14 Julho 2023
Como os cientistas preveem o clima? Como atualizam seus modelos, levando em consideração, por exemplo, os megaincêndios? Qual é o papel dos oceanos? Respostas com o pesquisador da Météo-France Roland Séférian.
A entrevista é de Vincent Lucchese, publicada por Reporterre, 11-07-2023. A tradução é do Cepat.
Junho foi o mês mais quente já registrado na Terra. Recordes absolutos de temperatura global foram quebrados no início de julho... Devemos esperar que outros recordes climáticos sejam batidos durante o verão?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que esses recordes fazem parte da grande tendência que é a das mudanças climáticas há décadas: o mundo está aquecendo em média um décimo de grau por década, sob o efeito das atividades humanas que emitem gases de efeito estufa. Nos últimos dez anos, também observamos que o mês de junho bate regularmente os recordes do ano anterior. Neste contexto, podemos de fato esperar que outros recordes sejam batidos neste verão [no Norte]. Uma vez que um nível tão alto de calor foi armazenado, muitos solos secaram e muita umidade se acumulou na atmosfera aquecida, muitos eventos extremos são esperados.
Esse nível de temperatura em 2023 é coerente com os modelos dos climatologistas. No entanto, o aquecimento não é linear. Como explicar que este ano está particularmente quente?
Além da tendência de longo prazo do aquecimento global causado pelo homem, é preciso levar em conta também a variabilidade climática natural. É provável que nos deparemos com a conjunção de diferentes fenômenos. Primeiro, existe uma variabilidade plurianual ligada ao fenômeno climático El Niño, que está se desenvolvendo no Oceano Pacífico equatorial. Este fenômeno acontece novamente este ano e a Agência de Observação Atmosférica e Oceânica dos Estados Unidos (NOAA) sugere que será “pelo menos” de média intensidade. Isso significa que o maior oceano do planeta está acumulando calor, o que afeta a temperatura global. Sabendo que se formos para o topo da faixa de previsão do El Niño, nossos colegas especialistas no assunto temem que estejamos caminhando para fenômenos sem precedentes.
Somam-se a isso as variabilidades climáticas locais e anuais. Atualmente, no Atlântico Norte, o Anticiclone dos Açores é extremamente fraco. Os ventos fracos levam a menos mistura entre as águas superficiais e as águas subterrâneas mais frias. O Atlântico Norte tende assim a aquecer, o que se reflete nas ondas de calor extremo do mar observadas nas últimas semanas. Resumindo: o oceano tende a limitar o aumento da temperatura do ar. Mas com um oceano particularmente quente neste momento, isso, pelo contrário, aquece a temperatura global...
Esse papel essencial do oceano explica por que os recordes são quebrados quando chega o verão no Hemisfério Norte, que é menos provido de oceanos?
Sim. A presença de áreas continentais no Hemisfério Norte favorece o aumento das temperaturas porque elas têm um poder de reflexão maior que os oceanos e, portanto, refletem mais calor para a atmosfera. Em dezembro, quando começa o verão no Hemisfério Sul, a radiação solar é mais captada pelos oceanos, que são um fluido relativamente opaco e absorvem a maior parte do calor nesta estação.
Determinados ciclos de retroações positivas (fenômenos causados pelas mudanças climáticas e que, por sua vez, causam maior aquecimento do clima) não são levados em consideração pelos modelos climáticos atuais. É provável que no futuro sejamos surpreendidos pela velocidade dos aumentos de temperatura?
Uma importante retroação climática diz respeito ao forte poder reflexivo dos glaciares, o que permite que a Terra aqueça menos. A mudança climática está fazendo com que eles derretam, o que por sua vez acentua o aquecimento global… Assistimos a um derretimento cada vez mais rápido dos glaciares no Ártico e na Antártida, com recordes quebrados novamente este ano. Esses mecanismos têm efeito a longo prazo, mas é difícil dizer se influenciarão as temperaturas neste verão.
Esse poder reflexivo do gelo, o albedo, foi levado em consideração durante muitos anos em nossos modelos climáticos. Por outro lado, a dinâmica da evolução das calotas polares não está representada. A maneira como a mudança climática leva ao recuo do gelo e pode agir como retroação positiva ainda não foi incorporada em nossos modelos. Mas isso não significa necessariamente que o clima vai esquentar mais rápido do que o esperado, é preciso ter muito cuidado porque todos esses fenômenos são complexos. Por exemplo, se a queda do albedo nos polos pode acelerar o aquecimento, o derretimento da água gelada em direção aos oceanos pode afetar inversamente sua estratificação, sua capacidade de armazenar calor e, assim, contrariar a tendência regional de aquecimento.
Outro exemplo de fenômeno não levado em conta diz respeito à multiplicação dos megaincêndios. Estes são relativamente novos: eles ilustram que o aquecimento global está nos mergulhando no desconhecido?
A maior parte das emissões de gases de efeito de estufa incluídas nos modelos dizem respeito a emissões humanas diretas, resultantes das atividades industriais, dos transportes, da energia, etc. As emissões induzidas por esses megaincêndios, por exemplo, não são consistentemente levadas em conta. A comunidade científica está trabalhando nisso porque sabemos da importância dessas questões. Os megaincêndios de pântanos na Indonésia em 2011, entre os primeiros a chegarem às manchetes, emitiram em uma única ocorrência tantos gases de efeito estufa quanto os Estados Unidos emitiram em um ano! Nós trabalhamos, através de vários projetos de pesquisa, para melhorar a dimensão preditiva dos nossos modelos, nomeadamente incorporando incêndios e a dinâmica das calotas polares.
Mais uma vez, não devemos ser catastróficos sobre as consequências desses fenômenos que ainda não foram integrados nos modelos. Para dar outro exemplo: sabemos que o degelo do permafrost, essas terras congeladas nas regiões polares, levará a altas emissões de CO2 e metano. Mas o que não suspeitávamos até recentemente é que ela também permite o crescimento de uma nova vegetação que tenderá a armazenar carbono. O desafio é entender em modelos futuros se esses processos terão um saldo neutro, positivo ou negativo em termos de retroação.
Os recordes de calor que começamos a atingir nos aproximam de um possível cruzamento de “pontos de não retorno”, ou seja, mudanças irreversíveis de estado de certos sistemas climáticos?
Também em relação a este aspecto há muita incerteza. Entre 1,5°C e 2,5°C de aquecimento, vamos entrar numa zona cinzenta, na qual é possível atingir um certo número de pontos de inflexão, como o derretimento das calotas polares que mencionamos, o desaparecimento dos recifes de coral ou mesmo o declínio da floresta amazônica. Mas o limiar será ultrapassado após 10 anos passados a 1,5°C de aquecimento, após 20 anos, 30 anos? Ou a 2°C? Não sabemos absolutamente nada sobre isso. A duração desses aquecimentos e as consequências desses superaquecimentos não têm precedentes na história da humanidade e não sabemos realmente o que causarão.
A outra grande incerteza é saber como o sistema climático responderá a esses pontos críticos. Essas mudanças irreversíveis no estado das calotas polares ou da floresta tropical ocorrerão em um mundo hipoteticamente estabilizado em +2°C, sem reiniciar a máquina do aquecimento e causar um descontrole? Não sabemos nada sobre isso. A única coisa que sabemos com certeza é que, para evitar esse risco, teríamos que limitar o aquecimento global a menos de 1,5°C. O conhecimento para isso existe: sabemos que podemos evitar nos colocar em uma faixa de temperaturas planetárias de alto risco através de grandes esforços de mitigação. E se o limite de 1,5°C for ultrapassado, a próxima meta deve ser 1,6°C. Esta é a melhor e mais urgente política de adaptação.
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"A Terra está aquecendo em média um décimo de grau por década". Entrevista com Roland Séférian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU