"Afinal, a política da Israel aplicada em Gaza tem semelhança com o nazismo?".
O artigo é de José Geraldo de Sousa Junior, publicado por Jornal Estado de Direito, 03-04-2024.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Este é um ensaio altamente interpelante, mais um daqueles que vem caracterizando o ensaio-reportagem do jornalista Luiz Cláudio Cunha.
Uma nota memorialista para informar aos leitores de que estirpe de jornalista estamos falando. Luiz Cláudio Cunha. Jornalista, consultor da Comissão Nacional da Verdade no período 2012-2014. Gaúcho de Caxias do Sul, começou sua carreira em 1969 na Folha de Londrina, no Paraná.
Autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (Ed. L&PM, 2008), recebendo da Câmara Brasileira do Livro no ano seguinte ao seu lançamento o Prêmio Jabuti, além de menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ambos na categoria Livro-Reportagem. O texto evidencia um tempo em que adversários eram punidos com a tortura, o desaparecimento e a morte. Nas palavras da editora, “o sequestro dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz em 1978, numa ação dos órgãos de repressão do Uruguai e do Brasil, expôs as vísceras da sinistra Operação Condor à opinião pública brasileira e internacional. Fundada em 1975 no Chile de Pinochet, a Condor era uma vasta ação terrorista de Estado que atropelava fronteiras nacionais e afrontava direitos humanos, forçando o desaparecimento de quem ousasse contestar os regimes de força dos generais. Dissidentes políticos eram caçados por comandos clandestinos militares e policiais”.
Em Porto Alegre, foi repórter especial de Zero Hora e dirigiu a sucursal da revista Veja entre 1972 e 1980, até se transferir para Brasília, onde chefiou as sucursais das revistas Veja, Isto É e Afinal, e dos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Diário do Comércio e Indústria e Zero Hora. No Rio de Janeiro, foi editor do Informe JB no Jornal do Brasil. De volta a Brasília, foi repórter especial da Rede Globo, correspondente da coluna de Ricardo Boechat em O Globo, editor-contribuinte da revista Playboy e colunista político do Correio Braziliense.
Para quem quiser estabelecer contato, o e-mail de Luiz Cláudio, que aliás está ao pé de sua mini biobliografia por ele mesmo preparada para a edição deste Cadernos IHU ideias: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
Tive a chance de construir a ponte para a edição do texto pelo IHU – Instituto Humanitas Unisinos, apresentando Luiz Cláudio ao seu Diretor Inácio Neutzling, meu amigo desde os tempos de assessoramento à CNBB (Dom Ivo e Dom Luciano), no período da Constituinte.
Foi assim que, feitas as apresentações, Luiz Claúdio apresentou sua proposta de edição: “Meu texto, que envio em anexo, é um esforço vigoroso de pesquisa de mais de três meses para traçar um inédito paralelo entre as práticas nazistas no Gueto de Varsóvia e as técnicas de extermínio sionista no Gueto de Gaza – ambas truculentas e visando o extermínio de comunidades civis e desarmadas diante do poderio bélico dos opressores. Tenho certeza de que não existe no Brasil nenhum texto tão contundente quanto o meu na denúncia desse absurdo, que se repete agora em Gaza, oito décadas depois do massacre cometido em Varsóvia. Um absurdo que se renova, agora, com atores invertidos – e sempre pervertidos. Faço também uma avaliação dura sobre o pífio e parcial desempenho da imprensa brasileira. É inédita simplesmente porque nenhum meio de comunicação se atreveu a um julgamento de autocrítica tão rigoroso sobre sua própria atuação. Escrever honestamente sobre esse fracasso profissional não é uma atitude previsível de auto avaliação da mídia nacional. Um detalhe importante, Inácio, é o tocante – por vezes chocante – material gráfico, com mais de 80 fotos exaustivamente pesquisadas e selecionadas por mim em arquivos de jornais e de museus ligados ao Holocausto e à Segunda Guerra Mundial. Elas traçam um paralelo veemente, nunca antes visto, entre as atrocidades cometidas em Varsóvia e agora renovadas em Gaza. São uma parte inseparável do meu texto, porque provam e comprovam fotográficamente a dramática situação genocida vivida por judeus e por palestinos no espaço de 80 anos. Todas as fotos estão com os devidos créditos e com legendas precisas, que sincronizam e enriquecem o texto. Ao longo do meu artigo, a intenção é dar ao leitor um texto e um contexto que explicam e justificam a comparação histórica, mostrando suas perturbadoras, inquietantes simetrias e permitindo uma didática reflexão sobre os fatos. Tive o cuidado de personalizar e focar minha crítica na figura politicamente maligna de Benjamin Netanyahu, tentando não incriminar a sociedade israelense, que abrange setores democráticos e progressistas que se opõem corajosamente à política extremista e excludente do seu belicoso premiê”.
Foi assim que, acolhida a proposta, logo se mostrou adequada a publicação no Cadernos IHU ideias. Se para Luiz Cláudio “o mais importante é aquele que, a juízo de vocês, dê maior visibilidade e garanta maior tempo de exposição. Essa, com certeza, não é uma manchete que deva sobreviver apenas algumas horas, de um dia para o outro, na implacável letalidade da internet. Quanto mais tempo sobreviver num espaço de destaque da HUMANITAS, melhor e mais ampla será a reflexão de um tema tão doloroso e dramático quanto este da chacina de civis em Gaza”.
Um desses modos de fazer o tema receber mais responsável reflexão, a partir do veículo da publicação, é abrir outros espaços para trocas leais de interpretação-ação para confrontar um tema que angústia, que afere a nossa humanidade. Assim, o debate já preparado pelo IHU para acontecer no próximo dia 9 de abril.
Mesmo que em geral, logo que publicado o Caderno, a matéria tenha sido levada em sua devida consideração, mas com muito respeito à interpretação conduzida pelo autor, não faltou uma reação incisiva de críticos bem posicionados mas que investidos da origem ou da convicção judaica, se ressinta como descendente povo judeu ou da confissão judaica e tome como antissemitismo a crítica que se faça o que já está sendo assentado como uma ação neocolonial e genocida do governo (e até do Estado de Israel contra o povo palestino assentado em Gaza).
São reações que estabelecem haver impropriedade entre realidades segregacionistas ou de extermínio, rejeitando que se compare o holocausto sofrido pelos judeus sob o nazismo, como equivalente ao que se impõe pelo governo de um estado judeu, aos palestinos de Gaza.
Anoto uma reação:
Povo perseguido em 1943 pela barbárie nazista na Polônia e convertido, em 2023, em um Estado vingativo que bombardeia impiedosamente hospitais, escolas, ambulâncias, mesquitas, mulheres, crianças e dois milhões de civis inocentes no enclave palestino de Gaza. A dramática inversão de papéis dos judeus atacados no Gueto de Varsóvia para os judeus atacantes no Gueto de Gaza – a inacreditável degeneração do judeu perseguido para o papel de judeu perseguidor – marca talvez o pior retrocesso moral e ético dos princípios civilizatórios de um povo no curto espaço das últimas oito décadas da Humanidade. A impensável conversão de Israel ao horror nazista tem agora um pretexto de sangue e terror.”
Me bastou ler o início do artigo para ver a confusão proposital que é feita entre o povo judeu e o Estado de Israel… LAMENTÁVEL!
Igualar o que está acontecendo em Gaza, que é terrível e deve ser criticado, com o holocausto é um enorme equívoco…
Não vale a pena responder tanta ignorância histórica além do óbvio antissemitismo. Mas a gente anota e sempre saberemos o que eles escreveram no verão passado.
De “judeu perseguido” a “judeu perseguidor”! Misericórdia! Eu sempre soube que éramos extraordinariamente racistas em relação aos pretos. Só não fazia ideia que também éramos tão antissemitas. Triste demais.
Vê-se que o crítico nem prosseguiu com a leitura. Estancou na primeira frase e já deu por imprestável toda a pesquisa e o eixo narrativo da matéria produzida por Luiz Cláudio.
Mas no geral, a publicação tem sido recebida com a admissão de sua seriedade jornalística e historiográfica. Destaco o comentário do também jornalista Luis Nassif, publicada no Jornal GGN: Varsóvia e Gaza, as semelhanças dos métodos nazistas, por Luiz Cláudio Cunha.
Diz a matéria:
Afinal, a política da Israel aplicada em Gaza tem semelhança com o nazismo? Durante 3 meses, o jornalista Luiz Cláudio Cunha – repórter que ajudou a desvendar a Operação Condor na América do Sul.
Seu trabalho permite uma comparação assustadora entre o premiê sionista Netanyahu e o general nazista Jurgen Stroop que comandou a chacina em Varsóvia.
O trabalho, de 20 mil palavras, tem o título “Varsóvia e Gaza: dois guetos e o mesmo nazismo” e saiu originalmente no IHU.
Na abertura, Cunha já extravasa sua indignação com ambos os genocídios:
“O judeu assassinado e o judeu assassino. Oitenta anos separam essa brutal metamorfose de um povo perseguido em 1943 pela barbárie nazista na Polônia e convertido, em 2023, em um Estado vingativo que bombardeia impiedosamente hospitais, escolas, ambulâncias, mesquitas, mulheres, crianças e dois milhões de civis inocentes no enclave palestino de Gaza”.
“A dramática inversão de papéis dos judeus atacados no Gueto de Varsóvia para os judeus atacantes no Gueto de Gaza – a inacreditável degeneração do judeu perseguido para o papel de judeu perseguidor – marca talvez o pior retrocesso moral e ético dos princípios civilizatórios de um povo no curto espaço das últimas oito décadas da Humanidade.”
Cunha reconhece a brutalidade do ataque do Hamas a civis israelenses.
“Foi o maior atentado terrorista no mundo desde o 11 de setembro de 2001, quando 19 membros da Al-Qaeda de Bin Laden sequestraram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos – atingindo entre eles as torres gêmeas de 110 andares do World Trade Center, em Nova Iorque”
A reação judaica desonrou a tradição humanista dos judeus:
“Líderes notórios máximos de Israel, incluindo generais, jornalistas, celebridades e destaques das redes sociais, se lambuzaram na defesa da punição coletiva em massa. Um constrangedor surto de desmemória para um povo que sempre lembra ao mundo a brutalidade de que foi vítima na barbárie do Holocausto nazista”
Cunha lembra as declarações de Netanyahu prometendo transformar Gaza em ilha deserta; e do major-general Yoav Galant, Ministro da Defesa de Israel, afirmando que lutavam contra “animais humanos”.
Segue-se um festival horrendo de racismo, de pregação do genocídio por parte de figuras ilustres de Israel. O ápice foram as declarações do general Giora Eiland, 71 anos, um dos militares mais influentes do país:
“Israel deve criar um desastre humanitário sem precedentes em Gaza. Somente a mobilização de dezenas de milhares e o clamor da comunidade internacional criarão a alavanca para que Gaza fique sem o Hamas ou sem pessoas. Estamos em uma guerra existencial”.
A caçada de Israel aos “terroristas”: as tropas de Benjamin Netanyahu no combate implacável ao inimigo…
Mas o personagem similar a Netanyhau, segundo Cunha, é o tenente-general da SS nazista, Jurgen Stroop que, aos 47 anos, seguindo ordens expressas de Hitler, exterminou em 1943 o que restava do gueto de Varsóvia e seus 400 mil habitantes.
Conta Cunha que os 350 mil judeus eram um terço da população de Varsóvia antes da Segunda Guerra Mundial. Era a segunda maior cidade judaica do mundo, só ficando atrás de Nova York. Os judeus foram confinados num gueto espremido de 3 km2, o correspondente a apenas 2,4% da área de Varsóvia.
Em 16 de novembro de 1940, os nazistas obrigaram os judeus a construir um muro de tijolos de três metros de altura, cercando o gueto. “Não era tão imponente quanto o muro que Netanyahu mandou fazer para cercar Gaza, um colosso de conreto de 65 km de extensão, torres de vigilância, alta tecnologia, seis metros de altura e vinte metros abaixo do solo”.
Os judeus de Varsóvia tinham uma ração diária de 184 calorias, o erquivalente a um único ovo cozido; “A maior diferença do gueto de Varsóvia sobre Gaza é que, na Polônia, os judeus não engoliam a ração indigesta de 42 bombas por hora e a rotina de até 200 rasantes diários da Força Aérea que o judeu Netanyahu vomita sobre os palestinos em Gaza”.
Eu próprio fui acusado de antissemitismo porque em comentários entre um e outro repositório fiz críticas à reação desproporcional de Israel que se protege como em estado de guerra, não contra um estado beligerante e com forças armadas, mas ao fim e ao cabo. Contra um povo.
Em texto publicado no Correio Brazilense, e depois reproduzido na página do IHU, me refiro à realidade de Gaza e da necessidade de parar a “carnificina” e restaurar a força do direito internacional.
O governo do Brasil afirmou, em manifestação na Corte Internacional de Justiça, em Haia, na Holanda, nesta terça-feira (20), que a comunidade internacional não pode normalizar a ocupação de territórios na Palestina por Israel. No espaço das audiências públicas para ouvir a posição dos países-membros das Nações Unidas sobre os 56 anos de ocupação de Israel em territórios palestinos, que a CIJ realiza, a avaliação do Brasil busca interromper o curso de uma resposta unilateral de Israel que, descolada da via jurídica do direito internacional, acaba levando a uma ação não de força, mas de pura violência, “desproporcional e indiscriminada”, que não expressa uma disposição de justiça e se cobre de finalidade geopolítica, neocolonial.
A intensidade da ação militar na região havia levado o presidente Lula a classificá-la como “genocídio”, na esteira das preocupações lançadas pela CIJ, a ponto de comparar a ofensiva como equivalente àquela infringida aos judeus na Alemanha nazista.
A manifestação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita durante a 37ª Cúpula da União Africana, não foi um arroubo. Só a vê assim aqueles que, por posicionamento ou tática política de mobilização de interesses e de alianças, estão de acordo com a prepotência da intervenção de força para concretizar hegemonias de qualquer matiz, estratégica, econômica ou ideológica. No local ou no global, acaba difundido uma narrativa que esconde a intencionalidade de suas razões, deslocando a objeção que deveria se dirigir ao argumento, para desqualificar o oponente.
Note-se que a manifestação não é a de uma voz isolada. O Vaticano, pela palavra do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, também falou de uma resposta “desproporcional” em comparação com o ataque do Hamas. É preciso “parar a carnificina”. O direito à defesa, o direito de Israel de garantir a justiça para os responsáveis pelo massacre de outubro, não pode justificar essa carnificina.
A posição do presidente Lula, desde o início do conflito, mantém-se coerente e firme, na chamada à mediação pelo direito internacional, como pela possibilidade mediadora de um conjunto de países, com assento na Assembleia Geral, mas que não têm seus interesses estratégicos envolvidos na região e no conflito, ou em sua ideologia.
Em minha participação, juntamente com Cristovam Buarque — os dois únicos sul-americanos convidados e presentes no Colóquio Internacional de Argel – Encontro de Personalidades Independentes sobre o tema “Crise du Golfe: la Derive du Droit”, instalado exatamente em 28 de fevereiro de 1991, dia do cessar-fogo na chamada Primeira Guerra do Golfo, o que procuramos foi indicar, a partir da premissa de convocação do Colóquio, que a crise coloca o direito à deriva, tendo perdido o seu rumo no trânsito ideológico entre a “historicidade constitutiva dos princípios que consignam a sua força e força mesma, representada como Direito porque formalizada como norma de Direito Internacional”.
Já então, uma inquietação com o emprego hegemônico de razões de fato, para que, em qualquer caso, principalmente quando há nítida disparidade entre forças, inclusive militares, que se deixem arrastar por um pretenso “direito de violência ilimitada”, cuja resultante “sugere a cessação da beligerância pelo aniquilamento inexorável de toda forma de vida”. Minhas razões completas estão no texto “A crise do Golfo: a deriva do Direito” (in SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Sociologia jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 133-144).
O que urge é “restaurar a humanidade incondicional em Gaza”. Essa é afirmação de um médico sem fronteiras. O que assistimos aqui, diz ele, em matéria que me enviou o querido amigo Alessandro Candeas, o incansável e presente diplomata brasileiro, embaixador do Brasil na Palestina: é um “bombardeamento indiscriminado [que] tem de acabar. O nível flagrante de punição coletiva que está atualmente a ser aplicado ao povo de Gaza tem de acabar”. É preciso “parar a carnificina”. Resgatar o humano que se perde nesse drama. E restaurar a mediação dos verdadeiramente fortes, que confiam e aplicam a força cogente (Hannah Arendt) do direito internacional e dos direitos humanos.
Confirmo que o trabalho de Luiz Cláudio Cunha é ainda agora aquilo que ele próprio caracterizou em seu livro Todos temos que Lembrar – A lição e a missão do jornalista. CUNHA, Maria Jandyra C. (Org.), CUNHA, Luiz Cláudio, SOUSA JUNIOR, Jose Geraldo de, MOTTA, Luiz Gonzaga, TAVARES, Flávio e BUARQUE, Cristovam. Brasília: Editora UnB, 2013, no qual tenho participação por consideração de sua esposa e organizadora.
O livro é a reunião das manifestações – memorial, pronunciamentos e declarações de outorga da sessão solene do Conselho Universitário da UnB para a concessão do título de Notório Saber ao grande profissional assim galardoado.
Tal como salientei aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, para mim, que presidi a cerimônia, foi esse o grande sentido da manifestação do homenageado, como designei em minha manifestação, que a Organizadora trouxe para o livro dando-lhe como título: a lição do jornalista (p. 47-51).
Se bem tenha iniciado meu discurso com o esclarecimento sobre o conceito da distinção – notório saber – inscrita no estatuto da universidade e, assim, explicado que um título de Notório Saber é especial porque os outros títulos previstos são certificações que fazemos a partir dos cânones que a própria Universidade estabelece, mas o faz para diplomar percursos, carreiras, que ela acompanha, avalia e qualifica. O Notório Saber é diferente, porque a Universidade vai ao encontro de quem, independentemente dela, construiu um percurso em que com seu saber próprio – aquele saber de experiências feito, reivindica da Universidade que ela se abra para essa interlocução muito peculiar. E que ela que se arvora ser o lugar exclusivo de certificação, passe a reconhecer que há outros lugares em que o saber, o conhecimento, também se organiza.
O que distingue a Universidade é ela poder ser o lugar em que todos os saberes podem dialogar. Naturalmente, é essencial que dialoguem prática e teoria: o saber da vida prática, que organiza a nossa ação no mundo, com o saber universitário, o saber acadêmico, o saber sistematizado. Entretanto, o conhecimento de notório saber tem essa dimensão exponencial, para provocar o diálogo. Porque reivindica do saber normalizado, abrir-se para a pluralidade interpretativa do mundo.
Lembrar para contar. Se o notório saber alude à prática, a prática pensada é sempre oportunidade para grandes lições. Tal a grande lição que oferece o homenageado. A lição de um grande jornalista. Como jornalista, ele diz, é preciso lembrar para contra. Isso também disse Gabriel García Márquez, outro grande jornalista (Viver para Contar. Rio de Janeiro: Record, 2ª. edição, 2003).
E o jornalista nos ofereceu uma grande lição, se conferimos o seu texto. Ele lembrou uma quadra sombria da história brasileira, uma história de extrema violência institucional, de enorme perigo, principalmente para a higidez das próprias instituições. O alcance da lição está em que ela não isola no passado um acontecimento para recuperá-lo por meio de uma narrativa embora crítica. Mas porque ela mostra que o passado se enrosca no presente e furtivamente se prorroga para o futuro. É recidivo, repristinatório. Sua sombra densa se estende na paisagem e eventualmente ganha nitidez. Como nesse momento, ainda obscuramente mas já se prenunciando em meandros palpáveis. Uma institucionalidade que se fragiliza, uma representação que se falseia, uma juridicidade que se esgarça e eis o paroxismo que volta à tona. O monstro do fascismo não dorme, hiberna.
Por isso outra grande lição, esta do historiador (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História. In Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 3a. edição, 1987, p. 222-232): construir a história como um relampejar do momento em que vivemos no perigo para que a nossa consciência aberta sobre o seu significado nos oriente à ação transformadora, para o nunca mais.
Em Luiz Cláudio Cunha, a lição visa a abrir a experiência política para a democracia, para recuperar o sentido legítimo da anistia que não se preste de abrigo para perpetradores de crimes contra a humanidade e para a realização plena do projeto de sociedade inscrito na Constituinte de 1988. Projeto contra o qual estão em permanente armação golpes letais de opressões e de espoliações de ontem e de hoje, e dos autoritarismos impertinentes, de qualquer natureza, legislativos, judiciários, midiáticos, civis e militares com os quais se instalam, felizmente, nunca de forma permanente.
Mas visa também abrir a grandeza da política e do direito para vencer a monstruosidade, a barbárie que desumaniza. Por isso é razoável o trabalho atual de Luiz Cláudio Cunha que esta edição do Cadernos IHU ideias promove e que se sintetiza na conclusão do Autor: “É impossível fazer a equivalência de 6 milhões de judeus chacinados pelos nazistas ao longo dos 12 malignos anos do III Reich com o massacre de 30 mil civis palestinos em apenas quatro meses de bombardeios em Gaza. Não é uma questão burra de matemática. É mais do que isso: é uma argumentação ética e moral sobre os padrões civilizatórios da humanidade. Vale para o nazismo cruel de Hitler, vale para o sionismo brutal de Netanyahu”.
De todo, esse tema difícil, confunde e torna igualmente difíceis os posicionamentos, quando pressupõem outras tantas questões igualmente tensas – xenofobia, sionismo, antissemitismo – e nele me movo com o cuidado obsequioso de não ultrapassar limites do razoável e do criticamente ético, para generalizar-se como racismo. Quero ter presente em minha cogitação o texto sensível que recebi de um parente querido, judeu, mais enraizadamente brasileiro, autoria de uma intelectual também brasileira, mas enraizadamente judia – (texto de Lia Vainer Schucman), que eu não conhecia nem sei como circulou: “A traidora… Eu – que havia aprendido com os movimentos com os quais trabalho que quando alguém diz que está vivendo racismo, é bom parar para escutar – aprendi também na marra que judeus não contam. E que, sim, estava vivendo a pior chaga do preconceito, de ser acusada daquilo que se é e não se pode deixar de ser. No meu caso, judia… De uma maneira ou de outra fui me sentindo sozinha, como era possível que ninguém das pessoas ao lado de quem sempre estive percebesse que os ataques eram racistas? De um dia para outro parecia que eu tinha me tornado outra, que minhas ideias haviam mudado, que eram duvidosas, e que afinal eu poderia ser uma traidora”.
Meu parente, muito querido, progressista, preocupado com algumas de minhas manifestações sobre esse assunto ainda me acrescentou um comentário, que guardo como um modo ativável de atenção quando trato desse tema, como agora o faço: “A convergência, neste texto, de ideias tão importantes já teria sido suficiente. Mas sinto necessário agregar e testemunhar que a Lia esteve muito longe de se omitir em relação ao conflito em Israel e em Gaza. Escreveu, pelo contrário, sobre ele, inclusive em jornais de grande circulação. Li análises suas extremamente lúcidas, que não achatam a complexidade da vida, da situação e nem deixam de ver a urgência de ações, textos que ajudaram a mim e a muitos que os leram. Lia Vainer participa ativamente de um fórum de judias e judeus preocupados com os rumos deste conflito trágico, com suas vítimas, com a ação que é possível ter”.