Igreja Católica minoritária. Artigo de Manuel Joaquim R. dos Santos

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02 Agosto 2023

"O século XXI não veio ditar o fim da Igreja e muito menos do cristianismo. As demandas que estão surgindo com o desenvolvimento da IA, com as mudanças climáticas e mesmo com o declínio da Democracia, terão na Igreja Católica um interlocutor relevante, capaz de provocar uma epistemologia credível e sensata", escreve Manuel Joaquim R. dos Santos, presbítero da Arquidiocese de Londrina – PR.

Eis o artigo. 

Achados como minoria, devemos ter comportamentos tal como somos! Isso se se deve refletir no conceito da autoridade, na demolição de qualquer clericalismo ou carreirismo ou no uso de roupagens, que nos remeteriam para o tempo em que, não só éramos maioria, mas agíamos como tal! Ser minoria, apela para o resgate do conceito fermento e não massa.

A informação de que a Igreja Católica é minoria onde antes era “religião dominante e às vezes oficial”, é mais do que ensejo para uma extraordinária reflexão. Torna o assunto obrigatório e imprescindível, para quem aceita ver nesse fenómeno um sinal dos tempos.

O processo sinodal encetado pelo Papa Francisco, visa tudo, menos resgatar a maioria perdida! A reforma da Igreja, à luz da Tradição e do Concílio Vaticano II como elemento fulcral da eclesiologia do atual pontífice, orientará a Igreja Católica para construir uma relevância que vem perdendo, assumindo-se como minoria.

A Itália, os países da Europa em geral e podemos sem receio, incluir as Américas, são já minoritariamente cristãs, conforme noticiado. Os números estatísticos últimos, nos dão conta de menos da metade da população que se diz católica e cerca de 10% que ainda frequentam as missas dominicalmente ou vão em eventuais celebrações de sacramentos. Mas o mais dilacerante, não é a questão da estatística em si. A maioria absoluta dos que se dizem “praticantes”, está distante do pensamento católico sobre a moral e desconhecem a teologia dos próprios sacramentos. Foi isso que nos disse o estudo feito na Itália e que se aplica facilmente a outras regiões do globo, tradicionalmente católicas.

A Igreja Católica na Alemanha perdeu no último ano meio milhão de adeptos e sabemos que lá, esse fenômeno se reflete imediatamente nos bolsos, ou nos cofres, das dioceses! Se investirmos nos números de evasão dos últimos dez anos, também constataremos que essa tendência é irreversível a médio e longo prazo. As causas locais “tedescas” são variadas e não passíveis de serem aqui analisadas, mas não estão tão distantes dos seus congêneres países vizinhos. A Europa não será um continente pós-cristão num futuro próximo. Ele já o é, em 2023! Quanto aos países latino-americanos onde o neopentecostalismo cresceu nas últimas décadas, a Igreja Católica murchou para patamares jamais vistos. Em 2020, por exemplo, uma pesquisa do Datafolha indicou que 31% da população brasileira se declarava evangélica e o número de templos passou de 62,8 mil, em 2010, para 109,5 mil em 2019; foram abertos no país, em média, 17 templos evangélicos por dia, em 2019. De acordo com o estudo do CEM/Cepid, existiam no Brasil em 2019: 48.781 templos pentecostais, 22.400 templos missionários; 12.825 templos neopentecostais; em contrapartida, havia 25.554 templos evangélicos não enquadrados, por especialistas, em nenhuma das três ramificações do protestantismo no Brasil. Os católicos já são minoria no Estado do Rio e logo o serão noutros entes da federação.

Há, porém, vários pensadores, destaco Tomas Hálik, que veem neste fenômeno, uma possibilidade de renascimento e de fidelização da Igreja ao Evangelho. A Igreja Católica no seu processo de renovação (semper reformanda est) é convidada e dialogar e a encontrar no chão comum da humanidade, os sinais do que se propõe ensinar e anunciar. Diz o teólogo checo: “o caminhar junto que caracteriza a sinodalidade, nos sublinha que a Igreja “precisa urgentemente de aliados”, com quem partilhar o caminho comum. Mas, para tal, não deve abordar os outros “com o orgulho e arrogância de quem possui a verdade. A verdade é um livro que nenhum de nós leu até o fim. Não somos os donos da verdade, mas amantes da verdade e amantes d’Aquele que pode dizer: Eu sou a Verdade”. Para isso, ser “mater et magistra” passa por um caminho longo de reconciliação consigo mesma e com o mundo. O Vaticano II ensaiou esse processo e sabemos das tensões que gerou, durante e depois do Concílio. (John O’Malley o afirmou na Conferência sobre o “Vaticano II: a crise, a resolução, o fator Francisco”, nomeadamente sobre o documento Gaudium et Spes:

“A propósito deste documento devemos notar dois fatos importantes. Em primeiro lugar, o título do documento é "A Igreja ‘NO’ Mundo Moderno", não a Igreja ‘para’ o mundo moderno, nem a Igreja ‘contra’ o mundo moderno. Em outras palavras, o Concílio reconheceu como fato da vida que todos e cada um de nós, incluindo os membros da Igreja, fazemos parte do mundo moderno. Não podemos, de forma alguma, sair dessa realidade, mesmo que queiramos. Por conseguinte, nem a Igreja pode sair dele”!

Por uma questão de coerência, devemos afirmar que a Igreja Católica conhecia estes embates desde, pelo menos, a idade moderna. Se em tempos medievais, a consolidação doutrinária interna lhe trouxe dissabores e dilacerações, inclusive com excomunhões e exílios, o renascimento e a chamada modernidade, trouxeram-lhe o desafio de novas cosmovisões e interpelações cientificas, às quais ela nem sempre respondeu com a mesma humildade, agora preconizada. Vivíamos então, em plena cristandade, conhecida pela aliança controversa do poder temporal e espiritual, gerando falsas e ilusórias seguranças à “barca de Pedro”! A Revolução francesa, embora repleta de atrocidades condenáveis, apresentou-lhe os valores que se consolidariam ao longo dos séculos seguintes, na formação das nacionalidades contemporâneas. Igualdade, fraternidade e liberdade são premissas novo testamentárias não desprezíveis. Contudo, o alheamento aos frutos da revolução, motivado em parte pela perseguição dos revolucionários à Igreja francesa e posteriormente a Pio VI, desterrado por Napoleão, deixaram a Igreja Católica no papel de oposição.

Nos séculos seguintes a Igreja nem sempre reagiu favoravelmente às novas invenções e organizações, que em tese poderiam questionar o seu poder de tutora da humanidade ainda “crente”. Em relação à imprensa e à Comunicação em geral, por exemplo, o primeiro documento oficial é o breve Accepimus Litteras Vestra, do papa Sisto IV (1414-1484), enviado à Universidade de Colônia (Alemanha) no dia 17 de março de 1479. Assim afirmava o pontífice: “A arte da imprensa, ao mesmo tempo tida como utilíssima porque facilita a multiplicação de livros úteis e notáveis, pode se tornar danosíssima se quem a possui utilizar mal, imprimindo aquilo que é nocivo”. Essa frase resume a visão da Igreja, a qual perdurou por décadas e levou à criação da censura e do imprimatur, com o fim de evitar a difusão de doutrinas heréticas, conteúdos impróprios às pessoas incultas e versões não autorizadas dos textos bíblicos. Era um tempo de condenação da novidade!

Na encíclica Imortale Dei (1885), por exemplo, Leão XIII convoca as dioceses para terem seus próprios semanários e os padres católicos para serem protagonistas na imprensa, como escritores de conteúdos fiáveis. Afirma que “é preciso opor escrito a escrito, publicação a publicação”. A imprensa pode ser um meio potente para a educação da sociedade, mas é preciso ter uma postura crítica e limitar seu uso, assim se pensava. O papa exorta a que se criem periódicos cristãos para combater sobretudo as ideologias anticlericais da época. (Revista Vida Pastoral n 340, Agosto 2021)

A grande mudança na postura da Igreja Católica ter-se-á dado, exatamente no campo da Doutrina Social, com a encíclica Rerum Novarum de Leão XIII em 15 de Maio de 1891. Pela primeira vez, a Igreja tomava a dianteira e o protagonismo na defesa de uma organização social que demolia a medievalidade no mundo do trabalho, já denunciada por Marx e outros pensadores. Tratava-se de uma carta aberta aos bispos e aos padres, a todo o povo de Deus, sobre as condições das classes trabalhadoras, em cuja composição as ideias distributivas de Ketteler e Manning tiveram grande influência. O documento critica fortemente a falta de princípios éticos e morais da sociedade progressivamente laicizada de seu tempo e que seria uma das grandes causas dos problemas sociais. Leão XIII defende a justiça social alicerçada sobre a melhor distribuição de riqueza, a intervenção do Estado na economia a favor dos mais pobres e desprotegidos e a caridade do patronato à classe operária. De lá para cá, são inúmeros os documentos papais e sinodais, que reforçam essa linha de pensamento social. A Doutrina Social da Igreja é um tesouro inesgotável e infelizmente inexplorado pela maioria dos católicos! (Se assim o não fosse, concordo que a evasão poderia ser menor).

Causa estupor, que a maioria dos crentes consultados na pesquisa italiana, tenham o demônio como crença consolidada, sobrepondo-se inclusive, a outros itens da doutrina católica! Simultaneamente pois, essa maioria não segue as premissas eclesiais relacionadas com o pensamento social (incluo aqui João Paulo II e Bento XVI) ou mesmo as orientações da moral familiar e sexual! Sabendo que a figura do demônio, mais do que ensinamento católico, reflete configurações de pensamento popular e cultural elaborado ao longo de séculos, não exageramos ao pensar que também esse item da pesquisa, confirma a realidade outside the church dessa maioria! Vários membros da minha família que atualmente não se dizem católicos, fazem jus ao ditame espanhol: No creo en brujas, pero que las hay, las hay!

O século XXI não veio ditar o fim da Igreja e muito menos do cristianismo. As demandas que estão surgindo com o desenvolvimento da IA, com as mudanças climáticas e mesmo com o declínio da Democracia, terão na Igreja Católica um interlocutor relevante, capaz de provocar uma epistemologia credível e sensata. A axiologia evangélica, a transcendência, o sobrenatural e a misericórdia como “sobrenome de Deus”, farão dela, muito mais do que uma ONG! Contudo, para que isso se torne uma realidade, a Igreja Católica necessitará derrotar dentro de si mesma, todas as tendências de apelação para um passado que não voltará mais e que a tornariam numa caricatura imprestável e ridicularizável!

Francisco é um timoneiro oportuno neste tempo de pós-modernidade. Sem medo e sem pressa, ele incute à Igreja a reforma que vem do seu lugar natural, para ser consistente: debaixo! Os frutos do Sínodo darão o tom a uma partitura que o mundo precisa ouvir.

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