"Uma nação perde sua potência coletiva ao colocar a história como objeto jurídico. Óbvio, entendemos que as comissões de verdade são importantes para apuração de fatos a fim de se fazer justiça aos envolvidos e para se registrar na história os relatos tal como são. O que parece ser um grande equívoco, por exemplo, é marcar com sinal de culpa os descendentes daqueles réus – transformados em verdadeiros fantasmas. Esse exercício movimenta interesses de poder, de reescrita da história e de condenação simbólica a determinados grupos da sociedade, e boa parte da esquerda comprou essa ideia", escrevem Nelson Lellis e Roberto Dutra.
Nelson Lellis é doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e bolsista pós-doutor pelo mesmo programa, membro do Núcleo de Estudos em Representação e Democracia (N.E.R.D.) e pesquisador-colaborador no Ateliê de Humanidades, instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação.
Roberto Dutra é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin, professor associado do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas (LGPP) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), membro associado da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), bolsista de produtividade do CNPQ (PQ-2) e Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ).
Para todo crítico sério do identitarismo não é de somenos importância nem exercício inane iniciar textos como esse dizendo que consideramos e repudiamos a infeliz presença de crimes racistas, de violências de gênero, preconceitos de classe etc. Eles existem e precisam ser combatidos com o rigor da lei e com a devida conscientização/educação sobre o que significa viver civilizadamente. A objetificação de sujeitos no sistema capitalista, que continua etiquetando-os valorativamente na sociedade, é uma realidade que contribuiu para novas discussões sobre o antagonismo entre grupos e para a identificação ora real, ora ideológica, dos opressores e dos oprimidos. Estamos cientes dessa linha tênue.
Trazemos, no entanto, dois breves argumentos, já debatidos na literatura especializada, para pensar como a cidadania nacional é desafiada pela lógica da cidadania cultural alimentada pelo identitarismo. Em primeiro lugar, a questão da revisão da história e a constante oposição entre o Nós versus Eles que busca definir ad aeternum a figura do oprimido e opressor; em segundo, a ausência de um projeto comum para a Nação que impossibilita, mesmo com tantas diferenças, orquestrar a diminuição da desigualdade. Vejamos.
Um dos argumentos mais complexos que compõem a cartilha identitária é o da historiografia vitimária. Seu fundamento é revisitar a história de uma Nação observando os grupos dominantes responsáveis por reprimir grupos periféricos. Ilan Greilsammer (1998), ao escrever sobre a história de Israel, observou que as teorias antiestablishment dos sociólogos na Nova Esquerda estadunidense das décadas de 1970-80 influenciaram fortemente os pesquisadores israelenses acerca do assunto. Reinterpretar o passado é um recurso não só político como também ideológico para se conceber narrativas que garantam maior legitimidade para determinado grupo. Nas palavras de Mathieu Bock-Côté (2019, p. 115), “a memória se torna, assim, um campo de batalha em que os dominados de ontem tiram sua desforra e fundam, na apresentação de seu percurso histórico, a legitimidade de suas reinvindicações”.
Não somente a “história de Israel”, mas outras tantas que são submetidas ao diapasão do multiculturalismo, reduzem a história nacional a uma mesma trama forçando uma imagem de Estado ideocrático; com isso, sugere-se revisitar a história coletiva trazendo, para o centro do debate, as vítimas de hoje e que se sentem ligadas simbolicamente às vítimas do passado para acusarem os grupos identificados como opressores. Forma-se, assim, uma maquete ideológica em que a memória de uma Nação vai se tornando numa memória cuja pedagogia mais relevante é perpetuar a imagem dos opressores pelo sexo, pela cor, pela classe etc., e reescrever as experiências históricas – já traumáticas – elevando a culpa como um programa de expiação. Como disse Bock-Côté (2019), para esse grupo “já não existe história instrutiva, acumulativa, mas uma história cuja soma é zero”. Nas célebres palavras de George Orwell (2009), “quem controla o passado, controla o futuro”.
Havendo culpa, deve-se, portanto, instaurar o arrependimento. Quem ajudou a germinar a cultura do arrependimento foram os movimentos sociais da década de 1960 – a dinâmica ideológica dos radical sixties (cf. FERRY; RENAUT, 1988). Para que estruturassem seu imaginário, era necessário construir uma narrativa histórica conduzindo cada indivíduo a um grupo de identidade, no entanto, a ideia não era, objetivamente, estabelecer um vínculo, conforme Bock-Côté observa, mas desfazê-lo. Não foi por qualquer coisa que pensadores mais conservadores, como o jornalista francês Jean Sévillia e o historiador Daniel Lefeuvre, entenderam o “historicamente correto” como uma ideologia penitencial; para Lefeuvre (2006, p. 12), “o dever da memória que eles buscam impor é o de uma memória artificial, construída para as necessidades de sua causa, e que produz, na realidade, uma perda de saber real, ao mesmo tempo em que mostra uma negação da história”.
Quanto à “culpabilização retrospectiva”, termo utilizado por Alain Renaut (2000), o sentido do humanismo foi transformado: se antes, num cenário republicano moderno, a ideia era desconsiderar as diferenças integrando a todos os perfis humanos (individuais ou coletivos), as representações de hoje contribuem para a exclusão daqueles que não correspondem a determinados padrões. A “abertura ao outro” só seria possível pelo reexame das condições morais que posicionam uns como oprimidos e outros como opressores numa senda cíclica e, por isso, sem salvação para ambos os lados.
Os conflitos de memória sob a ótica ideológica de grupos que militam na esfera pública buscam ocupar espaços de diferentes formas. Possivelmente, essa nova comunidade política apostará na reconfiguração das instituições porque são estas que mantêm os “excluídos” nessa estrutura hierárquica. Por outro lado, esses espaços não são apenas de visibilidade pública e/ou política, mas também físicas. Destruição de estátuas, obras de arte, imóveis públicos, e quaisquer outras memórias ligadas a personagens/grupos que devem – segundo essa perspectiva ideológica – ser extirpados após condenação. Responsabiliza-se a história e depois apaga-a, contudo, a consciência histórica contestada por grupos identitários e que se pretende descentrada do grupo majoritário, reintegra na sociedade do presente os criminosos (reais e imaginários) a partir de relações de gênero, de cor, de classe, que os caracterizam como tal.
Diante disso, Frantz Fanon, usado tão equivocadamente pela lógica identitarista, questionou em 1952: como demandar ao homem branco de hoje que seja responsável pelos navios negreiros do século XVII? E nessa esfera de reparação, Aimé Césaire reconhece que uma coisa é admitir a realidade, ou seja, os crimes contra a humanidade, outra coisa é a perigosa ideia de reparar o irreparável e o que não é quantificável. Tarifar o crime contra a humanidade de forma perpétua é estabelecer sobre alguns a pecha de algo semelhante ao “pecado original”: estarão sempre, de alguma maneira, contaminados.
Uma nação perde sua potência coletiva ao colocar a história como objeto jurídico. Óbvio, entendemos que as comissões de verdade são importantes para apuração de fatos a fim de se fazer justiça aos envolvidos e para se registrar na história os relatos tal como são. O que parece ser um grande equívoco, por exemplo, é marcar com sinal de culpa os descendentes daqueles réus – transformados em verdadeiros fantasmas. Esse exercício movimenta interesses de poder, de reescrita da história e de condenação simbólica a determinados grupos da sociedade, e boa parte da esquerda comprou essa ideia.
Temos hoje uma esquerda que deslocou seu foco do capitalismo para a cultura e hoje aliena o povo a partir de uma reorganização do imaginário coletivo. Em outras palavras, fragmentou-se a sociedade em inúmeros grupos que, por sua vez, apresentam diferentes demandas que possuem dificuldade em estabelecer um plano comum para uma política nacional. Neste caso, segundo Mark Lilla (2018), o que o neoliberalismo identitário faz é afastar uns dos outros. Segundo o mesmo autor, o único jeito de conseguir defender as minorias é ter uma “mensagem com apelo para o maior número possível de pessoas e assim uni-las”, caso contrário, esse tipo de engajamento trará como resultado a pseudopolítica de autoestima e de autoidentificação que, desde a década de 1980 nos EUA, tem feito surgir novas formas de exclusão – inclusive em universidades com a dificuldade de se pensar no bem comum. Nesse aspecto, de uma ausência de um bem comum, surgem outras críticas mais amplas:
No caso dos movimentos sociais, vimos desdobramentos relevantes dos movimentos sindicais e operários do início do século XX até os atuais, marcados por lutas identitárias de mulheres, de negros, de indígenas, de sem-teto, de sem-terra etc. Eles foram e são importantes. Mas, na medida em que privilegiam projetos de libertação social pela valorização da lógica dos conflitos utilitários nos marcos do liberalismo, terminam não considerando a importância da busca de novas utopias fora do espectro moral do liberalismo e mais abertos ao entendimento do conflito como dom agonístico. [...] O neotribalismo [conceito de Bauman] reivindica corretamente os direitos dos movimentos (étnico, sexual, de gênero, religioso, cultural etc.), mas peca por não conseguir encontrar uma moeda política comum para ações compartilhadas em favor da democracia ampliada. (MARTINS, 2019, p. 43-44; grifos meus)
O marxismo tem sido julgado como culpado pela Nova Esquerda por seu reducionismo econômico e a figura do “operário” foi substituída pelos “grupos marginais”, que tentam dar luz a um ser revolucionário capaz de ajudar a fundar uma democracia que articule cada vez menos o modelo de luta de classes e cada vez mais uma política de identidades dentro do quadro de lutas sociais. Como disse Éric Conan em algum lugar: “Perde-se um povo, encontram-se dez”. A chamada “cidadania cultural” recusa, na prática, a ideia de Nação, pois defende “um conjunto desconjuntado de ‘nações’ dentro de uma extensão territorial que falsamente tratamos como se fosse uma só nação” (RISÉRIO, 2022, p. 519).
Portanto, a cidadania nacional perde cada vez mais espaço para uma cidadania cultural, cujos protagonistas formam o que já tem sido reconhecido como “sociedade dos oprimidos”. Esses oprimidos redesenham a figura dos “ novos proletários” ampliando o quadro para identidades distintas. Risério (2022, p. 526) observa que: “Em 1922, nossos artistas, cientistas, políticos, intelectuais etc., se engajaram num projeto de faces diversas, mas que tinha como meta central o conhecimento de nossa história e a modernização do país”; e continua: “Seu propósito era afirmar a nação. Em 2022, ao contrário, o objetivo é negá-la”. Essa provocação do antropólogo e historiador brasileiro não desconsidera a diversidade do pensamento político nem mesmo dos diferentes campos de enfrentamento diante das ameaças de apequenamento da democracia e do real desenvolvimento, mas lança, certamente, suas garras contra uma diversidade que não se interessa pela identidade nacional, essa sim, responsável por um norte econômico capaz de gerar menos desigualdade.
Como conseguir uma “moeda política comum” diante de Nação negada e as múltiplas identidades exaltadas? Há tentativas que buscam propor novas teorias onde o diálogo e intersecções entre as epistemologias do Norte e do Sul Global tornam-se ponto de partida (MARTINS, 2019); onde a economia solidária é debatida para se pensar formas de emancipação no sistema capitalista (LAVILLE; FRÈRE, 2023); ou trabalhos de desconstrução da ideia de “soberania” das designações identitárias (ROUDINESCO, 2022). Mas nos parece que estes ficam no meio do caminho, pois não conseguem criticar devidamente o projeto de cidadania por identidade e nem indica alternativas de reconstrução de formas de identidade e solidariedade complexas capaz de orientar um processo de desfragmentação política e de construção da cidadania nacional.
A sociedade moderna é a primeira em que a desigualdade entre pessoas e coletividades é percebida como problema social. Nas sociedades pré-modernas, a desigualdade não era problema social nem político. Em muitas delas, como nas sociedades feudais, coloniais e de casta, a desigualdade era até mesmo afirmada como garantia de ordem e ajustamento cósmico. Apenas nas sociedades surgidas com as revoluções econômicas, políticas, jurídicas, educacionais e tecnológicas do final do século XVIII na Europa e na América do Norte, e que atingiram significado e escopo global a partir da segunda metade do século XIX, é que o valor da igualdade ganhou primazia sobre a desigualdade, servindo de fonte para o questionamento de assimetrias sociais em diversos contextos e lugares.
Como é possível que a vida social nos permita ver a desigualdade como um problema e não como garantia natural de ordem? A crítica e a problematização da desigualdade social do ponto de vista da justiça e igualdade pressupõem uma ordem social capaz de permitir a dissolução de estruturas de desigualdade sem que isso inviabilize a própria ordem social. Nem toda ordem social comporta a problematização e a mudança das estruturas de desigualdade social. Sociedades de pequeno porte territorial e demográfico, que dependem de características concretas e conhecidas de pessoas e populações para garantir relativa previsibilidade das práticas sociais cotidianas, dificilmente podem abrir mão de produzir e manter desigualdades duradouras e naturalizadas como fundamento da ordem social. A igualdade é uma abstração inventada pela evolução sociocultural que permite haver ordem sem que pessoas e populações sejam avaliadas o tempo todo com base em seus traços concretos. Sem a emergência de formas de participação na vida social que abstraem destes traços concretos não poderia haver igualdade em sociedades complexas, com crescentes diferenças reais e concretas entre as pessoas e coletividades. Essas formas abstratas de participação são aquelas criadas por sistemas sociais como a economia de mercado moderna (o empreendedor, o trabalhador), a política inclusiva moderna (o cidadão), o direito positivo (a personalidade jurídica), o ensino (o infante educável independente de sua origem) e, não menos importante, a filiação e a mobilização militar dos cidadãos.
No entanto, apesar do valor da igualdade se fazer presente na busca por inclusão nestas diferentes esferas da sociedade, é a partir de sua institucionalização na filiação militar nacionalmente generalizada, na política, no direito que a igualdade passa a servir de parâmetro para problematizar as assimetrias encontradas no acesso à educação, à saúde, à cultura e à segurança econômica. É somente como resultado de práticas e estruturas sociais específicas das esferas militares, política e jurídica (filiação militar generalizada, democracia e igualdade jurídica) que a desigualdade deixa de ser vista como um dado natural para ser percebida como um obstáculo à realização de objetivos sociais e individuais. A problematização jurídica e política da desigualdade é o resultado da diferenciação da sociedade em esferas sociais autônomas (economia, política, direito, esfera miliar, ciência, família, religião, artes etc.), que abre um horizonte de observação no qual assimetrias entre indivíduos e grupos sociais podem ser percebidas como contingentes e arbitrárias. No entanto, como demonstra o sociólogo do direito Chris Thornhill (2018), não podemos perder de vista o nexo entre cidadania igualitária e filiação militar na articulação constitucional da ideia moderna de igualdade política e jurídica. A legitimação político-jurídica da igualdade se alimentou e ainda se alimenta decisivamente da participação militar em revoluções, movimentos anticoloniais e guerras civis e externas.
Como afirma o filósofo Michael Walzer (1983), a igualdade moderna é complexa, pois não supõe a eliminação de toda e qualquer assimetria social, mas especificamente aquelas que se somam umas às outras e geram um processo de acumulação de vantagens e desvantagens que destroem a possibilidade de igualdade no acesso a um padrão de vida considerado “digno” e “civilizado” em cada contexto. A igualdade moderna não pode ser absoluta porque a sociedade não é uma unidade, mas uma pluralidade de esferas. É este tipo de igualdade complexa que chamamos de cidadania. Em sociedades estamentais como o sistema feudal e o colonial, havia uma unidade estrutural que bloqueava o horizonte comparativo e com isso contribuía para a legitimação não problemática da desigualdade. Em sua clássica sociologia da cidadania, o sociólogo Thomas H. Marshall (1967) vincula o desenvolvimento da busca por igualdade à superação desta unidade estrutural característica de sociedades estamentais e à diferenciação da sociedade em instituições funcionalmente especializadas. Em sociedades feudais, afirma, “não havia nenhum princípio sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio de desigualdade de classes” (MARSHALL, 1967, p. 64). O mesmo vale para outras formas de desigualdade como as de gênero e raça/etnia.
Tudo isso significa que a primazia valorativa da igualdade enquanto horizonte que condiciona a problematização da desigualdade não é um dado. Muitos autores levantam a hipótese da possível formação de uma sociedade “neofeudal”, marcada pela eliminação deste horizonte igualitário em esferas como o direito e a política, fazendo surgir novas estruturas sociais capazes de suprimir a diferenciação da sociedade em esferas e de concentrar de modo naturalizado o acesso aos recursos sociais. A desigualdade pode deixar de ser um problema para se tornar novamente um dado natural. Esta hipótese não deve tratada como uma tendência inexorável, mas sim como uma possibilidade evolutiva. O aumento vertiginoso das desigualdades econômicas, os obstáculos à superação de desigualdades raciais, étnicas e de gênero em diferentes esferas sociais e a fragilidade institucional dos direitos igualitários de cidadania são fenômenos que apontam justamente para a possibilidade de desconstrução do horizonte normativo e cognitivo da igualdade e da consequente renaturalização das assimetrias sociais dos mais diversos tipos.
A gramática moderna da igualdade é abstrata e quando se restringiu ao seu aspecto formal nunca foi capaz de contribuir diretamente para a implantação de alguma igualdade significativa no acesso aos bens e recursos sociais. Foram certas dinâmicas e lutas políticas que, problematizando a contradição entre igualdade formal e desigualdades materiais concretas da economia e da educação, puseram em marcha processos de ampliação da cidadania e da igualdade. Os grupos particulares que buscavam direitos sociais e trabalhistas foram capazes de forjar um universalismo novo, mais complexo, capaz de incluir excluídos. O mesmo aconteceu com movimentos feministas e antirracistas no século XX em suas lutas políticas por cidadania. Para isso, não se podia abrir mão da abstração universalista e de suas instituições como a democracia e a igualdade de direitos. No contexto em que corremos o risco de perder a capacidade cognitiva e normativa de problematizar e politizar as desigualdades, a gramática do identitarismo é um obstáculo adicional: ao firmar de modo essencialista e exclusivista o primado de identidades particulares, e negando com isso todo tipo de universalismo, a “política identitária” ensina a abrir mão daquilo que é necessário para problematizar a desigualdade e produzir um nível significativo de igualdade social.
Não se trata de responsabilizar o identitarismo por tudo. Certamente existem fatores muito mais importantes para explicar a despolitização da desigualdade. Mas não se pode negar a importância da política e de sua autonomia em produzir e desdobrar artefatos sociais abstratos como a igualdade e cidadania. Ocorre que o identitarismo, desconhecendo que suas identidades são também artificiais e contingentes, bloqueia esta capacidade inventiva e imaginativa da política em produzir identificações coletivas mais amplas e abstratas. O dano causado pelo identitarismo não reside apenas em sua ênfase unilateral no moralismo exclusivista e na redução da política à performance discursiva, mas sim em sua negação da possibilidade de discursos universalistas sem os quais tanto a igualdade quanto a problematização da desigualdade somem do horizonte sociocultural e político. Por isso, o identitarismo é sim parte da despolitização da desigualdade. É falsa política que não contribui para problematizar e transformar as desigualdades que impedem a realização e universalização de uma vida “digna” e “civilizada”.
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