A guerra em Gaza: patologias da vingança

Uma reflexão sobre o 7 de outubro, o peso da história colonial e as possibilidades de romper com a espiral de violência

Foto: Emad el Byed | Unsplash

22 Dezembro 2023

"Um culto à força parece ter se apoderado de setores da esquerda e faz com que a empatia pelos civis israelenses seja desconsiderada. Mas o culto à força da esquerda radical é menos perigoso, porque tem menos consequências, do que o de Israel e seus apoiadores, começando pelo governo Biden". 

O comentário é de Adam Shatz, editor para os Estados Unidos da The London Review of Books e colaborador da New York Times Magazine, em artigo publicado originalmente por The London Review of Books e reproduzido por Nueva Sociedad, dezembro de 2023. 

Eis o artigo.

Em 16 de outubro, Sabrina Tavernise, apresentadora do podcast The Daily, do New York Times, conversou com dois palestinos na Faixa de Gaza. Primeiro, entrevistou Abdallah Hasaneen, residente em Rafah, perto da fronteira egípcia, que só conseguia captar o sinal de sua varanda: "Bem, Abdallah, temos falado de todos os ataques aéreos que ocorreram desde o último sábado e, é claro, do ataque mortal do Hamas contra Israel [em 7 de outubro]. Como você interpreta esse ataque? Qual é a sua opinião?"

"Não se pode prender as pessoas sem mais, privá-las de seus direitos fundamentais e esperar que não reajam", respondeu Hasaneen.

"Não se pode desumanizar as pessoas impunemente... Não sou do Hamas e nunca fui um grande admirador do Hamas... Mas o que está acontecendo aqui não tem nada a ver com o Hamas".

Tavernise (um pouco desconfortável): "Com o que tem a ver, então?"

Hasaneen: "Trata-se de uma limpeza étnica do povo palestino, trata-se de cerca de 2,3 milhões de palestinos. Por isso, a primeira coisa que Israel fez foi cortar a água, a eletricidade e os alimentos. Portanto, não se trata de forma alguma do Hamas. Trata-se do nosso erro de ter nascido palestinos".

A segunda convidada de Tavernise era uma mulher chamada Wafa Elsaka, que recentemente voltou a Gaza depois de trabalhar como professora na Flórida por 35 anos. Naquele fim de semana, Elsaka havia fugido da casa de sua família, depois que Israel ordenou que os 1,1 milhão de residentes do norte de Gaza deixassem suas casas e se dirigissem ao sul, alertando sobre uma iminente invasão terrestre. Dezenas de palestinos morreram sob as bombas enquanto viajavam por rotas que Israel assegurou que poderiam atravessar sem perigo. "Vivemos o ano de 1948 e tudo o que pedimos é ter paz para criar nossos filhos", disse Elsaka. "Por que estamos repetindo a história? O que eles querem? Querem Gaza? O que vão fazer conosco? O que vão fazer com as pessoas? Quero respostas a essas perguntas para que saibamos. Querem nos jogar no mar? Vão em frente, façam isso, não nos façam sofrer! Façam isso, então... Antes, costumava dizer que Gaza era uma prisão ao ar livre. Agora digo que Gaza é uma sepultura a céu aberto... Você acha que as pessoas aqui estão vivas? São zumbis". Quando Tavernise voltou a falar com Hasaneen no dia seguinte, ele disse que ele e toda a sua família estavam amontoados na mesma sala, pelo menos para poderem morrer juntos.

A situação em Gaza atingiu extremos indescritíveis nos últimos dias, mas não há nada verdadeiramente novo nisso. Em seu conto de 1956, "Carta de Gaza", Ghassan Kanafani a descreve como "mais sufocante que a mente de alguém que dorme no meio de um pesadelo horrível, com suas ruas estreitas e seu cheiro peculiar, o cheiro de derrota e pobreza". O protagonista da história, um professor que trabalhou por anos no Kuwait, retorna para casa após um bombardeio israelense. Quando sua sobrinha se aproxima para abraçá-lo, ele vê que ela teve uma perna amputada: foi ferida enquanto tentava proteger seus irmãos das bombas.

Nas palavras de Amira Hass, jornalista israelense que passou muitos anos reportando de Gaza, "Gaza encarna a contradição central do Estado de Israel: democracia para alguns, despossessão para outros; é nosso nervo exposto". Quando os israelenses querem amaldiçoar alguém, não o enviam metaforicamente para o "inferno", mas para "Gaza". As autoridades de ocupação sempre a trataram como uma terra de fronteira, mais semelhante ao sul do Líbano do que à Cisjordânia, onde regras diferentes e muito mais severas são aplicadas. Após a conquista de Gaza em 1967, Ariel Sharon, então general responsável pelo Comando Sul de Israel, supervisionou a execução sem julgamento de dezenas de palestinos suspeitos de envolvimento na resistência (não está claro quantos morreram) e a demolição de milhares de casas: isso foi chamado de "pacificação". Em 2005, Sharon presidiu a "retirada": Israel obrigou 8.000 colonos a deixar Gaza, mas este território permaneceu essencialmente sob controle israelense, e depois da vitória eleitoral do Hamas em 2006, esteve sob bloqueio, medida que o governo egípcio contribui para fazer cumprir. "Por que não abandonamos Gaza e fugimos?", perguntava o narrador de Kanafani em 1956. Hoje, tais reflexões seriam uma fantasia. O povo de Gaza – não é preciso chamá-los de gazatíes, já que dois terços deles são filhos e netos de refugiados de outras áreas da Palestina – está efetivamente cativo em um território que foi amputado do resto de seu país. Eles só poderiam deixar Gaza se os israelenses ordenassem que estabelecessem residência em um "corredor humanitário" no Sinai, e se o Egito cedesse à pressão dos Estados Unidos e abrisse a fronteira.

Os motivos por trás do Dilúvio de Al-Aqsa, como o Hamas chamou sua ofensiva, não eram nenhum mistério: reafirmar a primazia da luta palestina em um momento em que parecia estar saindo da agenda da comunidade internacional; garantir a libertação dos presos políticos; frustrar uma aproximação entre Israel e a Arábia Saudita; humilhar ainda mais a impotente Autoridade Palestina; protestar contra a onda de violência dos colonos na Cisjordânia, bem como contra as provocadoras visitas de judeus religiosos e autoridades israelenses à Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém; e, não menos importante, enviar uma mensagem aos israelenses de que não são invencíveis, de que manter o status quo em Gaza tem um preço. Foi alcançado um sucesso assustador: pela primeira vez desde 1948, foram os combatentes palestinos, e não os soldados israelenses, que ocuparam as cidades na fronteira e aterrorizaram seus habitantes. Nunca antes Israel teve menos aparência de santuário para o povo judeu. Como Mahmoud Muna, dono de uma livraria em Jerusalém, disse, o impacto do ataque do Hamas foi "como condensar os últimos cem anos em uma semana". No entanto, esta ruptura do status quo, este golpe em prol de uma espécie de igualdade mórbida com a formidável maquinaria de guerra de Israel, teve um preço enorme.

Os combatentes do Hamas e da Jihad Islâmica (brigadas de cerca de 1.500 comandos) mataram mais de 1.000 civis, incluindo mulheres, crianças e bebês. Ainda não está claro por que o Hamas não se contentou em alcançar seus objetivos iniciais. A primeira fase do Dilúvio de Al-Aqsa foi uma guerra de guerrilhas clássica – e legítima – contra uma potência ocupante: os combatentes invadiram a fronteira e a cerca de Gaza e atacaram postos militares avançados. As primeiras imagens desse ataque, junto com relatos de que combatentes de Gaza haviam entrado em 20 cidades israelenses, causaram uma euforia compreensível entre os palestinos; o mesmo aconteceu com o massacre de centenas de soldados israelenses e a tomada de até 250 reféns. No Ocidente, poucos se lembram de que, quando os palestinos de Gaza protestaram na fronteira em 2018-2019 durante a Grande Marcha do Retorno, as forças israelenses mataram 223 manifestantes. Mas os palestinos se lembram, e a matança de manifestantes desarmados não fez nada além de reforçar o apelo da luta armada.

As segunda fase, no entanto, foi muito diferente. Junto com os residentes de Gaza, muitos dos quais estavam saindo de sua cidade pela primeira vez na vida, os combatentes do Hamas lançaram uma onda de assassinatos. Transformaram a festa rave Tribe of Nova em um bacanal sangrento, outro Bataclan. Caçaram famílias inteiras que viviam em kibutzim. Executaram não apenas judeus, mas também beduínos e trabalhadores imigrantes. (Várias das vítimas eram judeus muito conhecidos por seu trabalho solidário com os palestinos, especialmente Vivian Silver, uma israelense-canadense). Como Vincent Lemire observou no Le Monde, leva tempo para matar "civis escondidos em garagens e estacionamentos ou refugiados em quartos seguros". A diligência e a paciência dos combatentes do Hamas foram arrepiantes.

Nada na história da resistência armada palestina contra Israel se aproxima sequer da escala desta matança: nem o ataque do Setembro Negro durante os Jogos Olímpicos de Munique em 1972, nem o massacre de Maalot perpetrado pelo Frente Democrático para a Libertação da Palestina em 1974. Em 7 de outubro, mais israelenses morreram do que nos cinco anos da Segunda Intifada. Como explicar este carnaval de morte? A raiva alimentada pela intensificação da repressão israelense é, sem dúvida, uma das razões. No último ano, mais de 200 palestinos foram mortos pelo exército e colonos israelenses; muitos deles eram menores de idade. Mas essa raiva tem raízes muito mais profundas do que as políticas do governo de direita de Benjamin Netanyahu. O que aconteceu em 7 de outubro não foi uma explosão; foi uma matança metódica, e o assassinato sistemático de pessoas em suas casas foi uma amarga imitação do massacre de 1982, perpetrado por falangistas apoiados por Israel nos bairros de Sabra e Shatila, em Beirute (Líbano). A publicação cuidadosamente planejada de vídeos dos assassinatos nas contas de mídia social das vítimas sugere que a vingança foi uma das motivações dos comandantes do Hamas: Mohammed Deif, chefe da ala militar do Hamas, perdeu sua esposa e dois filhos em um ataque aéreo em 2014. Isso lembra a observação de Frantz Fanon de que "o colonizado é um perseguido que sonha constantemente em se tornar um perseguidor". Em 7 de outubro, esse sonho se tornou realidade para aqueles que cruzaram o sul de Israel: finalmente, os israelenses sentiriam a impotência e o terror que eles haviam conhecido toda a vida. O espetáculo da alegria palestina – e as subsequentes negações de um massacre de civis – foi perturbador, mas não surpreendente. Nas guerras coloniais, escreve Fanon, "o bem é simplesmente o que os machuca".

O que chocou os israelenses quase tanto quanto o ataque em si foi o fato de ninguém ter visto isso chegando. Os egípcios haviam alertado o governo israelense de que Gaza estava em ebulição. Mas Netanyahu e seus parceiros acreditavam que haviam conseguido conter o Hamas. Quando os israelenses recentemente transferiram um número significativo de soldados da fronteira de Gaza para a Cisjordânia, onde tinham a tarefa de proteger os colonos que realizavam pogroms em Huwara e outras cidades palestinas, disseram-lhes para não se preocuparem: tinham os melhores sistemas de vigilância do mundo e amplas redes de informantes em Gaza. O Irã era a verdadeira ameaça, não os palestinos, que careciam da capacidade – e da competência – para lançar um ataque significativo. Foi essa arrogância e desprezo racista, gestados por anos de ocupação e regime de apartheid, que causaram a "falha de inteligência" em 7 de outubro.

Muitas analogias foram propostas para o Dilúvio de Al-Aqsa: a ofensiva do Tet (durante a Guerra do Vietnã, em 1968), Pearl Harbor, o ataque do Egito em outubro de 1973 que iniciou a Guerra do Yom Kipur e, é claro, 11 de setembro de 2001. Mas a analogia mais sugestiva é um episódio crucial e em grande parte esquecido da Guerra de Independência da Argélia: o levante de Philippeville em agosto de 1955. Cercado pelo exército francês, temendo perder terreno para políticos muçulmanos reformistas que favoreciam uma solução negociada, a Frente de Libertação Nacional (FLN) lançou um feroz ataque na cidade portuária de Philippeville e seus arredores. Agricultores armados com granadas, facas, cacetes, machados e forcados mataram – e em muitos casos esquartejaram – 123 pessoas, em sua maioria europeias, mas também vários muçulmanos. Para os franceses, a violência parecia não provocada, mas os perpetradores acreditavam estar vingando a matança de dezenas de milhares de muçulmanos executada pelo exército francês, auxiliado por milícias de colonos, após os distúrbios pela independência de 1945. Em resposta a Philippeville, o governador-geral francês da Argélia, Jacques Soustelle, um liberal considerado pelos europeus como um "amante dos árabes" pouco confiável, liderou uma campanha de repressão na qual mais de 10.000 argelinos foram mortos. Ao reagir de maneira exagerada, Soustelle caiu na armadilha do FLN: a brutalidade do exército levou os argelinos aos braços dos rebeldes, da mesma forma que a resposta feroz de Israel provavelmente fortalecerá o Hamas, pelo menos temporariamente, mesmo entre os palestinos de Gaza que não apoiam seu governo autoritário. O próprio Soustelle admitiu ter ajudado a "criar um abismo entre as duas comunidades por onde fluiu um rio de sangue".

Um abismo semelhante se abre hoje em Gaza. Determinadas a superar a humilhação do Hamas, as Forças de Defesa de Israel (FDI) não se comportaram de maneira diferente - nem mais inteligente - do que os franceses na Argélia, os britânicos no Quênia ou os americanos após 11 de setembro. O desprezo de Israel pela vida dos palestinos nunca foi tão cruel nem tão flagrante, sendo alimentado por um discurso para o qual o adjetivo "genocida" já não parece uma hipérbole. Apenas nos primeiros seis dias de ataques aéreos, Israel lançou mais de 6.000 bombas, e mais que o dobro de civis já morreram sob os bombardeios do que os que morreram em 7 de outubro [até 19 de dezembro, a contagem se aproximava de 20.000, nota do editor]. Essas atrocidades não são excessos nem "danos colaterais": ocorrem de maneira planejada. Como disse o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, "estamos lutando contra animais humanos e agiremos de acordo". (Fanon: "quando o colonizador fala sobre os colonizados, ele usa termos zoológicos" e "se refere constantemente ao bestiário"). Desde o ataque do Hamas, a retórica exterminadora da extrema direita israelense atingiu seu paroxismo e se espalhou para setores supostamente mais moderados. "Zero habitantes de Gaza", diz um slogan israelense. Um membro do Likud, partido de Netanyahu, afirmou que o objetivo de Israel deveria ser "uma Nakba que eclipse a Nakba de 1948". "Você está realmente me perguntando sobre os civis palestinos?", disse o ex-primeiro-ministro israelense Naftalí Bennett a um jornalista da Sky News. "O que há com você? Estamos lutando contra os nazistas".

A "nazificação" dos oponentes de Israel é uma estratégia antiga que respalda tanto suas guerras quanto suas políticas expansionistas. Menachem Begin disse que lutava contra os nazistas durante a guerra de 1982 contra a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) no Líbano e comparou Yasser Arafat a Hitler "em seu bunker". Em um discurso de 2015, Netanyahu sugeriu que os nazistas poderiam ter deportado os judeus da Europa, em vez de exterminá-los, se Haj Amin al-Husseini, o mufti de Jerusalém, não tivesse colocado a Solução Final na cabeça de Hitler. Em sua flagrante instrumentalização do Holocausto e difamação dos palestinos como nazistas piores do que os próprios nazistas, os líderes israelenses "zombam do verdadeiro significado da tragédia judaica", como observou Isaac Deutscher após a guerra de 1967. Além disso: essas analogias ajudam a justificar uma brutalização ainda maior do povo palestino.

O sadismo do ataque do Hamas tornou essa nazificação muito mais fácil, reavivando a memória coletiva, transmitida de geração em geração, dos pogroms e do Holocausto. Era previsível que os judeus, tanto em Israel quanto na diáspora, buscassem explicações para seu sofrimento na história da violência antissemita. O trauma intergeracional é tão real entre os judeus quanto entre os palestinos, e o ataque do Hamas tocou na parte mais sensível de sua psique: o medo da aniquilação. Mas a memória também pode ser cegadora. Há muito tempo, os judeus deixaram de ser os párias indefesos, os "outros" internos do Ocidente. O Estado que diz falar em seu nome tem um dos exércitos mais poderosos do mundo e um arsenal nuclear, o único na região. As atrocidades de 7 de outubro podem lembrar os pogroms, mas Israel não é a Zona de Assentamento [do Império Russo].

Como observou o historiador Enzo Traverso, o povo judeu "ocupa agora uma posição bastante singular na memória do mundo ocidental. Seus sofrimentos são proclamados e objeto de proteção legal, como se os judeus tivessem que estar sempre sujeitos a uma legislação especial". Dada a história de perseguição antissemita na Europa, a preocupação ocidental com as vidas judias é totalmente compreensível. Mas o que Traverso chama de "religião civil do Holocausto" ocorre cada vez mais às custas da preocupação com os muçulmanos e de qualquer reconhecimento sério da questão palestina. "O que separa Israel, os Estados Unidos e outras democracias quando se trata de situações difíceis como esta", declarou o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, em 11 de outubro, "é o nosso respeito pelo direito internacional e, quando apropriado, pelas leis da guerra". Enquanto isso, Israel respeitava o direito internacional arrasando bairros e matando famílias inteiras, um lembrete de que, como escreveu Aimé Césaire, "a colonização trabalha para descivilizar o colonizador, para brutalizá-lo no verdadeiro sentido da palavra".

Nos dias seguintes ao ataque do Hamas, o governo de Joe Biden apoiou políticas de transferência de população que poderiam resultar em outra Nakba. Apoiou, por exemplo, a realocação aparentemente temporária de milhões de palestinos no Sinai para que Israel possa continuar seu ataque contra o Hamas. (O presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, respondeu que, se Israel estivesse realmente interessado no bem-estar dos refugiados de Gaza, os realocaria no Neguev, ou seja, do lado israelense da fronteira com o Egito). Israel recebeu, como ajuda para seu ataque, mais armamentos dos Estados Unidos, que também enviaram dois porta-aviões para o Mediterrâneo Oriental como advertência aos principais aliados regionais do Hamas: Irã e Hezbollah. Em 13 de outubro, o Departamento de Estado circulou um memorando interno instando os funcionários a não usar palavras e frases como "desescalada/cessar-fogo", "fim da violência/derramamento de sangue" ou "restabelecimento da calma"; nem mesmo o questionamento mais leve seria tolerado. Poucos dias depois, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo uma "pausa humanitária" em Gaza foi, como era de se esperar, vetada pelos Estados Unidos (o Reino Unido se absteve). No programa de notícias Face the Nation, da CBS, Jake Sullivan, assessor de segurança nacional dos Estados Unidos, definiu o "sucesso" na guerra como "a segurança a longo prazo do Estado judeu e do povo judeu", sem consideração alguma pela segurança – ou pela contínua falta de uma pátria – do povo palestino. Em um lapso extraordinário, ele praticamente apoiou o direito palestino ao retorno: "Quando as pessoas deixam suas casas em conflito, abandonam suas casas em conflito, elas têm o direito de voltar para essas casas, esses lares. E essa situação não é diferente". Talvez, mas é improvável, especialmente se o Hezbollah abandonar sua cautela e se unir à batalha, um cenário que uma ofensiva terrestre israelense torna muito mais provável. O apoio dos Estados Unidos à escalada pode fazer sentido eleitoral para Biden, mas traz o risco de provocar uma guerra regional.

Até a devastadora explosão no Hospital Árabe Al-Ahli em 17 de outubro – um atentado que Netanyahu imediatamente atribuiu aos "terroristas bárbaros em Gaza" – os jornais americanos pareciam, em sua maioria, comunicados de imprensa do exército israelense. As fissuras que haviam começado a abrir espaço para falar da realidade palestina, com palavras como "ocupação" e "apartheid", desapareceram da noite para o dia: um testemunho, talvez, de quão pequenas e frágeis essas vitórias retóricas haviam sido. O New York Times publicou um editorial afirmando que o Hamas havia atacado Israel "sem nenhuma provocação imediata" e um perfil elogioso de um general israelense aposentado que "pegou sua arma e enfrentou o Hamas", cujo conselho para o exército foi "arrasar" em Gaza. (Mais uma vez, o extraordinário jornal israelense Haaretz destacou a covardia da imprensa americana e culpou o "governo de anexação e desapossamento" de Netanyahu por provocar a guerra). Os três apresentadores muçulmanos da MSNBC tiveram que sair temporariamente do ar, aparentemente para não ferir as sensibilidades israelenses. Rashida Tlaib, uma congressista palestino-americana de Detroit, foi denunciada por liderar uma "facção pró-Hamas" devido às suas críticas às Forças de Defesa de Israel. Houve crimes de ódio contra muçulmanos, alimentados, pelo menos em parte, por uma onda de islamofobia popular em um nível não visto desde a guerra ao terror desencadeada após os ataques de 11 de setembro de 2001. Entre suas primeiras vítimas está uma criança palestina de seis anos, Wadea Al-Fayoume, morta em Chicago pelo proprietário da propriedade onde sua família morava, em aparente retaliação pelo 7 de outubro.

Na Europa, expressar apoio aos palestinos tornou-se um tabu e, em alguns casos, foi criminalizado. A romancista palestina Adania Shibli teve a cerimônia de premiação na Feira do Livro de Frankfurt cancelada por seu romance "Un detalle menor", baseado na história real de uma menina beduína palestina que foi estuprada e assassinada por soldados israelenses em 1949. A França proibiu as manifestações pró-palestinas, e a polícia francesa usou canhões d'água para dispersar uma manifestação de apoio a Gaza na Praça da República. A ministra do Interior britânica, Suella Braverman, propôs proibir a exibição da bandeira palestina. O chanceler alemão, Olaf Scholz, declarou que a "responsabilidade derivada do Holocausto" da Alemanha a obrigava a "defender a existência e a segurança do Estado de Israel" e culpou o Hamas por todo o sofrimento em Gaza. Um dos poucos funcionários ocidentais que expressou horror com o que está acontecendo em Gaza foi Dominique de Villepin, ex-primeiro-ministro da França. No France Inter, ele atacou a "amnésia" que o Ocidente sofre em relação à Palestina, o "esquecimento" que permitiu aos europeus imaginar que os acordos econômicos e as vendas de armas entre Israel e seus novos amigos árabes no Golfo fariam com que a questão palestina desaparecesse. Em 14 de outubro, Ione Belarra, ministra dos Direitos Sociais da Espanha e membro do partido de esquerda Podemos, foi ainda mais longe ao acusar Israel de realizar um castigo coletivo genocida e pedir que Netanyahu seja julgado por crimes de guerra. Mas Tlaib, Villepin e Belarra foram superados em número por políticos e comentaristas ocidentais que se colocaram ao lado de Israel, que seria a parte "civilizada" no conflito e que exerce seu "direito de se defender" contra os bárbaros árabes. O debate sobre a ocupação, sobre as raízes do conflito, se mistura cada vez mais com o antissemitismo.

Os "amigos de Israel" judeus podem considerar isso uma vitória. Mas, como aponta Traverso, o apoio acrítico do Ocidente a Israel e sua identificação com o sofrimento judaico acima do dos muçulmanos palestinos "favorece o posicionamento dos judeus nas estruturas de dominação". Pior ainda, o abandono da neutralidade em relação ao comportamento de Israel coloca os judeus da diáspora em um risco cada vez maior de sofrer violência antissemita, seja por parte de grupos jihadistas ou de lobos solitários. A censura das vozes palestinas em nome da segurança judaica, longe de proteger os judeus, inevitavelmente agravará sua insegurança.

O tratamento binário da guerra na imprensa ocidental ecoa no mundo árabe e em grande parte do Sul global, onde o apoio do Ocidente à resistência da Ucrânia contra a agressão russa e sua recusa em enfrentar a agressão de Israel contra os palestinos sob ocupação já havia provocado acusações de hipocrisia. (Essas divisões lembram as fraturas de 1956, quando os povos do "mundo em desenvolvimento" se posicionaram ao lado da luta da Argélia pela autodeterminação, enquanto os países ocidentais apoiaram a resistência da Hungria à invasão soviética). Nos países que lutaram para superar o domínio colonial, a dominação branca e o apartheid, a luta palestina pela independência, em condições de obscena assimetria, toca uma fibra sensível. Mas também existem admiradores do Hamas na esquerda "decolonia", muitos deles confortáveis nas universidades ocidentais. Alguns dos decoloniais - em particular, o Partido dos Indígenas da República da França, que elogiou o Dilúvio de Al-Aqsa sem reservas - parecem quase fascinados pela violência do Hamas e a caracterizam como uma forma de justiça anticolonial do tipo defendido por Fanon em "Sobre a violência", o polêmico primeiro capítulo de "Os condenados da terra". "O que eles pensavam que a descolonização significava?" perguntou a escritora somali-americana Najma Sharif na rede X. "Algo legal? Papers? Ensaios? Bando de perdedores". Para os fãs do Dilúvio de Al-Aqsa, "a descolonização não é uma metáfora". Outros sugeriram que os jovens do festival Tribe of Nova mereciam seu destino por terem a audácia de organizar uma festa a poucos quilômetros da fronteira de Gaza.

É claro que Fanon defendia a luta armada contra o colonialismo, mas se referia ao uso da violência pelos colonizados como algo "desintoxicante", não "purificador", frequentemente traduzido erroneamente para o inglês como "limpeza". Sua compreensão das formas mais letais de violência anticolonial era a de um psiquiatra que diagnostica uma patologia de vingança formada sob a opressão colonial, não uma prescrição. Era natural, escreveu, que "as mesmas pessoas a quem constantemente se dizia que a única linguagem que entendiam era a da força agora decidissem se expressar pela força". Evocando a experiência fenomenológica dos combatentes anticoloniais, ele observou que, nas primeiras etapas da revolta, "a vida só pode se materializar a partir do cadáver em decomposição do colono".

Mas Fanon também escreveu com eloquência sobre os efeitos do trauma da guerra, incluindo o trauma sofrido pelos rebeldes anticoloniais que massacraram civis. E em um trecho que poucos de seus admiradores dos últimos dias citaram, ele advertiu que "o racismo, o ódio, o ressentimento, o 'desejo legítimo de vingança' não podem alimentar uma guerra de libertação. Esses relâmpagos na consciência que lançam o corpo por caminhos tumultuosos, que o lançam a um onirismo quasi-patológico onde o rosto do outro me convida ao vértice, onde meu sangue chama o sangue do outro, essa paixão arrebatada das primeiras horas se desloca se pretende se nutrir de sua própria substância. É verdade que as intermináveis exações das forças colonialistas reintroduzem os elementos emocionais na luta, dão ao militante novos motivos de ódio, novas razões para sair em busca do colono 'a abater'. Mas os líderes compreenderão finalmente que o ódio não pode constituir um programa."

Fanon acreditava que, para organizar um movimento eficaz, os lutadores anticoloniais teriam que superar as tentações da vingança primordial e desenvolver o que Martin Luther King, citando Reinhold Niebuhr, chamou de "disciplina espiritual contra o ressentimento". De acordo com esse compromisso, a visão de descolonização de Fanon atribuía um lugar não apenas aos muçulmanos colonizados, que lutavam contra o jugo da opressão colonial, mas também aos membros da minoria europeia e aos judeus (eles próprios, em algum momento, um grupo "indígena" na Argélia), desde que se unissem à luta pela libertação. Em "A Dying Colonialism" [Um colonialismo moribundo], ele prestou uma homenagem eloquente aos não muçulmanos da Argélia que, juntamente com seus camaradas muçulmanos, imaginavam um futuro em que a identidade e a cidadania argelinas seriam definidas por ideais comuns, não por etnia ou fé. O desaparecimento dessa visão, devido à violência francesa e ao nacionalismo islâmico autoritário do FLN, é uma tragédia da qual a Argélia ainda não se recuperou. A destruição dessa visão, também defendida por intelectuais como Edward Said e uma pequena, mas influente, minoria da esquerda palestina e israelense, não foi menos prejudicial para o povo israelense-palestino.

"O que me enche de pavor", disse-me o historiador palestino Yezid Sayigh em um e-mail,

"é que estamos em um ponto de inflexão na história mundial. As mudanças profundas que ocorreram por pelo menos as últimas duas décadas, resultando em movimentos (e governos) de direita e até mesmo fascistas já estavam se formando, então considero que o massacre de civis pelo Hamas é mais ou menos equivalente a Sarajevo em 1914 ou talvez à Noite dos Cristais em 1938, no sentido de que aceleram ou desencadeiam tendências muito mais amplas. Em 'menor escala', estou furioso com o Hamas por apagar basicamente tudo pelo qual lutamos por décadas, e horrorizado por aqueles que são incapazes de manter um espírito crítico para distinguir a oposição à ocupação israelense e os crimes de guerra, e fecham os olhos para o que o Hamas fez nos kibutzim do sul de Israel. É o etnotribalismo".

As fantasias etnotribalistas da esquerda decolonial, com suas invocações rituais de Fanon e sua exaltação dos milicianos de parapente do Hamas, são certamente perversas. Como expressou o escritor palestino Karim Kattan em um ensaio tocante no Le Monde, parece ter se tornado impossível para alguns dos autoproclamados amigos da Palestina dizer, ao mesmo tempo, que "massacres como os que ocorreram no festival Tribe of Nova são um horror terrível e que Israel é uma potência colonial feroz". Em uma era de derrota e desmobilização, na qual as vozes mais extremistas foram amplificadas pelas redes sociais, um culto à força parece ter se apoderado de setores da esquerda e faz com que a empatia pelos civis israelenses seja desconsiderada.

Mas o culto à força da esquerda radical é menos perigoso, porque tem menos consequências, do que o de Israel e seus apoiadores, começando pelo governo Biden. Para Netanyahu, a guerra é uma luta pela sobrevivência, tanto a dele quanto a de Israel. Até agora, ele geralmente preferiu manobras táticas, evitando ofensivas em grande escala. Embora tenha liderado Israel em vários ataques contra Gaza, também é arquiteto da aliança com o Hamas, posição que justificou em 2019 em uma reunião de membros do Likud na Knesset, onde disse que "qualquer um que queira frustrar o estabelecimento de um Estado palestino tem que apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas". Netanyahu entendia que, enquanto o Hamas estivesse no comando em Gaza, não haveria negociações sobre um Estado palestino. A ofensiva do Hamas não apenas desfez sua aposta de que o frágil equilíbrio entre Israel e Gaza seria mantido; veio em um momento em que o primeiro-ministro estava se defendendo simultaneamente de acusações de suborno e de um movimento de protesto provocado por seu plano de minar o Poder Judiciário e remodelar o sistema político do país à imagem de Viktor Orbán na Hungria.

Desesperado para superar esses contratempos, Netanyahu lançou-se a esta guerra, apresentando-a como uma "luta entre os filhos da luz e os filhos da escuridão, entre a humanidade e a lei da selva". Os colonos fascistas de Israel, representados em seu gabinete por Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, ambos defensores abertos da limpeza étnica, mataram vários palestinos na Cisjordânia desde o ataque do Hamas. Os cidadãos palestinos de Israel temem o tipo de ataques que sofreram nas mãos de grupos judaicos em maio de 2021, durante a Intifada da Unidade. Quanto ao povo de Gaza, não apenas está sendo forçado a pagar pelas ações do Hamas; está sendo forçado, mais uma vez, a pagar pelos crimes de Hitler. E o imperativo de invocar o Holocausto tornou-se o escudo ideológico de Israel, seu escudo contra qualquer crítica ao seu comportamento.

Qual é o objetivo final de Netanyahu? Eliminar o Hamas? Isso é impossível. Apesar de todos os esforços de Israel para apresentá-lo como o ramo palestino do Estado Islâmico e por mais reacionário e violento que seja, o Hamas é uma organização nacionalista islâmica, não uma seita niilista, e faz parte da sociedade política palestina; alimenta-se da desesperança produzida pela ocupação e não pode ser simplesmente liquidado, assim como os zelotes fascistas do gabinete de Netanyahu (ou, para o caso, os terroristas do Irgun, que realizaram atentados e massacres na década de 1940 e depois se tornaram parte do establishment político de Israel). O assassinato de líderes do Hamas como o xeque Ahmed Yassin e Abdel Aziz al-Rantissi, ambos mortos em 2004, não impediu a crescente influência da organização e até a ajudou. Netanyahu, então, imagina que pode forçar os palestinos a desistir de suas armas ou de suas demandas por um Estado, bombardeando-os até subjulgá-los? Isso foi tentado repetidamente; o resultado invariável foi uma geração nova e ainda mais ressentida de militantes palestinos. Israel não é um tigre de papel, como concluíram os líderes do Hamas após 7 de outubro, ainda exultantes pela experiência de matar soldados israelenses pegos em suas camas. Mas está se tornando cada vez mais incapaz de mudar de curso, porque sua classe política carece da imaginação e da criatividade - para não mencionar o senso de justiça, a dignidade do outro - necessárias para alcançar um acordo duradouro.

Um governo dos EUA responsável, menos suscetível à ansiedade pelas próximas eleições e menos comprometido com o establishment pró-israelense, teria aproveitado a crise atual para instar Israel a reexaminar não apenas sua doutrina de segurança, mas também suas políticas em relação à única população do mundo árabe com a qual não mostrou nenhum interesse em forjar uma paz real: os palestinos. Em vez disso, Biden e Blinken ecoaram as banalidades de Israel sobre a luta contra o mal, enquanto convenientemente esqueciam a responsabilidade de Israel pelo impasse político em que se encontra. A credibilidade dos Estados Unidos na região, que nunca foi muito grande, é ainda mais fraca sob o governo de Donald Trump. Em 18 de outubro, Joshua Paul, que foi diretor de Assuntos Públicos e do Congresso no Escritório de Assuntos Político-Militares do Departamento de Estado por mais de 11 anos, renunciou em protesto contra as transferências de armas para Israel. Uma postura de "apoio cego a uma das partes", escreveu em sua carta de renúncia, levou a políticas que são "míopes, destrutivas, injustas e contraditórias com os mesmos valores que defendemos publicamente". Não é de surpreender que o único Estado árabe que criticou o Dilúvio de Al-Aqsa tenha sido os Emirados Árabes Unidos. Os duplos padrões dos EUA - e a crueldade da resposta israelense - tornaram impossível essa crítica.

A verdade incontornável é que Israel não pode sufocar a resistência palestina pela violência, assim como os palestinos não podem ganhar uma guerra de libertação ao estilo argelino: judeus israelenses e árabes palestinos estão em um beco sem saída, a menos que Israel, a parte mais forte de longe, force os palestinos ao exílio para sempre. A única coisa que pode salvar os povos de Israel e Palestina e evitar outra Nakba (uma possibilidade real, enquanto outra Shoá permanece uma alucinação traumática) é uma solução política que reconheça ambos os povos como cidadãos iguais e lhes permita viver em paz e liberdade, seja em um único Estado democrático, dois Estados ou uma federação. Enquanto a busca por essa solução for reprimida, é praticamente garantido que a situação se deteriore ainda mais, juntamente com a possibilidade de uma catástrofe ainda mais terrível.

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