar do ponto de vista educacional.
Perguntei ao ChatGPT como ele acha que pode ajudar os professores e recebi algumas sugestões. Ele acha que pode ser útil de várias formas:
Essas são possibilidades que o ChatGPT dá, mas ele também diz, a partir de outras perguntas que fiz, que é preciso considerar suas respostas como ponto de partida e não como a chegada final. É algo a se considerar.
Também perguntei como o ChatGPT pode ajudar os alunos. Ele tem algumas sugestões.
Finalmente, perguntei quais os desafios que o ChatGPT e a inteligência artificial impõem à educação. As respostas são várias:
IHU – Quais os desafios da educação com o surgimento de novas tecnologias?
Yuri Oliveira de Lima – As novas tecnologias não vão parar de surgir e o ritmo tende a se manter acelerado. As pessoas podem escrever quantas cartas quiserem, mas as empresas não vão parar de produzir porque, como sabemos, boa parte disso tudo é movido pelo interesse dos lucros. A ideia do capitalismo é que coisas novas precisam ser criadas para continuarmos comprando; basta ver o iPhone.
Esta é a realidade que vivemos: quando menos esperamos, surge uma tecnologia nova. Nós sabemos que é assim que as coisas vão acontecer e já sabíamos do GPT3 há muito tempo. Então, era previsível que surgisse um ChatGPT. Mas quanto tempo temos para parar, no nosso dia a dia, e refletir sobre esses assuntos? Esse é o desafio.
Não existem áreas onde as novas tecnologias não sejam ou não serão relevantes, ou nas quais não serão aplicadas. Não importa se as pessoas trabalham na área ambiental, da saúde, do direito ou da educação. Todas elas usam tecnologias, serão impactadas e gerarão desigualdades ou vantagens e desvantagens competitivas entre quem usa tecnologia e quem não usa. Se queremos profissionais bem formados, eles precisam trabalhar com as novas tecnologias.
A educação para o trabalho precisa acompanhar os avanços tecnológicos, e essa é uma defesa que faço. Creio que precisamos usar o ChatGPT para a educação, mas temos que fazer isso da melhor forma possível, de modo que a utilização possa melhorar o ensino ao invés de piorá-lo.
O impacto da inteligência artificial na educação deve ser observado do ponto de vista de todas as partes envolvidas. Neste caso, costumamos pensar geralmente na relação professor/aluno, mas temos que pensar também como os pais estão envolvidos e impactados. Muitas vezes, o aluno precisa realizar um trabalho em casa, e a questão é como os pais podem ajudar fazendo uso de tecnologias como o ChatGPT e outras. Como a comunidade vai evoluir junto com essas tecnologias? A educação envolve não só a escola, a universidade ou o aluno, mas o ambiente de trabalho, o ambiente onde o aluno vive, a comunidade.
Por fim, a tecnologia pode servir para melhorar ou piorar a educação. Precisamos refletir sobre quem é o dono da tecnologia, quem a está implementando e fazendo ela acontecer. Isso tem muito a ver com o resultado que teremos. Basta observar a questão da educação a distância.
IHU – É preciso repensar a educação a partir do advento das novas tecnologias, como ChatGPT?
Pedro Henrique de Castro – A seguir, apresento alguns pontos de uma discussão bastante incipiente, ao menos do ponto de vista educacional. Se formos a uma base de dados como a Scientific Electronic Library Online – SciELO e buscarmos artigos científicos sobre a temática, encontraremos pouca produção em língua portuguesa. Em outras áreas existe mais produção.
Repensar a educação, as práticas didáticas e os currículos não é um assunto novo e, para tal, temos que ter uma noção de perspectiva. No fim do século XIX, [John] Dewey já pensava sobre a necessidade de reformas educacionais. O que as discussões mais atuais fazem é mudar as nuances, os contextos e trazer novos elementos para este processo. Por isso, precisamos ter uma perspectiva ao invés de um alarmismo sobre essas mudanças.
Ocorreu uma discussão muito parecida com o debate atual, quando a internet começou a se difundir. Quando o Google surgiu, parecia que ia acabar a função do professor, tal como hoje alguns pensamentos podem se apresentar em relação ao ChatGPT e à inteligência artificial. Essa discussão já aconteceu, talvez não com a intensidade e velocidade que vemos hoje, mas já vem ocorrendo nos últimos séculos. O ChatGPT atualiza esse debate e traz contornos e delineamentos contemporâneos.
Minha abordagem sobre essa temática busca responder a três perguntas: Qual o papel da educação frente às novas mudanças tecnológicas? Como o currículo escolar será afetado por tecnologias como a IA? Qual será o papel do professor frente a essas mudanças? Na resposta às duas primeiras questões, aparece um pessimismo realista, mas há um papel propositivo, especulativo e positivo nas segunda e terceira questões.
IHU – Qual é o papel da escola na sociedade que está sendo transformada pela tecnologia?
Pedro Henrique de Castro – Temos que entender a função da escola na sociedade. A sociedade ocidental designou a escola como a grande instituição responsável pela educação das futuras gerações. Nesse sentido, precisamos entender que o senso comum quase responsabiliza a escola como a única encarregada pelo sucesso ou pelo fracasso da educação das gerações. Contudo, diversos autores lembram que é preciso pensar em ecossistemas educativos. A escola, sozinha, não salva nem redime os dilemas de uma sociedade. Ela é apenas mais um ator, um ator fundamental, mas não atua sozinha.
Também é preciso ter um pouco de perspectiva. Desde que a Constituição de 1988 estabeleceu a ideia de universalização do ensino, do direito ao acesso ao ensino público, ela trouxe para a escola algo muito importante: pensar a escolarização e alfabetização das futuras gerações como um direito do Estado. Mas a Constituição acabou importando para a escola uma série de dilemas que a sociedade não resolveu. Ela acabou importando uma série de dilemas relacionados à merenda, por exemplo. Há alunos que vão para a escola tendo como principal objetivo se alimentar porque não têm acesso à alimentação fora da escola. Muitos vão para a escola para tomar banho porque o saneamento básico não chegou com qualidade ao seu local de moradia. A escola também enfrenta uma série de desigualdades de oportunidades educacionais, econômicas, sociais e culturais. Então, a escola está em meio a esse grande conflito que a sociedade não resolveu.
O que as novas tecnologias e o ChatGPT trazem para este caldeirão que já é complexo? Elas vão se impondo como uma demanda para a escola. Como vamos lidar com essa realidade e as novas tecnologias? O ChatGPT vai nos atrapalhar ou vai nos ajudar enquanto uma ferramenta para o aluno compreender o mundo? São questões que vão se impondo. Mas, antes de entrarmos nisso, devemos pensar que a educação precisa ser considerada um projeto de Estado.
Se queremos pensar a inteligência artificial na escola, primeiro é preciso ter internet, segundo, que o contexto escolar seja minimamente favorável para que o aluno entre na escola. No Rio de Janeiro, há casos emblemáticos de tiroteios que interrompem as aulas por conta de ações policiais, de troca de tiros entre a polícia, a milícia e o tráfico. Nesse sentido, o ChatGPT é uma metaquestão que só consegue ser entendida à luz de todas essas desigualdades e problemas que nossa sociedade tem.
Para o uso do ChatGPT, é preciso que os professores treinem, participem de processos de formação continuada. Mas como eles participarão disso, se a carreira deles é totalmente precarizada? Se eles precisam correr de uma escola para a outra para ter um salário minimamente digno? Precisamos olhar para essas questões de modo mais complexo. A tecnologia não se dissocia da política. Quem monopoliza a tecnologia? Como ela entra nas escolas públicas, que são as que de fato formam um grande contingente da população brasileira? Essas questões precisam ser colocadas, entendendo que, sozinha, a escola não salva o mundo. Sem ela, tampouco ele é salvo.
IHU – Como o currículo escolar pode ser afetado pelo ChatGPT?
Pedro Henrique de Castro – Primeiro, precisamos entender o que se ensina na escola. O currículo escolar é um campo de disputa e tensões. Quando o próprio ChatGPT tem uma ideia de currículo escolar, é porque existe uma série de atores e agentes disputando o que se ensina e não se ensina na escola. O futuro da educação depende muito da construção do percurso curricular. Ou seja, o currículo escolar não é algo produzido por seres iluminados do Ministério da Educação, ONGs ou institutos que dizem o que deve ou não ser ensinado. Este é um campo em intensa disputa e tensão para que se estabeleçam o percurso de ensino, um conteúdo e materiais didáticos que farão parte da vida do estudante, inclusive o acesso à tecnologia. Atualmente, estamos vivendo a implementação do Novo Ensino Médio – NEM, que vem num discurso muito semelhante de quem é adesista à inteligência artificial.
IHU – Em que sentido?
Pedro Henrique de Castro – No sentido de que é preciso mudar porque a educação tradicional já não serve, e as práticas didáticas e os itinerários formativos necessitam ser novos, alinhados com o mercado de trabalho, criativos e datados de inovação. Contudo, a resolução que o NEM dá aos nossos alunos e às futuras gerações, aquelas que assumirão cargos de trabalho e de poder na sociedade, é, para a grande maioria do ensino público, aula para fabricar bolo de pote. Esse é o exemplo que o jornal O Globo deu recentemente para mostrar no que o NEM está se transformando. A despeito de toda a argumentação de que mudar o ensino médio é necessário, a resolução foi precarizar os nossos alunos para que eles assumam postos de trabalho precarizados. É preciso pensar à luz de todas essas disputas sobre o que é o currículo escolar e o que não é o currículo escolar.
Um conceito que talvez seja fundamental dentro dessa ideia curricular é entender que os conhecimentos escolares são conhecimentos que precisam figurar dentro de relações sociais concretas que trabalham com a dimensão das transformações que queremos ver nas futuras gerações. Se queremos que o ChatGPT ou as inteligências artificiais sejam ferramentas para os nossos alunos, é preciso que eles figurem no currículo escolar. Mas para que eles figurem de forma qualitativa nesses currículos, todos aqueles dilemas, ou parte substantiva deles, precisam ser minimamente sanados. Do contrário, quem vai ter acesso ao ChatGPT, quem vai ter acesso à inteligência artificial? As escolas economicamente elitizadas – e aí há uma possibilidade de aumento das desigualdades.
Existe também a noção de currículo oculto. Ou seja, não é apenas o que está escrito no programa de ensino ou na Base Nacional Comum Curricular – BNCC que será ensinado nas escolas e instituições de educação. O currículo oculto são os rituais, as práticas, as relações hierárquicas presentes dentro de um ambiente de ensino escolar. Isso tudo faz parte do processo educativo. Em uma escola onde há escassez de tecnologia, qual aluno vai ter acesso à tecnologia e qual não vai? Quem decide sobre isso? Essas questões fazem parte do currículo oculto.
Os conhecimentos escolares são importantes para os alunos porque permitem uma compreensão acurada da realidade em que estão inseridos.
IHU – Dominar as inteligências artificiais ou o ChatGPT é importante para o aluno entender a realidade em que está inserido?
Pedro Henrique de Castro – Existe uma defesa da minha parte de trazer essas novas tecnologias relevantes e significativas para os alunos, mas é preciso analisar esse acesso à luz das desigualdades de oportunidades educacionais que temos em nosso país. Do contrário, em vez de um conhecimento relevante e significativo, o ChatGPT só funcionará como um ampliador do abismo das desigualdades entre escola pública e escola privada. O ChatGPT é um direito e um dever da escola. Negar o avanço dessas tecnologias e fazer carta de repúdio não vai funcionar porque a pesquisa sobre essas novas tecnologias não vai parar.
Como usar a nosso favor? Vamos fazer, como fizeram no Rio de Janeiro, uma lei para proibir o uso de celular em sala de aula? Algo completamente inócuo. Ou usaremos o celular como um instrumento pedagógico, contando com acesso universal à internet em nossas escolas? Vamos proibir o uso do ChatGPT ou trazê-lo para dentro da práxis educativa? Talvez a segunda opção seja a que vai permitir o ChatGPT enquanto conhecimento relevante e significativo para todos os alunos, e não para aqueles de determinada classe social.
IHU – Qual o papel do professor nesse processo?
Pedro Henrique de Castro – Precisamos entender quem é o professor. Ele é o especialista no ensinar e no aprender. O que distingue a profissão docente são o ensino e a aprendizagem. Muitos autores dizem que o professor precisa saber lidar com o conhecimento e com o aluno, não só saber profetizar um conhecimento. Até o advento da internet, o professor é visto como um sábio que tem a leitura dos livros e dos conteúdos e que destila seu conhecimento para a turma. Mas isso mudou com a internet e com as tecnologias de inteligência artificial. O docente precisa aprender que não basta apenas profetizar uma aprendizagem. É preciso lidar com a aprendizagem do aluno. O ato educativo não finda em ensinar; ele só se concretiza na aprendizagem do aluno. Isso precisa ficar claro porque o papel do professor, calcado em reprodução e memorização, em tarefas de decorar, será impactado pelo ChatGPT. Essa forma de atuar já não era saudável nas últimas décadas e agora fica muito latente.