Waimiri-atroari: vítimas da Ditadura Militar. Mais um caso para a Comissão da Verdade. Entrevista especial com Egydio Schwade

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20 Abril 2012

Durante a ditadura militar, “nenhum jornalista, missionário ou integrante do Cimi e de outras entidades do movimento popular que pudessem resistir ou manifestar uma posição a favor dos índios tinha acesso às terras dos waimiri-atroari”, diz ex-secretário do Cimi.

Confira a entrevista.


“Os índios waimiri-atroari são desaparecidos políticos, como os demais que desapareceram no rio Araguaia”, defende Egydio Schwade (foto), ex-secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. É a partir desta denúncia que ele reivindica que o massacre contra aproximadamente dois mil índios waimiri-atroari, ocorrido no período da ditadura militar, faça parte da Comissão da Verdade, que tem a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1964 e 1985. Schwade participou do processo de alfabetização dos waimiri-atroari entre 1985 e 1987 e conta que, a partir de desenhos, os indígenas começaram a contar “as atrocidades que haviam ocorrido no período militar”. E enfatiza: “Eles desapareceram porque resistiram contra os projetos do governo militar. (...) Muitos indígenas foram mortos, uns com napalm, outros eletrocutados, uns com armas de fogo”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Egydio Schwade relata que os conflitos entre os waimiri-atroari e o governo iniciaram por conta da construção da BR-174, que “tinha a intenção de acessar uma rica mina de minérios estratégicos, localizada no alto rio Uatumã, próximo ao rio Alalaú”, e da construção da hidrelétrica de Balbina. Segundo Schwade, “tanto a hidrelétrica de Balbina quanto a mineradora ficavam nas terras dos índios waimiri-atroari e, portanto, a BR-174 atravessou no centro das terras dos indígenas”.

Egydio Schwade é graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Cimi e primeiro secretário executivo da entidade, em 1972. Hoje é colaborador dessa instituição, residindo em Presidente Figueiredo, AM.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que contexto político e histórico os dois mil índios Waimiri-Atroari desapareceram? O desaparecimento dos indígenas tem algo a ver com a abertura da BR-174?

Egydio Schwade –
Entre 1967 e 1977, o governo militar construiu a BR-174, a estrada Manaus – Boa Vista, ou Manaus – Caracaraí, como é conhecida. Em princípio, a estrada tinha a finalidade de ligar essas duas cidades. Mas, ao construí-la, o governo tinha principalmente a intenção de acessar uma rica mina de minérios estratégicos, localizada no alto rio Uatumã, próximo ao rio Alalaú. Em seguida, o governo construiu a hidrelétrica de Balbina buscando produzir energia para a Zona Franca de Manaus.

Dizia-se ao povo que o objetivo principal da construção da estrada era facilitar a ligação entre Manaus e Boa Vista, mas os interesses eram outros. Tanto a hidrelétrica de Balbina como a mineradora ficavam nas terras dos índios Waimiri-Atroari e, portanto, a BR-174 atravessou no centro das terras dos indígenas. Naturalmente, eles, desde o início, nunca foram contatados e começaram a resistir diante do avanço das obras.

Ao verem aqueles tratores aparecendo e revirando suas terras, os Waimiri-Atroari começaram a resistir de todas as maneiras. Muitas vezes os tratores amanheciam amarrados com cipós. Essa era uma maneira clara de dizer que não queriam que as obras continuassem. Como essa resistência ficou muito forte, o Departamento Estadual de Estradas de Rodagem do Amazonas-DER-AM, inicialmente responsável pela construção, começou a usar armas de fogo contra os indígenas. Temos diversos ofícios que demonstram que a construtora pedia armamento para o Exército.

IHU On-Line – Como a Fundação Nacional do Índio – Funai se manifestava, na época, em relação a esses empreendimentos nas terras indígenas e, posteriormente, ao desaparecimento dos índios? Qual era a relação da Funai com os militares?

Egydio Schwade –
A Fundação Nacional do Índio – Funai foi criada 1967. Em 1968, quando os conflitos contra os indígenas ficaram mais agudos, a Funai ainda não tinha funcionários na região e, então, pediu ao Pe. João Calleri, da Prelazia de Roraima, que era pessoa experiente, para trabalhar com as comunidades. Ele já havia feito a atração dos índios yanomami e trabalhava há quatro anos na aldeia do Catrimani. Esse padre aceitou trabalhar para a Funai nesse processo de pacificação dos indígenas.

Entretanto, não sabendo dos interesses do governo na área indígena Waimiri=Aroari, ele fez um plano para localizar as aldeias fora do roteiro da estrada. Ao sobrevoar a área, estimou uma população de três mil indígenas. Esse levantamento foi refeito pela Funai em 1972 e confirmou a estimativa de três mil indígenas. Como ele sabia que os índios estavam bem alvoroçados por conta da construção da BR-174, propôs fazer a transferência dos índios para fora do roteiro da estrada, a partir do Norte. Ele tinha a intenção de fazer um grande reduto para os indígenas na região em que fica hoje a mina do Pitinga, onde, então, se concentrava o maior número de aldeias na época. Só que os diretores da construção da estrada não permitiram. Então, contra a sua vontade, o padre entrou pelo caminho Sul, onde os índios estavam alvoroçados e faziam resistência aberta contra a construção da BR-174. Na sua primeira expedição, ele foi morto em circunstâncias ainda não esclarecidas. Mas de qualquer forma, ele foi morto porque estava a serviço desse plano do governo. A partir de então o Exército, através do 6º. BEC-Batalhão de Engenharia e Construção, tomou conta das obras da rodovia.

IHU On-Line – Qual era o posicionamento da Funai nessa época? Havia dissidência no órgão?

Egydio Schwade –
Nessa época, iniciou-se uma estratégia para evitar a entrada de pessoas que pudessem manter contato com os índios e diálogo direto. O governo não queria que pessoas que pudessem escutá-los tivessem contato com eles. Na época, eu era secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário Nacional – Cimi e nós pedimos, numa das primeiras assembléias na Amazônia, realizada em Belém, em 1975, que o governo suspendesse imediatamente a construção da BR-174 para que houvesse contato pacífico com os índios. Mas o governo não aceitou.

Nenhum jornalista, missionário ou integrante do Cimi e de outras entidades do movimento popular que pudessem resistir ou manifestar uma posição a favor dos índios tinha acesso às terras dos Waimiri-Atroari. A legislação oficial era violada pelo próprio governo.

Por conta da posição do governo, iniciou-se um conflito cada vez mais acirrado. A notícia que se tem é de que muitos indígenas foram mortos, uns com napalm, outros eletrocutados, ainda outros com armas de fogo. E a FUNAI não só sabia da violência dos militares contra os índios, mas até participou de reunião com o 6º Batalhão de Engenharia de Construção – BEC onde foi decidido o uso de armas de fogo, dinamite, metralhadoras e de granadas.

IHU On-Line – O senhor teve acesso a esses documentos?

Egydio Schwade –
Sim. Inclusive um funcionário da Funai, Sebastião Amâncio, ao ser nomeado como encarregado da Frente de Atração Waimiri-Atroari em substituição a Gilberto Pinto, morto durante o último massacre dos índios contra funcionários da FUNAI, em entrevista ao jornal O GLOBO, em 5 de janeiro de 1975, disse que mudaria a estratégia de atração da FUNAI. Disse que faria uma demonstração de força dos civilizados, mediante o uso de dinamite, granadas e bombas de gás lacrimogênio, exatamente como determinava o documento secreto elaborado dois meses antes, entre o 6º. BEC e a FUNAI. Os índios tinham que aprender uma lição que os impedisse de matar os civilizados. Havia toda uma estratégia do governo para evitar que os massacres dos militares contra os indígenas chegassem à opinião pública. Por isso, entre 1967 e 1977, eles proibiram a entrada de pessoas fora dos quadros oficiais na área indígena.

Por volta de 1981, quando restavam apenas 374 indígenas sobreviventes e não havia mais condição nenhuma de resistirem aos massacres dos militares, o governo mudou de estratégia. Aí apresentaram à opinião pública os índios como sendo dóceis e agricultores, que poderiam contribuir para o abastecimento de Manaus. Com a nova República parecia inicialmente, que a FUNAI havia mudado. Cientistas e nós do CIMI conseguimos ter acesso às comunidades. Mas em 1987 com a criação do Programa Waimri-Atroari deu-se continuidade à política adotada anteriormente.

IHU On-Line – Foi nesta ocasião que o senhor teve contato com os Waimiri-Atroari?

Egydio Schwade –
Sim. Entre 1985 e 1987 iniciamos um processo de alfabetização dos Waimiri-Atroari. Foi nessa ocasião que os índios começaram a nos contar através de desenhos, da escrita e de viva voz as atrocidades que haviam ocorrido no período militar. Utilizamos o método Paulo Freire e rapidamente eles se alfabetizaram na sua língua materna.

Depois que os Waimiri-Atroari aprenderam a nossa língua, começaram a contar sobre os índios desaparecidos. Então, em certa ocasião, do dia para a noite, fomos expulsos da área indígena. Um linguista da Unicamp e sua esposa, que também participavam do processo de alfabetização em outra parte do território dos Waimiri-Atroari, também foram expulsos da área. Um antropólogo, que já teve bons contatos com os indígenas no período militar e queria completar seus estudos, foi igualmente barrado e não pode sequer entrar na aldeia, apesar das autorizações que portava e da recomendação da universidade.

Depois da nossa expulsão, a Funai, junto com a Eletronorte, criou o Programa Waimiri-Atroari. E por quê? Esse programa foi exigido pelo Banco Mundial, porque, em função do financiamento da hidrelétrica de Balbina, ele começou a ser duramente questionado por entidades internacionais. De forma que ele teve que tomar uma atitude, ou seja, financiar através da Eletronorte durante 25 anos um programa destinado principalmente à educação e à saúde. Na verdade, foi esse programa que continuou com muita elegância e muita diplomacia a estratégia de repressão aos estudiosos, antropólogos, missionários e a todos quantos quisessem levantar a questão dos Waimiri-Atroari desaparecidos.

IHU On-Line – Como os governadores da região se manifestavam diante da construção da BR-174? Eles tinham conhecimento do que estava acontecendo com esses indígenas?

Egydio Schwade –
Claro! Os governadores exigiam a construção da estrada. Danilo Areosa, ex-governador do Amazonas, dizia: "nós precisamos dessa estrada para termos acesso às minas e ao minério que nos dará subsídio para termos finanças, para atender à saúde e à educação no nosso estado”. Essa era a justificativa. O governador de Roraima dizia o seguinte: "não podemos deixar que meia dúzia de tribos indígenas venha impedir o desenvolvimento de Roraima”.

IHU On-Line – Por que a história dos Waimiri-Atroari nunca veio à tona?

Egydio Schwade –
Por causa da política dos grandes projetos do governo, que considera uma hidrelétrica mais importante do que as pessoas, que considera uma estrada que liga uma mineradora ou mesmo um estado a outro mais importante do que os seres humanos.

A hidrelétrica de Balbina foi construída para garantir os interesses da Zona Franca de Manaus. Da mesma forma, hoje, Belo Monte está sendo construída para garantir energia que não beneficiará os brasileiros. Por que o governo não utiliza os telhados das grandes cidades para instalar uma energia renovável a partir da energia solar? Não há interesse nesse modelo de energia e de desenvolvimento.

IHU On-Line – Ainda existem comunidades Waimiri-Atroari? Quantos indígenas são e como vivem?

Egydio Schwade –
Existem. Depois da ditadura militar, eles começaram a se recompor e hoje já são mais de 1.000 pessoas. Parte deles vive em Roraima e outra parte no Amazonas.

IHU On-Line – Tem ainda contato com eles?

Egydio Schwade –
Uma jornalista me entrevistou recentemente e me disse que ela mesma sofreu diversas vezes a restrição do PWA em suas tentativas de contato com os índios. Quando pede para falar com os índios os funcionários arrumam alguma desculpa. Dizem que os indígenas "estão em festa ou estão caçando”. Eles evitam a aproximação com jornalistas. Vivo com a família próximo dos Waimiri-Atroari. Em 1997, quando nós começamos a criar abelhas, um grupo de Waimiri-Atroari pediu um curso sobre Criação de Abelhas. Ministramos o curso aqui na nossa casa. Eles participaram do curso e nos convidaram para irmos à aldeia para dar continuidade. Mas também somos impedidos pela mesma estratégia do PWA referido acima.

IHU On-Line – O que os Waimiri-Atroari dizem a respeito da ditadura militar?

Egydio Schwade –
A situação é complicada, porque alguns já foram "trabalhados” pela Funai e não querem relembrar o que aconteceu na ditadura. Mas como nós tivemos essa oportunidade de escutá-los, eles contaram como ocorreram as torturas e mortes.

IHU On-Line – Por que o senhor quer que o massacre contra os índios Waimiri-Atroari faça parte da Comissão da Verdade? Qual sua expectativa? Essa proposta já foi apresentada ao governo brasileiro? Qual a reação?

Egydio Schwade –
Levantei essa questão porque os índios Waimiri-Atroari são desaparecidos políticos, como os demais que desapareceram no rio Araguaia. Eles desapareceram porque resistiram contra os projetos do governo militar. Pelo que estou escutando nos últimos dias, parece que está se formando finalmente a Comissão Nacional da Verdade e ela está decidida a considerar essa perspectiva também. Estou falando sobre os Waimiri-Atroari, mas têm muitos outros povos que foram massacrados de forma semelhante. Por exemplo, os Paracanã em função da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, no estado do Pará.




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