08 Março 2024
Escrever sobre um fenômeno aberto, que ainda está sendo narrado, apresenta muitos desafios. O grupo de intelectuais que escreveu Está entre nosotros: de dónde sale y hasta dónde puede llegar la extrema derecha que no vimos venir? (Siglo XXI) os enfrentam sem nenhum problema.
Sergio Morresi, Ezequiel Saferstein, Pablo Semán, Melina Vázquez, Martín Vicente e Nicolás Welschinger deixam claro, em cada um de seus textos, que não só o viram chegar como também o encararam de frente, sem baixar suas cabeças, há muito tempo. Afinal, a literatura de massa antecede a política, e os pensadores das ciências sociais, na Argentina, têm e fazem história quando lidam com os temas que nos permeiam como sociedade.
Depois de ter assistido às duas apresentações do livro na CABA e presenciar o debate proposto na última, a revista Ñ conversou com quatro de seus autores, entre eles o coordenador, o sociólogo Pablo Semán, a respeito do fenômeno A Liberdade Avança, suas raízes e perspectivas históricas, as condições que o tornam possível e por que este texto é uma agenda para o futuro.
A entrevista é de Bibiana Ruiz, publicada por Clarín-Revista Ñ, 04-03-2024. A tradução é do Cepat.
Em 2012, após a marcha do 8N, você publicou um artigo chamado “Um sujeito com plano de nascer”, antecipando que “tudo o que permanecia fora do kirchnerismo seria agrupado na frente ampla pela liberdade”. Já via esta direita do subtítulo chegar?
Pablo Semán: Eu dizia que tudo o que estava e tudo o que o kirchnerismo expulsava se agruparia na Frente Ampla pela Liberdade. Além disso, Sergio Morresi e Martín Vicente estavam preocupados com as transformações e o crescimento das direitas, viam isto em nível global e viam também as fragilidades do processo político que pretendia hegemonizar o kirchnerismo. Posteriormente, a mesma coisa foi se revelando para Melina Vázquez e Nicolás Welschinger, em seu próprio trabalho de campo, quatro anos antes de Milei ser candidato.
Observamos muitas das questões que estão na ideologia reivindicada por Milei. E o mesmo aconteceu no campo da cultura, onde começamos a ver na literatura de massa a emergência triunfal de autores que eram críticos da suposta hegemonia cultural da esquerda. Eu tenho uma observação muito antiga por ter escrito sobre outras coisas nos anos 2000: a literatura de massa antecede a política e traz como prévia quais serão as ideias dominantes alguns anos depois e isto, especificamente, Ezequiel Saferstein também viu chegar.
O livro foi escrito antes do primeiro turno, não foi preparado para o momento, mas é oportuno. Na apresentação, você disse que não concorda (e é contrário a) que se fale de um fenômeno global. Qual é a singularidade da direita de Javier Milei?
Pablo Semán: Penso que existe uma dimensão global que tem a ver com os recursos que são compartilhados na circulação global, que podem ser financeiros, políticos, ideológicos, jurídicos, técnicos e comunicacionais. E penso também que em muitos países existem as mesmas situações estruturais, basicamente o questionamento ao Estado. Contudo, especificamente no caso argentino, acredito que, no surgimento de Milei, a dinâmica do processo local e como a singularidade deste projeto se encaixa no processo político local possuem um peso específico importante.
Claro, a singularidade é a radicalidade e a forma abrupta como se dá a ascensão de Milei. Radical, abrupta e até certo ponto majoritária, pois considero não são apenas 30%, caso contrário, o restante dos votos não teria se acomodado de modo tão rápido e automático a ele. E isso se deve às características do processo político e econômico local. Tanto que penso que certos motivos típicos das direitas europeias não estão tão presentes aqui.
E, além disso, existe outra questão que é importante ressaltar: a América Latina, especificamente, mas particularmente muito mais a Argentina, também apresenta uma diferença muito grande com a Europa, porque tem uma demografia diferente, ampla, com a construção da cidadania onde há uma mobilização e uma reivindicação política permanentes.
Além disso, não existem os limites institucionais que há na Europa. Então, é uma combinação explosiva de uma cidadania que enfrenta Estados em crise e que se coloca vociferante, por assim dizer, e Estados que não têm a institucionalidade para suportar isso. Uma especificidade não só da direita argentina, mas da situação política argentina.
No diálogo com pessoas libertárias, vocês notaram que não falavam a partir da ‘grieta’ [fenda]. De que lugar falam?
Pablo Semán: Uma coisa que nos chamou a atenção, sobretudo com os mais jovens, é que desaparecia o tom exaltado de disputa entre opostos. Eles sabiam que diziam coisas que poderiam foder o interlocutor, mas não as diziam gritando, propunham assim: “Olha, esta é a minha alternativa”. Não era polêmico, porque é uma geração que não partir para as polêmicas da grieta.
Nesse sentido, outra coisa que tem a ver com a superação da grieta é que os libertários dizem: “Todos os outros são iguais, então, a grieta é uma invenção de vocês”. E existe também outra forma de superação da grieta que é mais uma posição política. Para eles, a grieta é uma coisa dos partidos tradicionais. “Nós não temos nada a ver com isso”, dizem.
Escolheram não captar o que diziam a partir de categorias ideológicas ou de uma ideia de compromisso acadêmico. Por que você diz que essas categorias estão começando a ser meio zumbis? É possível entender o que está acontecendo sem ter um marco?
Pablo Semán: A classificação desta experiência política como fascismo é um exemplo de categoria zumbi. Pode ser de direita, pode ser muito de direita, pode ameaçar a democracia, mas não é fascismo, é outra coisa, a menos que se queira usar fascismo para tudo.
O mesmo acontece com populismo?
Pablo Semán: Claro, é usado para tudo. E há outra questão que tem a ver com as categorias zumbis, que talvez seja a paixão por classificar e não ter presente o mapa de fluxos, que também é um modo de prática espectral e cristalizado das ciências sociais.
Há uma espécie de internacionalização das ciências sociais, com o centro na Europa, que faz com que estejamos buscando na América Latina a direita espanhola, alemã e francesa, e isso também é um uso de categorias zumbis.
A internacionalização das ciências sociais deveria levar a uma verdadeira universalização, o que por outro lado é muito difícil, e penso que justamente o singular da experiência argentina ajuda a iluminar tudo o que estas categorias eurocentradas não contêm.
Levando em consideração que a direita é uma constância irregular no país, que diferenças esta direita apresenta quando comparada com a de Mauricio Macri?
Sergio Morresi: Em 2015, era o caso de um partido que foi montado de forma muito lenta, mais de cima para baixo. Foi montado pensando em ganhar eleições, em governar e, eu diria, em mudar a política. A ideia do macrismo era se envolver na política para levar à política os valores de seus próprios mundos sociais, que na maior parte dos casos era do mundo empresarial, das ONGs, do voluntariado católico. Aqui, vejo algo construído de forma muito mais capilar, que inclusive demorou para alcançar uma saída propriamente política.
Nisto todos nós, autores do livro, concordamos: de diferentes formas e em diferentes campos, vimos mudanças sociais e culturais que terminavam em uma espécie de demanda por algo diferente, que estivesse à direita do Cambiemos, mas que não existia. E então, em algum momento, Milei serviu para canalizar essa demanda.
No caso da maioria dos ativistas – não quer dizer que continue sendo assim –, uma vez que assumem o governo, a ideia não era se envolver na política para mudá-la, era muito mais a ideia de que viemos para impugnar a política, viemos impugnar o Estado, não viemos para administrar melhor, viemos para dizer que isto vai mal. A charada para mim é Milei dizendo “quero chegar ao Estado para fechar o Banco Central”. Então, é outra perspectiva.
O ano de 2001 mostrava que todos estavam contra os anos 1990. E não, o ano de 2003 mostra que mais de 20% votaram em Menem, 20% em López Murphy e, bem, tem um montão de gente que deseja anos 1990. E todas essas pessoas precisam ser representadas.
Melina Vázquez: Boa parte do ativismo teve a ver com a montagem partidária. De fato, os slogans em 2021 eram “filie-se a um partido” e os slogans no ano eleitoral de 2023 era “fiscalize”. Ou seja, a amarração política teve a ver com essa formação militante de um partido que, em determinados momentos, teve que apelar a alianças provinciais, o que foi muito problemático e, de fato, não mostrou aí o seu êxito eleitoral tanto como se deu em torno da figura de Javier Milei como candidato a presidente.
As novas direitas colocam a democracia em perigo?
Sergio Morresi: Em um país que teve direitas que jogavam expressamente contra a democracia, as direitas que jogam dentro são algo diferente. Entre aquelas que jogam dentro, é também diferente o que o partido PRO propunha, aliando-se ao radicalismo, o que propunha em seu momento a UCEDE, aliando-se ao peronismo, e o que propõe o partido A Liberdade Avança, que acaba recebendo como aliados e como quadros pessoas do Cambiemos, mas que tem uma visão, me parece, diferente.
Sobre a política e as juventudes: quais as semelhanças entre os jovens seguidores de Milei e os que integravam La Cámpora?
Melina Vázquez: Há algo que tem a ver com a mística militante que se compartilha. Se tirarmos a questão ideológica, há algo do arranjo, sobre como alguém se torna um militante que encontra muitos pontos de contato. Um fato que se apresenta como gatilho pode ser os debates de 2018, neste caso, contra o aborto, a pandemia. Há marcos, assim como em 2008 marcava o conflito do campo, como marcou a morte de Néstor Kirchner. Há algo sobre como se processam os marcos políticos que explicam os momentos de entrada no ativismo.
Depois, as formas de militância que, em definitivo, também tiveram a ver com a configuração política eleitoral e a figura, em um caso de Néstor e, neste caso, de Milei, sobre a qual também constroem elementos. A ideia de que para criar é preciso primeiro destruir tudo, e por isso a gestualidade do fora, de arrebentar o Estado, de que não existam os ministérios, aparece como algo fortemente comemorado, como expressão desse projeto político em formação. Agora, começam a surgir debates a respeito do que será possível ou não.
Em princípio, por exemplo, comemoram o fechamento de alguns ministérios, em particular o da mulher, como uma primeira vitória. É preciso observar como se reconstrói a mística militante fazendo parte do Estado com um projeto tão radical que os envolve pessoalmente, pelo perfil social de seus militantes, que cedo ou tarde verão os efeitos da redução desse Estado que agora militam, que agora acompanham com fervor, mas que em algum momento se fará presente em sua vida cotidiana.
Você argumenta que são os filhos desgrenhados do macrismo. Semán disse que também são filhos do kirchnerismo.
Melina Vázquez: Sim, são as duas coisas. Eu digo que são filhos do kirchnerismo, por um lado, porque aprenderam. Ou seja, o kirchnerismo gerou essa interlocução com os jovens dizendo: “Vocês têm que participar, vocês têm que se comprometer”. E não só isto, mas durante o ciclo kirchnerista, os direitos políticos foram ampliados: o voto jovem, a lei do centro estudantil, as políticas públicas que buscavam promover a participação.
E esses jovens, muitas que nasceram em 2001, em 2003, aprenderam isto na escola. Nesse sentido, são filhos do kirchnerismo em termos do político, e são também filhos do kirchnerismo no sentido da precariedade. E são filhos do macrismo também na medida em que aderem, são desgrenhados porque são mais populares, porque a ideia do mérito é diferente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Argentina. Esta nova direita é, de fato, extrema? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU