Cerimônia do Adeus: reflexões sobre o filme “A Partida”. Artigo de Faustino Teixeira

Cena do filme "A Partida". (Imagem: Reprodução)

08 Novembro 2023

"Em clássica passagem do livro da Sabedoria, no Primeiro Testamento, se diz que “idêntica é a entrada de todos na vida, e na saída” (Sb 7,6), ou seja, na partida. O ser humano é marcado pela contingência e a impermanência, mesmo que busque esconder essa realidade como forma de proteção de seu nomos".

O comentário é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

"As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra 
como são belas as tuas mãos pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos...
Por que há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida.”

Mário Quintana

Lidar com a morte nunca foi uma experiência tranquila para o ser humano. Ao longo da história, a morte foi sempre algo vivenciado com dificuldade. Para utilizar uma expressão do poeta Manuel Bandeira, ela foi sempre a “indesejada das gentes”. Para amenizar o peso de seu significado o ser humano encontrou canais rituais para defrontar-se com esse enigma e situá-lo dentro de um quadro de significado que pudesse então ajudar os que perderam entes queridos a lidar com a dor. Na sequência da perda existe o trabalho do luto, que se equipara à dinâmica do confrontamento com uma “lesão grave”.

Freud, que também viveu a traumática experiência de perda de uma filha, debruçou-se sobre o tema do luto, ajudando-nos a entender o seu significado. Para ele, o luto é um trabalho existencial de encontrar caminhos plausíveis de “perpetuar um amor do qual não queremos renunciar” [1], favorecendo condições aos que vivem a perda de continuar o seu caminho com serenidade. Os lutos precisam ser trabalhados, pois podem ser infinitos. Eles ocorrem quando uma relação de amor se desfaz e provoca danos em quem fica. Ele não se resume à perda de uma pessoa amada, mas como assevera Christian Dunker firma-se como “uma espécie de paradigma genérico para pensar os destinos para a experiência humana da perda” [2]. A privação de entes queridos vem considerada pela Organização Mundial da Saúde como uma das experiências deletérias para a saúde mental, daí o cuidado que deve envolver o tratamento das perdas.

O filme japonês A partida (Okuribito), de Yojiro Takito, de 2008, aborda o tema da travessia de uma forma lírica e delicada como poucos outros filmes conseguiram realizar com sucesso. O excelente trabalho cinematográfico do diretor japonês foi vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, além de outras importantes premiações em festivais mundiais, como o Japan Academy Prize, angariando os prêmios de melhor filme, diretor, ator e atores coadjuvantes. Destacam-se ainda o singular roteiro de Kundo Koyama, a bela fotografia de autoria de Takeshi Hamada e a maravilhosa trilha sonora de Joe Hisaishi.

Em clássica passagem do livro da Sabedoria, no Primeiro Testamento, se diz que “idêntica é a entrada de todos na vida, e na saída” (Sb 7,6), ou seja, na partida. O ser humano é marcado pela contingência e a impermanência, mesmo que busque esconder essa realidade como forma de proteção de seu nomos. A verdade é que todos nós morremos, e as narrativas sejam religiosas ou filosóficas buscam explicar esse dado inapelável que encontramos em diversos momentos da nossa vida, com a perda de parentes, amigos e outros queridos.

O filme de Yojiro Takito, sem recorrer a complexas discussões filosóficas ou religiosas sobre a morte, busca lidar com o fenômeno como um fato dado, na sua fenomenológica presença, favorecendo ao expectador lidar com as dores singulares e diversas daqueles que vivem a experiência. Através da preciosa mirada do diretor, somos levados a refletir sobre esse ato de partir e as nuances que envolvem os impactos da ausência naqueles que estão no tempo.

O roteiro segue uma sequência simples e de certa forma previsível, recorrendo a uma história que se passa com um violoncelista japonês, Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) que depois de perder o seu emprego numa orquestra privada em Tóquio, retorna à sua cidade natal, Yamagata, para conseguir nova ocupação, mas não mais no campo da música. Ele e sua esposa, Mika (Ryoko Hirosue), tomam juntos a decisão de retomar a vida na pequena cidade onde a história de Daigo começou.

Depois de vender o seu precioso instrumento, Daigo retorna com sua mulher para sua cidade natal e ali busca uma nova ocupação. Os dois passam a viver na casa deixada como herança pela mãe do músico, e ali ainda existem marcas da presença de seu pai, que abandonou a família quando Daigo era ainda menino. A situação de abandono ficou impressa na vida do músico, como um trauma difícil que teve que resolver ao longo de sua trajetória. Ela traz consigo as marcas de uma relação conflitiva com o pai.

Depois de tanto tempo de separação, ele guarda do pai uma nebulosa lembrança, e sua fisionomia perde-se na memória. O que o músico recorda, como algo que ficou marcado como presença em sua vida, foi uma troca de pedras que fez com seu pai quando ainda era criança, seguindo uma velha tradição japonesa onde as pessoas partilhavam pedras para expressar os sentimentos de uma ligação, recorrendo a pedras que pudessem representar a pessoa, de acordo com seu peso e textura.

Na casa onde o casal passou a habitar, havia uma coleção preciosa de música clássica, que era uma das paixões de seu pai. Em cena do filme, podemos observar como destaque, num dos discos estampados, o concerto para violoncelo de Schumann, interpretado pelo músico Pablo Casals. O menino foi incentivado e mesmo obrigado por seu pai a dedicar-se ao aprendizado do violoncelo. A presença bonita da música instrumental está presente na trilha sonora do filme, envolvida pela harmônica presença do violoncelo em clássicos de Schumann, Brahms, Gonod e Wiegenlied, assim como a imponente presença da nona sinfonia de Beethoven, com orquestra e coro. Tudo também somado com outros arranjos escolhidos por Joe Hisaishi, responsável pela trilha sonora do filme.

Cena do filme "A Partida" em que Daigo toca seu violoncelo. (Foto: Reprodução)

Na busca de um emprego, Daigo acaba descobrindo no jornal uma oferta que lhe interessou. No informe jornalístico estava escrito: “Ajudamos a partir”. Imaginando ser uma agência de viagens, e não exigindo requisitos mais complexos, o músico acabou se interessando e partilhou o achado com a mulher. Ao dirigir-se ao local indicado, descobriu com perplexidade que a vaga disponibilizada era para o trabalho numa funerária. Era um trabalho profissional relacionado ao cuidado e preparação dos corpos visando sua cremação. Assustado, Daigo pensou em renunciar, mas acabou aceitando a vaga, incentivado pelo patrão do estabelecimento, a Agência NK, um senhor mais velho, experiente, que transparecia a tranquilidade de um mestre no ofício de ajudar as pessoas em suas partidas. O mestre e responsável pelo ofício foi representado no filme pelo ator Tsutomu Yamazaki.

O mestre do ofício era uma figura muito especial, guardando um ar de sabedoria e serenidade indispensável para o ofício tradicional de nokanshi, aquele que prepara os mortos para o velório e a cremação. O trabalho exige uma técnica particular, um ofício cuidadoso e delicado de embelezar o morto, apaziguando a dor profunda dos familiares, que podem, na despedida, encontrar a pessoa amada num resplendor peculiar. Na cerimônia pública de despedida, o profissional revela toda a sua maestria e delicadeza no cuidado com o outro que parte. Nas cenas das cerimônias não há quem não fique paralisado pela beleza e delicadeza das mãos do cuidador, que tratam do corpo com o dom de um artista. No tratamento que vem dado ao corpo, as mãos exercem um papel maravilhoso. Tudo começa e termina com o recurso da arte das mãos.

O modo de ser e o jeito especial de seu patrão, foram traços importantes para o discernimento de Daigo em permanecer no ofício, apesar de todas as resistências que um tal emprego envolve na população do povoado. O ofício do mestre em nada muda o seu jeito particular de viver e o seu apreço pelas comidas. Numa singular cena do filme, Daigo se surpreende vendo o seu mestre apreciar uma guloseima com extremo deleite. Ele pergunta ao mestre o que era aquilo que ele comia com tamanha avidez. Ele diz que aquilo era esperma de Baiacu. O amigo se estremece...

Em cena das mais marcantes do filme, o mestre exerce sua função com uma senhora que tinha falecido. A destreza e delicadeza do mestre no tratamento do corpo provoca encantamento e emoção profunda em todos os que assistem a cerimônia, incluindo Daigo, sempre muito atento em seu aprendizado. Ao longo da cerimônia, vemos na primeira fila o marido da mulher falecida, com seu olhar de tristeza abissal, perdido naquele rosto que vai ganhando forma e beleza. Em determinado momento, o mestre pede ao marido o batom que sua mulher mais gostava. Ele, atônito, nem consegue perceber com nitidez o pedido, e sua filha, que estava ao lado, prontifica-se a trazer o batom desejado. E então vemos a beleza do mestre enfeitando a mulher e fazendo-a reviver de forma novidadeira.

A cena vem pontuada com a voz de um narrador que relata o que significa fazer reviver um corpo frio e dar-lhe beleza eterna. Tudo executado com muita técnica e experiência, com muita precisão e delicadeza, de forma a favorecer o último adeus. Estar ali presente e poder assistir ao jogo de mãos de um tal profissional era poder acompanhar o significado desse passo ao infinito, desse diverso encontro com a Alteridade. E quase em todas as cenas que envolvem o trabalho profissional, os parentes ou amigos daquele ou daquela que partiu, sentem-se profundamente agradecidos pela homenagem indescritível. Em casos concretos, percebe-se claramente o alívio dos que acompanham a cerimônia, tornando o impacto menos doloroso e suscitando uma nova tessitura na comovida identidade dos que ficaram.

Daigo aprende muito bem o seu ofício, talvez facultado pela delicadeza de mãos que passaram pelo aprendizado do violoncelo. Decorrido o tempo de experiência, Daigo esmera-se em seu ofício, destilando delicadeza, ternura, cortesia e compaixão no novo ofício, que passa a se apegar com afinco. Vai percebendo com o tempo que cuidar do corpo é adquirir a possibilidade de um novo olhar sobre o mundo e sobre os outros. Vai crescendo nele, com brilho singular, a consciência de que a morte pode ser vista de outra forma, como um portal para a eternidade, e que o trajeto para a nova forma de vida, pode ocorrer com singularidade lírica e poética. Cresce com ele a sensação de que a morte é algo belo e que merece uma reverência especial. De fato, a experiência de Daigo provoca nele uma real metanoia.

Cena do filme "A Partida". (Foto: Reprodução)

Em razão de ser uma profissão rejeitada, por lidar com os corpos frios, ela não é aceita como um emprego digno pelos outros que não conseguem alcançar o significado sublime do ofício. Daigo teme revelar para sua mulher o ofício assumido, já prevendo uma rejeição. De fato, com o tempo, os outros da região acabam percebendo o trabalho exercido por Daigo e junto com isso cresce também o preconceito, que envolve igualmente sua mulher. Ela pede ao marido para encontrar um trabalho mais digno e, diante da perplexidade dele, ela prefere afastar-se de casa por um tempo indo morar com seus pais. Ele continua a exercer seu ofício.

Tempos depois, Daigo surpreende-se com a volta de sua esposa, que retorna para manifestar ao marido que está grávida. Solicita a ele, mais uma vez, que busque um emprego diverso. O desencontro entre os dois, relacionado ao ofício exercido pelo marido, prossegue sem alteração. Algo de novo, porém, sucede, com a morte da dona de um estabelecimento de banhos na cidade que todos frequentam. Era uma mulher reconhecida e admirada por todos. Daigo procede como sujeito na cerimônia de despedida dela. Foi quando então, tocada de espanto e admiração, maravilha e sensibilidade, sua esposa pôde, pela primeira vez, reconhecer a beleza envolvida no trabalho profissional do marido. Tudo então passa agora a ganhar um colorido diferente na relação entre os dois.

Certo dia, ao chegar ao seu trabalho, Daigo depara-se com a funcionária da empresa e esta revela a ele que seu pai tinha falecido. Estava numa colônia de pescadores, e alguém, remexendo os seus papeis, acabou descobrindo sobre o seu filho. A notícia não vem recebida com a dor que em geral acompanha os que são tomados pela surpresa de uma perda. Havia ainda muito rancor naquele menino crescido, que viu seu pai abandonar sua família e partir sem jamais dar notícia. Aos poucos, em razão de um trabalho interior difícil, Daigo decide partir com a mulher para o ofício profissional de despedida de seu pai. Quando chega no povoado, o pai já está para ser removido para a cremação. Chegam dois agentes funerários para buscar o corpo, e o filho acompanha a cena e se choca com o jeito naturalizado e indiferente com que os profissionais lidam com o corpo de seu pai, já querendo colocá-lo de qualquer jeito no caixão.

É quando então Daigo intervém impedindo a ação dos profissionais. Diante da surpresa dos mesmos, a esposa de Daigo entra em cena sublinhando que seu marido também era um profissional do ofício. Na sequência, o que vemos é uma linda cerimônia privada de Daigo e sua mulher diante do corpo frio do pai. Daigo aproxima-se do rosto daquele que se tornou distante, e aos poucos aquela imagem embaçada que pontuava a sua memória sobre o pai, vai ganhando um delineamento novo e o rosto vai se formando novamente para ele. E ele diz: “Meu pai!”. Com suas mãos delicadas, começa o trabalho paciente e cuidadoso de cuidar do rosto de seu pai, barbeando-o com cuidado e ajeitando cada segmento de seu corpo. Quando vai lidar com o arranjo das mãos do pai, percebe que uma encontra-se fechada e, dentro dela, a pequena pedra que tinha ganhado do filho em tempos passados. É uma cena de beleza exemplar. Através de seu exercício profissional processa-se o reatamento de um laço que se perdeu no tempo, mas que agora ganha um significado único de presença e unidade.

Em precioso artigo sobre os filmes orientais, e em particular sobre esta obra de Yojiro Takito, o pesquisador Rodrigo Petrônio desvela a presença complementar de nihilismo e transcendência neste singular trabalho [3]. Sublinha, com razão, que o interesse maior presente na visada do diretor não é com o que ocorre com o além da vida, mas com aquele “último minuto” que marca uma cerimônia de adeus. Não se lança o expectador num futuro distante e desconhecido, mas provoca-se nele a atenção singela e gratuita para a última contemplação de um rosto querido, que vai sendo embelezado para a despedida final. A cerimônia deixa escapar aquela “última fresta” de luz, que transcende a miséria intramundana. Diante daquele corpo destituído de vida, o diretor consegue fazer renascer o outro pelas mãos de um cuidador delicado. Trata-se da expressão do verdadeiro “cuidado” (sorge), como indicado por Martin Heidegger em sua obra Ser e Tempo. Somos, assim, levados pelo diretor a espreitar o portal fundamental que separa os dois mundos, ou seja, o contato com o nada que se revela a porta para a transcendência.

Numa das cenas importantes do filme, em torno ao funeral da dona da casa de banhos, vemos a presença do profissional que trabalha há anos naquele momento final da cremação, quando se aperta o botão verde para o acendimento do fogo abrasador, que tudo destroça. Ele era um frequentador assíduo da casa de banhos e ficara muito amigo da dona do estabelecimento. Os dois tinham passado juntos o Natal do ano anterior e ela tinha pedido a ele, como num lance de pressentimento de sua morte, que pudesse dar continuidade ao seu trabalho na casa de banhos, que passava por momento de decadência. Ao final da cerimônia, quando o corpo já estava para entrar no recinto da cremação, entra na sala o filho da mulher e pede ao responsável para assistir aquele momento derradeiro. O homem diz ao amigo que acender o fogo era a sua especialidade. O trabalho com o fogo, realizado há anos, acabou provocando nele uma reflexão decisiva, que resumiu para o amigo: “A morte não é senão uma passagem. Não é o fim. Com ela deixa-se para trás um mundo, mas certamente passa-se para um outro. Ela é o verdadeiro portal”. E assinala para o olhar perplexo do filho de sua amiga que o seu trabalho ali é o de ser “guardião do portal” que dá início a uma nova travessia. E tudo o que diz quando aperta o botão é: “Boa viagem, até breve!”.

Notas

[1] Christian Dunker. Lutos finitos e infinitos. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023, p. 15 (citando uma carta de Freud).

[2] Ibidem, p. 21.

[3] Rodrigo Petrônio. Niilismo e transcendência no cinema oriental. Um Oriente a Oriente do Oriente. In: Faustino Teixeira (Org). Mística e Literatura. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, p. 214-225.

Leia mais