12 Março 2024
"Essa separação artificial entre paz e democracia é o resultado de uma moderna ideologização da guerra e deve ser rejeitada a todo custo: só a democracia pode construir uma verdadeira paz na justiça", escreve Ezio Mauro, ex-diretor dos jornais La Stampa e La Repubblica, em artigo publicado por La Repubblica, 11-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A guerra é a emergência absoluta do nosso tempo, na Ucrânia e no Oriente Médio. Sobre isso a opinião pública concorda, mas apenas sobre isso.
A interpretação da emergência, as suas causas e as consequentes responsabilidades, as medidas a tomar para sair dela, agora dividem o nosso mundo verticalmente, pondo à prova os valores nos quais sempre afirmamos acreditar e sobre os quais construímos a nossa civilização.
Aqueles valores eram frágeis, ou simplesmente a guerra é mais forte: mas é evidente que enquanto o conflito prossegue sem encontrar uma saída, os nossos princípios não parecem mais capazes de manter unido o Ocidente que os assumiu como referência. Isso significa que estamos entrando em uma fase desconhecida, sem uma bússola ideal capaz de guiar os nossos passos, tendo às nossas costas uma história compartilhada que nos trouxe até aqui, mas o desconhecido está diante de nós porque não temos mais um código civil e moral comum em que acreditar.
Por um capricho do calendário, as duas diferentes leituras da crise que dividem a nossa sociedade tomaram forma diante de nós com poucas horas de intervalo uma da outra, personificadas pelo Papa Francisco e por Joe Biden. Numa entrevista à rádio e televisão suíça, Bergoglio indicou a negociação como a única saída possível para a guerra da Rússia com a Ucrânia, exaltando a via do diálogo entre as partes, a ser perseguida a todo custo. No impulso ético e humanitário de evitar outras vítimas e outros sofrimentos, o Papa chegou a sublinhar que “é mais forte quem vê a situação, quem pensa no povo, quem tem a coragem da bandeira branca, de negociar. E hoje se pode negociar com a ajuda das potências internacionais. A palavra negociar é corajosa: quando você vê que está derrotado, que as coisas não estão indo bem, é preciso ter a coragem de negociar. Você tem vergonha, mas com quantas mortes isso vai acabar? Não tenham vergonha de negociar antes que as coisas piorem”.
É a posição tradicional da Santa Sé, que também ofereceu o seu papel de mediação, pela abertura de um diálogo diplomático. Mas as palavras de Bergoglio ("quando você vê que está derrotado", "a coragem da bandeira branca”) parecem recortadas especificamente para o front ucraniano da guerra e para a figura de Zelensky, como se pesasse inteiramente sobre Kiev o ônus de uma solução, com o risco de transformá-la assim numa verdadeira rendição: sem envolver a Rússia no mesmo esforço de iniciativa e de responsabilidade, pelo contrário, eliminando qualquer referência à agressão e à invasão, como se a história fosse perdoada ao Kremlin.
Um apelo veemente, portanto, que privilegia o elemento humano sobre o político, na total confiança na providência de uma diplomacia onipotente, mas assimétrica, como se o Papa pensasse – mas, sem dizê-lo - que os homens de boa vontade hoje estão apenas de um lado: cabe à sua consciência o esforço generoso para reencontrar a paz, valor absoluto que para Francisco absorve, supera e hierarquiza todos os outros princípios ideais.
Em vez disso, existe todo o sentido trágico da história (e, portanto, o drama da política) no discurso de Presidente dos EUA, Biden, sobre o Estado da União. Por três gerações, em quase noventa anos, não havia ressoado um alarme tão grave no salão do Congresso desde que, em janeiro de 1941, Franklin Roosevelt havia se dirigido à nação sinalizando “um momento sem precedentes na história”, com Hitler marchando para a guerra na Europa para atacar a liberdade e a democracia em todo o mundo.
“Esta noite me apresento nesta mesma câmara – disse Biden – para alertar o Congresso e o povo: é desde os tempos do Presidente Lincoln que a liberdade e a democracia não estavam sob ataque como hoje, tanto na nossa casa como no exterior. A Rússia de Putin está em marcha, invadiu a Ucrânia e não vai parar. Não vamos nos dobrar. A história está nos observando, como aconteceu aqui mesmo há três anos, no dia 6 de janeiro, quando os insurgentes invadiram o Capitólio e esfaquearam a democracia americana. Não eram patriotas, queriam impedir a transferência pacífica do poder e derrubar a vontade do povo americano. Mas fracassaram e a democracia prevaleceu. No entanto, a ameaça continua forte e a democracia deve ser defendida com firmeza. Não se pode amar o país apenas quando se ganha. Peço a todos, independentemente do partido, que defendam a democracia contra todas as ameaças estrangeiras e internas”.
A novidade, até dramática, desse chamamento às responsabilidades da política é evidente.
Biden pega o fio que liga a insurreição subversiva e anticonstitucional do populismo radical de direita na América trumpiana, com a quebra da ordem mundial, do direito internacional e da convivência civil pelo imperialismo reacionário de Putin. O que emerge simultaneamente nas duas superpotências é a rejeição da democracia, das suas regras, das suas garantias e dos seus vínculos. Isso, depois da denúncia do presidente estadunidense, torna-se o sinal que marcará a nossa época: a rebelião contra a democracia, que é também uma ameaça à própria sobrevivência de uma cultura liberal e dos seus fundamentos nas constituições, nas instituições e na sociedade, ou seja, aos costumes civis que praticamos desde o pós-guerra, ao nosso modo de viver cotidiano. Um ponto em comum entre Biden e o Papa é a consciência de gravidade da crise.
Uma emergência humanitária para Francisco, que pede aos homens que abram espaço para a negociação da paz; uma emergência política para o presidente estadunidense, que pede aos estados que defendam a democracia ocidental, o verdadeiro alvo da guerra na Europa.
Essa separação artificial entre paz e democracia é o resultado de uma moderna ideologização da guerra e deve ser rejeitada a todo custo: só a democracia pode construir uma verdadeira paz na justiça. Aliás, esse desencanto do Ocidente pela liberdade, por mais garantida que seja nessa parte do mundo, funciona como brecha para os adversários conjuntos da democracia, é o seu aliado doméstico clandestino: há, portanto, algo a rejeitar e muito a defender, antes de aceitar a rendição da democracia.
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As duas guerras de Biden e do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU