Relembre dez fatos ambientais de 2023, o ano em que a Terra se vingou da humanidade.
A reportagem é publicada por Observatório do Clima, 19-12-2023.
A internet não perdoa. Quando saíram os primeiros indicativos das agências climatológicas internacionais de que 2023 poderia ser o ano mais quente da história, começou a pipocar nas redes sociais uma frase tão divertida quanto sombria: “o ano mais quente da história… e o mais fresco das próximas décadas”.
Por algumas semanas a partir de julho, as temperaturas médias globais estiveram mais de 1,5ºC mais altas que a média pré-industrial, acima do limite preconizado pelo Acordo de Paris “seguro” – dando à humanidade um gostinho do que será perder a meta do tratado climático. Em dois de novembro, os termômetros ficaram mais de 2ºC acima da média pré-industrial.
A combinação de um El Niño forte com um oceano superaquecido no mundo inteiro, cortesia da crise do clima, fez com que 2023 quebrasse de longe todos os recordes de calor: a média do ano deve fechar em algo entre 1,3ºC e 1,4ºC acima do pré-industrial. Salvo intervenção divina entre agora e o Ano Novo, será o ano mais quente dos últimos 125 mil anos. Na última vez em que a Terra esteve tão aquecida, a Groenlândia perdeu quase todo o seu manto de gelo e os oceanos subiram 10 metros.
Os especialistas ficaram sem léxico para qualificar o aquecimento e a sequência alucinante de eventos extremos dele decorrentes. O secretário-geral da ONU, António Guterres, saiu-se com o neologismo “ebulição global”. E, a julgar por El Niños passados, 2024 será mais um ano de recordes.
Relembre na retrospectiva abaixo alguns dos fatos e acontecimentos mais importantes do ano na área socioambiental e climática.
Gráfico mostra os dias em que a média global superou os 2ºC de aquecimento. (Imagem: Copernicus | UE)
No início de novembro, manchetes destacaram que 2023 provavelmente seria o ano mais quente em 125 mil anos. A declaração veio do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (C3S), da União Europeia e foi confirmada pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) no fim do mês. Em dezembro, o Copernicus apontou que 2023 já apresentou uma anomalia de 0,58 °C em relação a 1991-2020. Até novembro, a temperatura média do ano já era 1,46°C maior do que o nível pré-industrial (1850-1900). Até o fim daquele mês, a temperatura média global havia ultrapassado 1,5°C em 43% dos dias. Em 17 e 18 de novembro, a temperatura global atingiu mais de 2°C acima da média pré-industrial pela primeira vez. A OMM informa ainda que os últimos nove anos, entre 2015 e 2023, foram os mais quentes já registrados.
A elevação nos termômetros foi seguida de uma sequência sem precedentes e aparentemente ainda sem trégua de eventos climáticos extremos: um degelo inédito do mar na Antártida em pleno inverno, os piores incêndios florestais da história do Canadá, um número acima da média de ciclones tropicais intensos (inclusive a tempestade Daniel, que deixou 13 mil mortos e desaparecidos na Líbia em setembro) em todas as bacias oceânicas e temperaturas próximas do recorde histórico na Europa (48,2ºC na Sardenha) e na Ásia (41ºC em Bancoc, a mais alta já registrada na cidade).
A disparada da temperatura vem em um ano no qual as emissões de gases de efeito estufa seguem em elevação (quando deveriam estar caindo 8% ao ano para que a meta de Paris não seja perdida). Segundo o consórcio de cientistas Global Carbon Project, em 2023, as emissões aumentaram 1,1% em relação a 2022. As concentrações de gás carbônico no globo devem atingir 419 partes por milhão até o fim do ano. O número indica um aumento de 51% em relação à era pré-industrial. O limite de segurança do planeta é 350 partes por milhão.
A maior parte das emissões vem da queima de combustíveis fósseis, mas os incêndios florestais, intensificados pelas mudanças climáticas, também deram uma contribuição negativa. As queimadas históricas no Canadá, por exemplo, foram responsáveis por 23% das emissões globais de carbono de incêndios florestais em 2023.
Nesse cenário trágico de crise climática, cientistas divulgaram que cinco grandes sistemas estão em risco de sofrer mudanças irreversíveis, ultrapassando os chamados pontos de inflexão. O grupo é formado pelos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental, recifes de coral, circulação da corrente marítima subpolar do Atlântico Norte e regiões de permafrost, o solo congelado abaixo da superfície.
Plenária final da COP28, em Dubai. (Foto: Christopher Pike/UNFCCC)
Foi muito menos do que a sociedade civil e países-ilhas demandavam. Também muito menos do que o planeta precisa para ter uma chance de estabilizar o aquecimento em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais e minimizar o colapso climático. Ainda assim, a COP28, a conferência do clima da ONU de Dubai, adotou um texto que nomeia os combustíveis fósseis, principais responsáveis pela crise do clima, pela primeira vez em 30 anos. A COP28, com os pés fincados no solo de um petroestado, os Emirados Árabes Unidos, e sob a liderança do Sultan Al-Jaber, presidente da conferência e CEO da petroleira estatal Adnoc, convocou os países a “fazer a transição para longe dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos de uma maneira justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica, de forma a atingir emissão líquida zero até 2050, em linha com a ciência”.
Uma vitória, considerando que a agenda de eliminação de fósseis sequer constava formalmente da pauta da conferência – e, graças à pressão da sociedade civil e dos países insulares, foi adotada informalmente logo nos primeiros dias da COP como o termômetro do sucesso (ou fracasso) da cúpula. Apesar de acenar ao fim da era fóssil, o texto do Balanço Global do Acordo de Paris não estabelece prazos, metas ou meios financeiros para tal, além de promover tecnologias que ajudam a manter a produção e o consumo de fósseis e apontar ao gás fóssil como “combustível de transição”. Como sintetizou Simon Stiel, secretário-executivo da Convenção do Clima da ONU, não se trata de uma virada completa da página dos combustíveis fósseis, mas do “começo do fim”.
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na COP28. (Foto: Felipe Werneck/MMA)
No começo de 2023, um cauteloso João Paulo Capobianco afirmou numa reunião ministerial que a taxa de desmatamento na Amazônia neste ano deveria ser maior do que no ano passado, apesar da retomada do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento, o PPCDAm. O cuidado do secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente se justificava pela explosão dos alertas de desmate no segundo semestre de 2022: alta de 54%, diante da perspectiva do fim da mamata para os desmatadores com a possibilidade de derrota de Jair Bolsonaro na eleição. Dez meses de Ibama trabalhando depois, o sistema Prodes, do Inpe, mostrava uma queda de 22% na taxa. Os 9.001 km2 de floresta derrubada em 2023 (contra 11.954 km2 no ano anterior), portanto, incluem a “herança maldita” do segundo semestre de 2022. A taxa deste ano é a menor desde 2019 e põe o Brasil no rumo de cumprir sua meta climática em 2025 (que demanda 50% de redução). Com o relançamento do PPCDAm, os autos de infração do Ibama por crimes contra a flora aumentaram 104%, os embargos cresceram 31% e a destruição de equipamentos usados em ilícitos subiu 41%.
No Cerrado, com as autorizações para desmatamento emitidas por estados e municípios fora de controle, o aumento de apenas 3% em relação ao ano anterior (representando estabilidade na taxa) também surpreendeu. O período de agosto de 2022 a julho de 2023 registrou 11.011,69 km2 de derrubada, contra 10.688 km2 no ano anterior. Apesar de a estabilidade ser um sinal positivo em um cenário de descontrole, a taxa de derrubada no segundo maior bioma brasileiro superou a da Amazônia – em um com menos da metade do tamanho. A nova versão do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), lançada em novembro, tem o desafio de avançar no combate à supressão de vegetação amparada pela lei. Diferentemente da Amazônia, o Cerrado tem apenas 20% de reserva legal, o que expõe 80% do bioma ao desmatamento legal.
Mortandade de botos no Amazonas. (Foto: André Kumark | Instituto Mamirauá)
As imagens dos botos e milhares de peixes mortos no Lago Tefé e do Rio Amazonas transformado em estrada, sendo atravessado de motocicleta, de outubro deste ano, já são históricas. A maior bacia fluvial do planeta viu milhares de seus habitantes isolados e sem acesso à água, na terceira seca recorde enfrentada pela Amazônia desde 2005. Desta vez, a fatal combinação do El Niño com o aquecimento global fez o rio Negro chegar ao menor nível desde o início dos registros. Em Rondônia, o rio Madeira desceu tanto que forçou a suspensão de operações na hidrelétrica de Santo Antônio. Na esteira da seca, uma das piores em 120 anos, vieram queimadas e incêndios florestais que deixaram Manaus, Santarém e centenas de cidades menores e povoados rurais encobertos por fumaça e populações inteiras sufocadas.
O Guaíba alagou diversos pontos de Porto Alegre. (Foto: Pedro Piegas | PMPA)
Os estados da região Sul têm enfrentado fortes chuvas desde maio, o que já causou ao menos 53 mortes só no Rio Grande do Sul. Em novembro, o último temporal tirou 28 mil gaúchos de casa. Apesar da influência do El Niño, que deixa o sul mais úmido, especialistas reforçam que as mudanças climáticas estão intensificando as chuvas. “Já temos alguns estudos de atribuição que comprovam que, sem a mudança climática, a intensidade dos eventos não teria a mesma magnitude”, disse Lincoln Alves, climatologista e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ao jornal Zero Hora. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o Rio Grande do Sul segue com alerta de tempestade.
A tragédia gaúcha, que afetou sobretudo os municípios do vale do rio Taquari, na região central do estado, não foi a primeira causada por chuvas no país em 2023. Em fevereiro, deslizamentos de terra após uma tempestade atingiram o litoral norte de São Paulo, causando pelo menos 57 mortes e expondo a injustiça climática: quase todos os mortos eram moradores de bairros periféricos no município de São Sebastião, balneário de grã-finos paulistas cujos morros são ocupados pela população de baixa renda.
O Instituto Nacional de Meteorologia mostra que as temperaturas ficaram acima da média no Brasil em quase todos os meses do ano. Os maiores desvios ocorreram em setembro e novembro, quando os valores ficaram 1,6 °C e 1,5 °C, respectivamente, mais altos. Em novembro, quando houve a oitava onda de calor de 2023, Araçuaí (MG) atingiu a maior temperatura registrada em uma estação meteorológica do Inmet, 44,8 °C, no dia 19. Também foi no mês passado que a sensação térmica atingiu 60°C no estádio onde a cantora Taylor Swift fazia um show no Rio. A estudante Ana Clara Benevides teve uma parada cardiorrespiratória no local e morreu.
Em dezembro, o país foi atingido pela nona onda de calor. De acordo com o Inmet, o mês ainda pode registrar recorde de temperatura. Se isso acontecer, dezembro será o sexto mês seguido a bater recorde de temperatura em 2023. E é bom “jair” se preparando: o verão só chega oficialmente na sexta-feira (22).
Ministra Marina Silva e Júnior Hekurari na Terra Indígena Yanomami, em 05 de abril de 2023. (Foto: Reprodução | Ibama)
O ano estava apenas começando e o país se refazia da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro quando o país foi chacoalhado pelas fotos chocantes, publicadas pelo portal Sumaúma, de indígenas yanomami esqueléticos, morrendo de desnutrição após sua terra ter sido ocupada por mais de 25 mil garimpeiros, sob as barbas do Exército e a bênção do governo anterior. Em quatro anos, 570 crianças morreram por doenças tratáveis. O governo decretou emergência em saúde pública no território yanomami e o Ibama passou por cima da catimba das Forças Armadas e iniciou por conta própria, em fevereiro, uma operação de retirada dos invasores para interromper o genocídio yanomami.
Em agosto, um relatório lançado por três organizações indígenas apontou falhas nas ações para auxiliar e proteger a TI Yanomami, como a ausência de uma coordenação efetiva do governo federal. No mês passado, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a União elaborasse em 60 dias um novo plano para a desintrusão da TI Yanomami e de outras seis terras indígenas em estado crítico no país.
Em 2 de outubro o governo agitou outro vespeiro ao iniciar um processo de retirada de invasores da terra Apyterewa, da nação parakanã, no Pará. Um dos territórios indígenas mais invadidos do país, a Apyterewa deveria ter sido objeto de desintrusão antes da construção da usina de Belo Monte. Seus invasores têm conexões com o poder político paraense e nacional – em 2020, assessores da então ministra e hoje senadora Damares Alves foram ao Pará para intervir a favor dos grileiros. Em 29 de outubro, o ministro Kássio “Conká” Nunes Marques suspendeu a operação. Um dia depois, Barroso derrubou a decisão do colega e determinou que a União deveria continuar com o plano para a retirada dos invasores.
Sessão conjunta da Câmara e do Senado derruba vetos presidenciais e aprova marco temporal de terras indígenas. (Foto: Waldemir Barreto | Agência Senado)
A alegria durou pouco. Apenas uma semana depois de o STF, em votação histórica, decretar inconstitucional a chamada tese do marco temporal – segundo a qual povos indígenas só teriam direito às terras que ocupassem permanentemente desde outubro de 1988 –, o Congresso majoritariamente ruralista aprovou, em negociação com os articuladores políticos do governo Lula, uma lei que instituía o marco temporal e vários outros ataques aos direitos das populações originárias. A Lei 14.701, ou “lei do genocídio indígena”, como ficou conhecida, busca inviabilizar processos demacatórios e entregar territórios indígenas à exploração econômica por não-indígenas. Lula vetou o que havia de mais grave na lei, mas, em dezembro, o Congresso atacou novamente. Desafiando o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Constituição, suas excelências derrubaram parte dos vetos e mantiveram na lei o marco temporal. O Congresso rejeitou ainda outros vetos de Lula: passam a valer na Lei os trechos referentes à permissão de instalação de equipamentos militares e à expansão de malha viária nas áreas indígenas, além do que trata da exploração de recursos naturais sem consulta aos povos originários ou ao órgão indigenista competente.
Foram mantidos os vetos ao trecho que previa a “desdemarcação” de terras indígenas por alteração de traços culturais, ao que pretendia autorizar o plantio de transgênicos em terras indígenas e ao que expunha povos isolados contatos indesejados, que saem da versão final da legislação. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou que irá protocolar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo pela anulação da lei. É o mínimo.
Em 3 de novembro, a meta climática brasileira foi finalmente corrigida no portal da Convenção do Clima da ONU, revertendo a manobra contábil que, durante o governo Bolsonaro, havia diminuído a ambição brasileira para redução de emissões de gases de efeito estufa. A “nova-velha” NDC brasileira (da sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) retoma, em valores absolutos de emissão, o compromisso climático firmado pelo país em 2015. O anúncio da correção da “pedalada climática”, como ficou conhecida a manobra operada pelo ex-ministro Ricardo Salles, fora feito em setembro pela ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima), durante a Cúpula da Ambição Climática. A retomada do compromisso de 2015 permitiu, ainda, o encerramento de uma batalha jurídica iniciada no Brasil em 2021, quando seis jovens ativistas acionaram a União na Justiça Federal de São Paulo demandando o fim da “pedalada”. No final de novembro, a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança no Clima (MMA) celebraram um termo de conciliação com os proponentes da ação. Na ocasião, o governo federal comprometeu-se ainda com a construção da nova meta climática do país, a ser comunicada em 2025.
Brasil recebe antiprêmio Fóssil do Dia na COP28. (Foto: Jarê Pinagé | Engajamundo)
Uma das maiores batalhas ambientais do governo Lula foi aberta em maio, quando o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, negou licença para a Petrobras abrir um poço exploratório de petróleo no bloco 59, na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, no litoral do Amapá. A decisão, meramente técnica, causou um fuzuê no governo e revelou um país petroleiro, que deseja sair da 9a para a 4a posição entre os maiores produtores de combustíveis fósseis em plena crise climática. De quebra, fez cair as máscaras de políticos tidos e havidos como ambientalistas. Desde maio, o ministro de Minas e Energia, o negacionista climático Alexandre Silveira, tenta reverter no tapetão a decisão do Ibama.
Se não bastasse a queda de braço pelo bloco 59, o Brasil anunciou durante a 28° conferência do clima (COP28) que pretende tornar-se membro observador da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados (Opep+) e realizou um megaleilão para a abertura de novas fronteiras para a exploração de petróleo e gás. A contradição do anúncio com a determinação de sediar a COP30, em Belém, rendeu ao Brasil o antiprêmio Fóssil do Dia na COP.
A América Latina, inclusive, tem demonstrado uma grande resistência em se desapegar dos fósseis. Uma exceção é a Colômbia. O presidente Gustavo Petro tem defendido com firmeza a descarbonização da economia e, em dezembro, tornou-se o primeiro líder sul-americano a aderir ao Tratado de Não-Proliferação de Combustíveis Fósseis.