Guerrilha do Araguaia ''deixou marcas profundas que não tem como apagar''. Entrevista especial com Sônia e Tânia Haas

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25 Outubro 2012

“Ele perseguia um ideal, e isso tem a ver com a formação que tivemos em casa, de ter um olhar humanitário, de se preocupar com o próximo”, dizem  as irmãs do médico gaúcho, assassinado na Guerrilha do Araguaia há 40 anos.

Confira a entrevista.

Sônia e Tânia Haas são duas gaúchas que tiveram suas vidas marcadas pela ditadura militar. Ainda hoje elas carregam lembranças tristes desse período e tentam esclarecer fatos que, por vezes, insistem em ficar esquecidos. Elas são irmãs do médico são-leopoldense João Carlos Haas (foto), militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), assassinado durante a Guerrilha do Araguaia, em 1972. Ainda crianças, quando João Carlos filiou-se ao partido, Sônia e Tânia perderam o contato com o irmão e tiveram notícias dele através das cartas que enviava. “Essas cartas eram muito genéricas. Ele sempre escrevia: ‘não se preocupem comigo, estou bem, estou fazendo o que gosto’ (...). Ele dizia que logo poderíamos nos ver e matar a saudade. Mas nunca dizia onde estava morando, e não tínhamos como enviar cartas para ele”, conta Sônia. “Nos domingos, sempre esperávamos por ele na frente de casa, sentadas em um banco. Continuamos esperando todos os domingos, por muito tempo”, recorda Tânia. A última carta do irmão chegou em julho de 1968. Ele morreu em 1972, mas a família só soube em 1979.

Com a abertura democrática, Sônia Haas engajou-se na luta pela busca dos desaparecidos políticos e, desde então, fez algumas visitas ao Araguaia, onde seu irmão foi enterrado. “Ainda suspeitamos que João Carlos esteja enterrado no cemitério de Xambioá, e se Deus quiser ainda vamos encontrar seus restos mortais. Nós, familiares, tivemos que ter muita coragem para remexer nesta história, porque não era fácil, sempre sofremos pressões indiretas (...). Cada familiar é engajado na luta coletiva, mas a busca é por cada um dos nossos entes queridos, é pelo resgate da história e a conquista da dignidade do sepultamento”, disse à IHU On-Line, quando esteve, recentemente, em São Leopoldo para participar de uma homenagem feita ao seu irmão pela prefeitura do município.

Quarenta anos depois, Sônia avalia que o irmão foi motivado a participar da Guerrilha do Araguaia porque queria “salvar vidas, ajudar o próximo, ao ver a pobreza do Brasil, o descuido com a educação, com a saúde, com a gestão pública”. Na entrevista a seguir, ela e a irmã Tânia falam das angústias vividas nesse período e das dificuldades de recontar essa história nos dias atuais. “O triste é que tivemos que garimpar tudo por nós mesmas durante muito tempo, porque não recebíamos apoio do Estado. Hoje existe um movimento de responsabilidade da União que faz essas buscas, mas porque está cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de Justiça. (...) A União não teria condições de fazer nenhum trabalho hoje se nós não tivéssemos buscado informações sobre os desaparecidos logo após a ditadura. A história estaria mais esquecida ainda e nossa luta ficaria sem bases”, lamenta.

Sônia Haas é publicitária formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e gestora de Comunicação e Cultura na Companhia de Gás da Bahia – BAHIAGAS, em Salvador, BA. Tânia Haas Costa é formada em Química, e leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

(Foto abaixo: Sônia à esquerda, e Tânia à direita)

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como seu irmão, João Carlos Haas Sobrinho, conheceu o Partido Comunista do Brasil (PCdoB)?

Sônia Haas – João Carlos
cursou Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em 1959, e sempre se revelou um ótimo aluno. Os professores o admiravam e ele acabou sendo uma liderança entre os colegas, porque já tinha essa característica. Desde menino ele organizava festas, jogos de futebol, e os amigos e pais de amigos confiavam nele. Essa característica refletiu no ambiente acadêmico.

Foi vice-presidente da federação dos estudantes do Rio Grande do Sul em 1961. Em 1964, foi eleito presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite, um centro acadêmico muito forte no curso de medicina da universidade. Nessa época, começou a se envolver mais com a política estudantil e com o Partido Comunista, porque membros dos partidos circulavam nas universidades para garimpar lideranças estudantis, e alguém viu o João Carlos liderando uma assembleia, e o convidaram para integrar o partido. Ele deveria ter 22 anos à época. Foi a partir daí que começou esse alinhamento com o PCdoB. Nossa família não tinha conhecimento disso, ainda mais naquele tempo, em que tudo era muito sigiloso.

IHU On-Line – Sua família tinha algum envolvimento político?

Sônia Haas –
O nosso pai tinha envolvimento político, mas não com a esquerda. Quando era mais novo, apoiava a Arena. Várias pessoas já me perguntaram se nós líamos bibliografias de esquerda em casa. Não existia isso. João não teve influência do ambiente familiar. Tanto que soubemos do envolvimento dele com o partido quando se confirmou sua morte, em 1980.

Tânia Haas Costa – Nosso pai apoiava o Partido Democrata Cristão.

IHU On-Line – João comentou seu envolvimento político com o PCdoB?

Sônia Haas –
Não, porque era uma forma de preservar a família. Ele nos protegia muito, e como não tínhamos envolvimento com a esquerda, ele não podia nos colocar em um ambiente que não conhecíamos. Esta opção não foi uma escolha de nossos pais; é uma história diferente da de pessoas que conheci em São Paulo e no Rio de Janeiro, que se envolveram com a ditadura porque os pais estavam envolvidos em movimentos operários, casos em que já tinham toda uma trajetória de luta.

Hoje é muito difícil para a as gerações imaginar uma sociedade em que a comunicação era controlada. Na época, os jornais não chegavam a São Leopoldo. Chegavam a Porto Alegre e, nos períodos mais críticos, em 1970, era difícil encontrar um jornal que falasse sobre a ditadura. Não existia. Ficamos sem saber notícias de nosso irmão durante muitos anos. Sua última carta foi de julho de 1968, e ele morreu em 1972, mas nós ficamos sabendo em 1979.

IHU On-Line – O que João Carlos contava nas cartas?

Sônia Haas
– Essas cartas eram muito genéricas. Ele sempre escrevia: “não se preocupem comigo, estou bem, estou fazendo o que gosto”, com alguns recados nesse sentido, perguntando por todos, um por um, e mandando recados para cada um dos familiares. Ele dizia que logo poderíamos nos ver e matar a saudade. Mas nunca dizia onde estava morando, de maneira que não podíamos lhe enviar cartas.

IHU On-Line – E como tiveram conhecimento de sua morte? Como foi esse momento?

Sônia Haas –
Foi um choque terrível! Nossa mãe recebeu algumas notícias de umas pessoas ligadas a um general, de que alguém havia visto o corpo. Ela ficou assustada e nossa família procurou as pessoas que haviam comentado, mas elas negaram tudo. Imagine você a nossa situação! Esses anos todos sem notícia. A essa altura já imaginávamos que ele estaria envolvido com a política.

Na época, Tânia falou com o André Forster (PMDB), que era professor na UFRGS, onde ela estudava. Ele conseguiu alguns jornais alternativos no qual eram publicadas algumas notícias de movimentos de esquerda. Os órgãos de repressão usavam os jornais para procurar as pessoas. Eles soltavam notícias dizendo que determinada pessoa era assaltante de banco, para ver se alguém da comunidade sabia onde ela estava, denunciando-a. Essa estratégia foi usada com o João Carlos quando ele vivia em Porto Franco, no Maranhão, e atuava como médico. Ele teve de deixar a cidadezinha às pressas.

Tânia e eu compartilhávamos o mesmo quarto, então nós somos parceiras desse assunto, porque o sumiço do nosso irmão sempre nos incomodou. Quando éramos criança, ele era nosso ídolo, morava em Porto Alegre, era queridão, e de repente desapareceu. A nossa mãe também não tinha o que dizer. Quando éramos pequeninhas, eu ditava cartas para a nossa tia Olívia, sua madrinha, escrever a ele. Não sei o que ela fazia com essas cartas, porque não se tinha para onde enviar. Quando eu ia ao cinema, adorava ver a multidão nos filmes, porque achava que ele poderia aparecer. Procuramos por ele a vida inteira. Ficou um vazio em nossas vidas. Não tem como resolver.

Tânia Haas Costa –
Nos domingos, sempre esperávamos por ele na frente de casa, sentadas em um banco. Continuamos esperando todos os domingos, por muito tempo. Naquela época tudo era proibido. Hoje para vocês é muito difícil avaliar a situação. As pessoas falam mal do Lula, desenham charges, criticam e falam publicamente o que desejam. Naquele tempo, não se podia falar nada numa aula, por exemplo. É importante que essa história seja esclarecida, porque ainda escutamos as pessoas falando que a época da ditadura era melhor.

IHU On-Line – Que informações têm sobre a viagem dele à China?

Sônia Haas –
Ainda hoje, dentro do partido, esse é um tema pouco exposto. Não se sabe direito quem foi, onde ficaram etc. São informações que o próprio partido, por ter sido clandestino e vigiado por muitos anos, teve de esconder. Esse assunto não é claramente apresentado. Sabemos que João Carlos foi à China liderando um grupo de aproximadamente 15 pessoas, e ficou lá quase um ano fazendo treinamento de resistência na selva, exercícios físicos para fortalecer a musculatura. Aí aprendeu a atirar, a fazer um mapa estratégico de guerrilha. Enfim, preparam o ambiente ou uma situação similar ao que poderiam encontrar na região do Araguaia. Quando voltou da China, foi direto ao Maranhão, em uma cidadezinha chamada Porto Franco, onde trabalhou como médico por quase dois anos. Neste local, até hoje é reconhecido como médico de alta competência e uma grande pessoa humana, que esteve sempre junto da comunidade em ações voluntárias, esportivas, festivas e de saúde. Em 2011, participei de várias homenagens a ele nesta cidade, sempre carregadas de muita emoção.

IHU On-Line – Hoje, é possível compreender o envolvimento dele com a Guerrilha do Araguaia?

Sônia Haas –
Ele perseguia um ideal, e isso tem a ver com a formação que tivemos em casa, de ter um olhar humanitário, de se preocupar com o próximo. Nossos pais eram pessoas humildes; ninguém teve grandes estudos lá em casa. A nossa mãe nasceu na colônia alemã, em Lomba Grande, e nosso pai era sapateiro. Eram pessoas de caráter muito consolidado, voltadas para o bem, e o João Carlos escolheu a medicina por ter uma sintonia grande com essa causa.

Certamente ele entrou no conflito para querer salvar vidas, ajudar o próximo, ao ver a pobreza do Brasil, o descuido com a educação, com a saúde, com a gestão pública. Ele fez estágio no Hospital Santa Casa, então pode vivenciar momentos críticos em relação a isso. Não queria ser médico para ser rico. As profissões eram escolhidas por vocação. João era a única pessoa lá de casa que foi para a área da saúde, e isso se deu por escolha dele, não foi nada imposto por nossos pais.

Tânia Haas Costa – Quando íamos à praia, nas últimas vezes, ele já estava concluindo o curso, e saía à tarde, de casa em casa, para atender voluntariamente o pessoal que estava doente.

IHU On-Line – Segundo as informações, João Carlos morreu em combate com o exército em 30 de setembro de 1972. O que vocês sabem sobre sua morte?

Sônia Haas –
Sobre o fato mesmo, os arquivos do partido não têm detalhamentos. Os relatos que se têm são dos diários dos dirigentes do partido, ou dos próprios militantes que fizeram anotações informais. Esses relatos foram compilados depois que acabou a guerrilha para contar essa história. Claro que têm muitas lacunas, e até hoje não se sabe tudo.

Como João Carlos morreu na primeira campanha – houve três campanhas e a guerrilha durou dois anos, de 1972 a 1974 –, existia uma comunicação mínima no sentido de informar quais guerrilheiros tinham sido mortos, até porque o exército ainda não estava tão enfronhado na selva, como ficou mais tarde. João Carlos era uma pessoa muito conhecida, muito querida, ele não assumia que era médico, mas indiretamente todo mundo percebia, porque ele fazia curativo nos outros, receitava remédios, cuidava das pessoas. Quando ele morreu – segundo os registros do partido, no dia 30 de setembro de 1972, numa emboscada na selva, próximo a uma cidadezinha de Xambioá, na beira do rio Araguaia –, a notícia se espalhou entre os camponeses que o conheciam. Quando o corpo foi levado a essa cidade, o colocaram na frente da delegacia para amedrontar a população, que era muito amiga dos chamados “paulistas”. Entre os militantes do PCdoB estavam professores, enfermeiras, geógrafos, biólogos, economistas.

Comunistas

O general Bandeira, líder da campanha em que nosso irmão morreu, disse à época: “Está aqui o amigo de vocês, e vocês vão acabar como ele caso ajudem os outros guerrilheiros”. Eles queriam que os camponeses contassem onde o pessoal estava escondido, quais eram os caminhos da mata. Deixaram o corpo exposto em frente à delegacia para amedrontar as pessoas. Porém, a população começou a rezar pelo João Carlos, realizando seu velório ali. Contam que isso aconteceu durante toda a madrugada, e os militares tiveram de recuar. Bandeira se manifestou novamente: “estes comunistas me dão trabalho até depois de mortos”, rechaçando o fato. Mais tarde, pessoas relataram que viram o corpo ser levado para um cemitério próximo a essa delegacia. Dizem que ele foi a única pessoa a ser colocada em um caixote, porque os outros guerrilheiros foram atirados no rio, ou em covas em qualquer terreno, enrolados em lona.

IHU On-Line – Quantas vezes você foi ao Araguaia depois de sua morte?

Sônia Haas –
Eu já fui algumas vezes, acho que umas oito. É uma região bonita e muito marcada por essa história. As pessoas que eram adultas naquele tempo – e muitas já morreram – teriam hoje uns 70 ou 80 anos. Mas a história é contada de pai para filho com carinho e orgulho, e sempre com um zelo pelas pessoas. Elas também perderam familiares, perderam casas, o exército passava por cima de algumas regiões e soltava bomba nas casas para pegar fogo e o pessoal se assustar. Foi uma ação muito bruta, violenta, que deixou marcas muito profundas que não tem como apagar.

Em 1987, quando fui ao Araguaia pela primeira vez, recebi apoio e orientação do jornalista Laurentino Gomes. Ele escreveu uma matéria na revista Veja sobre o turismo no Araguaia, em 1986. Quando eu li, disse: “Meu Deus do céu! Essa é aquela região?”. Liguei para ele. Nunca vou esquecer de que fechei a porta do meu quarto, tremia dos pés à cabeça pensando que ele iria me chamar de louca. Ao contrário, ele me deu os nomes das pessoas para contato, caminhos, e me estimulou muito a ir.

Quando cheguei ao Araguaia, as pessoas não nos deram muita atenção. Ou seja, diziam que não havia mais vestígios daquele tempo, de tanto temor que tinham. Conversei com uma senhora dona da pousada e contei a nossa história, que estávamos à procura de informações para levar para a nossa mãe. Disse-lhe que era do Sul, e ela perguntou: “Onde é isso?” E eu respondi: “É a terra da Xuxa”. Graças a Xuxa eu pude me hospedar naquele lugar.

Depoimentos

Eu tenho dois depoimentos gravados e registrados no Fórum de Xambioá, de moradores de dessa região (Xambioá) que já morreram. São histórias que coletei em 1991. Elas conheceram o João Carlos e viram-no ser sepultado nesse cemitério. O triste da história é que tivemos que garimpar tudo por nós mesmas durante muito tempo, porque não recebíamos apoio do Estado. Hoje existe um movimento de responsabilidade da União que faz essas buscas, mas porque está cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de Justiça. Até pouco tempo atrás esses movimentos eram liderados pela Anistia Internacional ou pela Comissão de Justiça e Paz. Mas todo o esforço para obter informações iniciais e fundamentais sobre os desaparecidos foi feito pela sociedade, pelos familiares, por alguns advogados simpatizantes, por alguns núcleos de OAB que apoiavam o nosso trabalho. No Rio Grande do Sul, quando comecei a procurar pelo João não conhecia as pessoas do centro do Brasil; a OAB/RS me indicou um advogado que demorou para me atender e, quando o fez, não me acompanhou. Pude perceber receio por sua parte.

Aí eu fui obrigada a procurar alguém em São Paulo, e entrei em contato com a Comissão de Justiça e Paz, que tem outra postura. Eles me indicaram um conselheiro dos direitos humanos para ser meu advogado na causa, e aí a coisa começou a tomar outro rumo. Até hoje, advogado Idibal Piveta me apoia e orienta voluntariamente.

IHU On-Line – Como a União tem dialogado com os familiares?

Sônia Haas –
O apoio que recebemos da Anistia Internacional e da Comissão de Justiça e Paz foi fundamental para que pudéssemos dar continuidade ao nosso trabalho nos tempos mais difíceis. Depois, foi criada a Comissão Nacional de familiares de desaparecidos políticos, os Grupos Tortura Nunca Mais em cada estado; são vários organismos que “cobram” que a União cumpra a sentença e que nos dê respostas sobre a apuração das mortes, conforme sentenças determinadas em processos movidos por familiares. A União não teria condições de fazer nenhum trabalho, hoje, se nós não tivéssemos buscado informações sobre os desaparecidos logo após a ditadura. A história estaria mais esquecida ainda e nossa luta ficaria sem bases.

Ainda suspeitamos que João Carlos esteja enterrado no cemitério de Xambioá, e se Deus quiser, ainda vamos encontrar seus restos mortais. Nós, familiares, tivemos que ter muita coragem para remexer nesta história, porque não era fácil. Sempre sofremos pressões indiretas. Se não contássemos com a ajuda de historiadores, de jornalistas, não teríamos informações suficientes para fazer essa busca.

IHU On-Line – Quais foram as principais conquistas dos familiares ao longo desses anos?

Sônia Haas –
Entre as conquistas, destaco a Lei 9.140/1996, que ofereceu atestado de óbito para os desaparecidos políticos. A lista oficial consta no livro “Brasil Nunca Mais”, de Dom Paulo Evaristo Arns. Os familiares receberam um valor indenizatório de R$3 mil correspondente a cada ano de vida das pessoas. A nossa mãe recebeu e usufruiu dessa indenização por alguns anos. Hoje as indenizações conquistadas correspondem a valores altos. Um deputado federal recebeu mais de 1 milhão de reais da União, e está vivo; é um disparate. Mas não é isso que buscamos, nossa causa é mais que isso, é justiça e localização de restos mortais.

O governo de Fernando Henrique Cardoso, talvez até por ter amizade com Rubens Paiva [1], que era um dos casos que precisavam ser resolvidos, nos ajudou muito e conseguiu aprovar essa lei. Cada familiar foi ao cartório da sua cidade e apresentou a lei; o cartório fez contato com a União, liberando o atestado de óbito.

A juíza Solange Salgado acompanha a nossa luta e pediu a abertura dos arquivos e a localização dos restos mortais, mas a União nunca cumpriu e pediu prorrogação. Neste intervalo também houve a sentença da Corte Interamericana, que pede apuração e localização dos restos mortais; solicita também à União que se manifeste nacionalmente com um pedido formal de desculpas à sociedade, porque vários países da América Latina já fizeram isso. Em função disso, o ex-presidente Lula cria a Comissão Especial para cuidar de temas ligados à Guerrilha do Araguaia.

Há uma tentativa da presidente Dilma de investir mais no Grupo de Trabalho do Araguaia, composto por pessoas da sociedade civil, familiares dos desaparecidos, pelo Ministério da Defesa, pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria de Direitos humanos, que estão investigando os restos mortais na região e coletando mais informações com a população local.

IHU On-Line – Como está esse processo?

Sônia Haas –
O Grupo de Trabalho do Araguaia tem ido lá todos os meses. Com a escavação, que é feita a cada mês, alguns restos mortais já foram recolhidos e estão em Brasília para exame de DNA. Trata-se de um esforço muito grande, mas não sabemos se as ossadas não foram retiradas a partir do momento que começamos a visitar a região já na década de 1980. Nunca vamos saber. Enquanto não encontrarmos, continuaremos buscando.

IHU On-Line – A senhora tem conhecimento de outros gaúchos que participaram da guerrilha?

Sônia Haas –
Sim, foram quatro gaúchos. Além do João, Paulo Rodrigues, Humberto Bronca e Cilon da Cunha Brum. Todos lembrados com muito carinho na região do Araguaia, vistos como pessoas de bem.

IHU On-Line – Como o PCdoB se manifesta em relação aos desaparecidos?

Sônia Haas –
O partido reconhece o trabalho dos guerrilheiros; mas, no que se refere à autocrítica, não tenho como falar sobre seu posicionamento. Eles têm um lugar representativo no Grupo de Trabalho Araguaia. Eles contam a história conforme os relatos dos dirigentes que atuaram no local, e de outros pesquisadores da época. Cada familiar é engajado na luta coletiva, mas a busca é por cada um dos nossos entes queridos, é pelo resgate da história e pela conquista da dignidade do sepultamento. Simpatizo com os partidos de esquerda, claro, por alinhamento à questão do meu irmão, mas a luta dos familiares deve ser apartidária. Cada um levanta a sua bandeira e criamos uma nova família. Parece que eu sempre conheci as pessoas que perderam seus familiares na guerrilha, porque compartilhamos os mesmos sentimentos e temos a mesma missão. Hoje, quando marcamos os 40 anos de desaparecimento de João Carlos, e venho ao Rio Grande do Sul para receber homenagens do Museu de Medicina e do Centro Acadêmico Sarmento Leite, em nome do nosso irmão, ratifico a percepção de que sua vida deixou belas marcas por onde passou e que seu reconhecimento é um respeito que a sociedade promove com louvor.

IHU On-Line – Qual é a sua expectativa em relação à Comissão da Verdade?

Sônia Haas –
A Comissão da Verdade surgiu por causa da sentença da Corte Interamericana. Nada é espontâneo, pode acreditar nisso. Então, a Comissão vem para apurar os fatos. O papel deles é colaborar com a apuração e ser um elo entre a União e a sociedade, proporcionar novas fontes de informações, abrir e trilhar novos caminhos nesta busca por verdade e justiça. Nossa expectativa é de que a Comissão da Verdade exerça sua função com bastante seriedade e aprofundamento. Caso contrário, não resultará em coisa alguma.

Nota:

[1] Rubens Beyrodt Paiva
(Santos, 26 de dezembro de 1929 — desaparecido em 20 de janeiro de 1971): engenheiro civil e político brasileiro desaparecido durante o regime militar. Era filho de Jaime Almeida Paiva, advogado, fazendeiro do Vale do Ribeira e despachante do Porto de Santos, e de Araci Beyrodt.

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