"Essa plateia [de Jesus] parece tão ampla e variada porque, no cenário original da revelação, a graça de Deus é para as multidões, não para os discípulos. O anúncio do reino de Deus é para aqueles que perderam a confiança, para aqueles que se convenceram estar longe de Deus, para aqueles que se sentem desqualificados pelos tabus religiosos, para aqueles que são prisioneiros do mal, para os derrotados da história, para aqueles que a especialização religiosa da instituição convenceu que são inadequados".
Na última quinta-feira, 18 de maio, na catedral de San Pietro de Bolonha, dom Giuliano Zanchi, teólogo, professor da Universidade Católica e diretor da Rivista del clero italiano, realizou uma meditação para o clero da diocese de Bolonha na presença do arcebispo, card. Mateus Maria Zuppi. Com sua permissão, publicamos abaixo o texto da meditação de Giuliano Zanchi, que intencionalmente mantém o estilo da conversa oral.
O texto é publicado por Settimana News, 02-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Agradeço a oportunidade que me é oferecida de partilhar, num contexto tão solene, algumas reflexões numa forma a meio caminho entre a conferência e a meditação, na qual gostaria de apresentar-me com o tom de confidência pessoal, esperando que não carregue consigo aparências narcisista.
Este ano completo 30 anos como sacerdote. Esses números redondos, que celebramos com uma solenidade que pessoalmente sempre me embaraça, são no fundo convenções. Nós, humanos, tentamos prender no tempo a vida fixando alguns limiares. Um faz-de-conta comovente. De fato, esses limiares (e os valores redondos em que são inseridos) adquirem a consistência de um ponto magnético da consciência, no qual instintivamente fazemos um balanço, olhamos para trás, olhamos em volta, retomamos o fio do que já fomos e procuramos naquele em que agora estamos.
E o meu sentimento hoje é que estou feliz por ser padre (com a licença para não incomodar o termo “alegria” que não me agrada usar, porque me parece tão carregado de uma tendência à felicidade artificial e sentimentalista na qual não me reconheço). Estou feliz por ter conferido essa forma à minha vida. Sinto-me feliz por ser padre, sobretudo agora, depois de tantos anos, e depois de tantos desencantos (alguns até profundos) que acompanharam as minhas tantas ingenuidades iniciais.
Devo dizer que a convicção se consolida com o desencanto, porque se liberta das imaginações mágicas de um ideal a ser realizado com as próprias ideias e de acordo com as próprias expectativas. Não significa não ter tensões ideais ou renunciar ao impulso de um estilo. Significa encontrar unidade em algo menos volátil e mais profundo (até mais gratificante) que, para mim, consiste nisto: ser padre foi a minha forma de me tornar cristão (e não o contrário). Sou grato ao ministério porque estou cada vez mais contente de ser cristão.
Neste tempo, em que as visões da vida e os modelos humanos se aglomeram num caleidoscópio nem sempre discernível, ver a vida e interpretar a existência na forma cristã ligada à extraordinária humanidade teologal de Jesus parece-me uma sorte, uma satisfação, uma graça (até culturalmente); o que para mim não significa vestir uma farda e segurar uma bandeira: mas poder contar com uma referência sólida que, antes mesmo de me tornar eventualmente testemunha, faz com que me sinta agraciado. Sentir-se agraciado permite ser testemunha de um modo específico: não insistente, não importuno, não arrogante, não militante.
Nos últimos anos, tenho-me sentido cada vez mais atraído por algumas palavras de Paulo que me parecem interpretar bem o meu sentimento de gratidão, e em particular aquela palavra que se encontra em Filipenses 2,5 que diz: “que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus”.
É uma frase que - como sabemos - introduz um daqueles hinos que estabelecem imediatamente os traços essenciais da fé cristológica, vinte anos depois dos acontecimentos e séculos antes dos concílios dogmáticos. “que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (poder-se-ia acrescentar, os mesmos pensamentos, as mesmas atitudes, os mesmos impulsos, o mesmo estilo, enfim): um convite que pessoalmente sempre associo com maior convicção ao sentido mais genuíno que se pode atribuir ao termo “pastoral”, entendido como um exercício no campo do ministério da Igreja e, portanto, também da aventura sinodal com a qual se procura reorientar de modo compartilhado as condições atuais para o exercício de tal ministério. Uma aventura sinodal que continua sendo uma operação de engenharia se não for pensada à luz do estilo de Jesus, mas que se revela essencial, necessária e urgente, se em vez disso a se considera em tal contexto.
Reapropriar-se do estilo de Jesus, que caminhava com as pessoas antes mesmo que a grande Igreja da Anatólia de matriz grega inventasse a palavra “sínodo”, que significa, como se repete em continuação de forma um tanto retórica, “caminhar juntos”. Porque a cena original da Revelação de Deus em Jesus tem precisamente essa forma. Trinta anos de silenciosa habitação nos fundamentos das coisas humanas (a vida de Nazaré), e depois um ficar pelas ruas imerso em uma companhia multiforme, não só feita de discípulos, mas também de multidões.
Limito-me aqui a colher algumas sugestões de Pierangelo Sequeri a respeito da questão (Iscrizione e rivelazione, Queriniana, 2022). Jesus, os discípulos, a multidão. A revelação da graça e o testemunho de sua acessibilidade se dão apenas na presença concomitante das três figuras.
Não se pode instaurar um cristianismo baseado em uma relação exclusiva entre Jesus e os discípulos e, portanto, nem mesmo a Igreja, porque isso configura imediatamente um elitismo que restringe arbitrariamente as condições da graça. Um cristianismo também não pode ser instaurado numa relação exclusiva entre Jesus e as multidões sem a devida mediação dos discípulos, porque cria desde logo as condições para uma socialização supersticiosa do sagrado (de fato Jesus, quando as multidões buscam milagres e não compreendem os sinais, se subtrai de sua pressão). Muito menos se pode instaurar um cristianismo baseado exclusivamente na relação entre discípulos e multidões, porque isso anima imediatamente os princípios ativos do “clericalismo” e propicia as características de uma religião civil.
O cristianismo – portanto a Igreja e o seu ministério – instaura-se quando os discípulos compreendem as razões e as responsabilidades do Reino, aprendendo com o modo como Jesus encontra as multidões, esta mistura de humanidade variada e eventual em que realmente há de tudo, bons e maus, justos e pecadores, simples e eruditos, mulheres fofoqueiras e administradores corruptos, os ingênuos e os astutos, os que desejam Deus e os que buscam milagres, alguns estrangeiros, muitos marginalizados, alguns hereges, homens de poder e homens de intelecto, pais desesperados e mães irredutíveis.
Essa plateia parece tão ampla e variada porque, no cenário original da revelação, a graça de Deus é para as multidões, não para os discípulos. O anúncio do reino de Deus é para aqueles que perderam a confiança, para aqueles que se convenceram estar longe de Deus, para aqueles que se sentem desqualificados pelos tabus religiosos, para aqueles que são prisioneiros do mal, para os derrotados da história, para aqueles que a especialização religiosa da instituição convenceu que são inadequados.
Em suma, uma multidão que gravita numa órbita muito externa, onde se move o “cidadão médio”, juntamente com o marginal, com aqueles de reputação comprometida, de vida humilhada, de esperança vencida. Nem sempre é gente cândida. Frequentemente, têm uma consciência oculta de suas responsabilidades. Mas não encontram o lugar de sua redenção na religião. Exceto quando chega Jesus e afirma que a graça de Deus é para eles.
Entre eles estão os exemplos mais luminosos daqueles que reconhecem Deus no toque de Jesus, sem precisar dizer como Pedro “Tu és o Cristo!”, mas assenhorando-se da palavra de Jesus que diz “a tua fé te salvou!”. Eles não precisam demonstrar plena posse de uma ortodoxia, são acolhidos pelo intenso imediatismo de sua confiança, por mais confusa que seja. E a escola à qual Jesus agrega os discípulos não serve tanto para habilitá-los a dizer “Tu és o Cristo!” (pois, na realidade, quando o dizem já estão em situação de não compreender e depois, como sabemos, de trair), mas sim para reconhecer aquelas histórias nas quais poder dizer junto com o Mestre “a tua fé te salvou!”.
Parece-me que este Sínodo, seja qual for o método que se queira conduzi-lo, não tenha de forma alguma o objetivo de cerrar as fileiras dos discípulos, mas de recoloca-los em caminho com as multidões (no máximo, será este mesmo caminho a conduzir à uma recompactação da comunhão). Passar com Jesus no meio da vida e poder ser sinal da graça de Deus, não dos confins da religião, porque as “multidões” compreendem na hora essa diferença, captam-na instintivamente, mesmo aquela parte da multidão que ainda frequenta a igreja, mas não sente mais a emoção de ser tocada pelo Senhor.
O Sínodo está apostando na ideia de que todas essas pessoas, mesmo que não falem perfeitamente a língua da religião e da ortodoxia, têm algo vital a dizer sobre a qualidade espiritual de nosso estar reunidos na igreja e enviados ao mundo.
O ministério da igreja consiste em ser o lugar onde todos podem se sentir tocados pelo Senhor, não monitorados por uma instituição. E esse ministério, por muitas razões históricas e culturais, pesou durante séculos (pelo menos nos últimos quatro ou cinco) diretamente sobre o papel do padre, de forma quase exclusiva, com os limites que conhecemos e que agora estão se revelando em seus importantes efeitos colaterais.
Agora na igreja retorna a ideia de que esse ministério pertence à igreja em sua totalidade e em sua integridade, e sente a necessidade e o desejo de explicitá-lo segundo novas e plurais responsabilidades, que honrem o sacerdócio batismal de muitos leigos e muitas leigas que já agora realizam ministérios efetivos que edificam a igreja. Mas atenção para não se limitar a uma mera extensão de função de uma categoria para outra, pois isso poderia significar simplesmente socializar limitações, ao invés de gerar oportunidades no ministério.
Para além das respostas concretas, sobre as quais discutimos e até nos dividimos, permanece o tema subjacente de fazer da igreja uma casa e não um quartel, um lugar onde se encontra o Senhor e não burocratas do sagrado. O Sínodo, parece-me, está incorporando, das trocas entre as igrejas e do sentimento dos fiéis, alguns núcleos de conversão muito claros e muito diretos, que podem ser resumidos nestas três expressões: palavras verdadeiras, relações respeitosas, economias leves.
Palavras verdadeiras não significa mais adeptos à ortodoxia (como se blindar as fórmulas pudesse tornar um discurso mais persuasivo), mas ter mais autoridade em sua pretensão de iluminar as vidas com a luz da revelação evangélica. Mesmo dentro da Igreja percebe-se a mosquinha da insignificância que se apodera da palavra cristã (que significa mais amplamente as suas linguagens, a sua cultura, o seu pensamento, as suas retóricas, as suas fórmulas) e a transforma num jargão religioso que já não sustenta mais aqueles de dentro e é estranho para aqueles de fora.
Relações respeitosas significa levar a sério a palavra de Jesus que diz, no seu novo mandamento: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei, somente assim podereis ser reconhecidos como meus discípulos”. O traço da fraternidade é o verdadeiro diferencial da verdade do testemunho. Uma igreja em que não nos tratamos bem coloca em circulação espíritos ruins, que andam por aí causando mal a todos. As relações da igreja precisam se tornar mais maduras, inclusivas e acolhedoras. De uma forma concreta, porém, não apenas ideal. Espiritualmente, não espiritualistamente.
Economias leves, significa uma série de perguntas que estão na boca de todos, neste tempo de desmantelamento material e alguma desventura moral. Na redação de Lucas dos ensinamentos de Jesus sobre a missão, já existem as injunções mais essenciais. O equipamento da testemunha deve ser leve e o cuidado que, contudo, merece, pelo trabalho que realiza, deve ter seus limites (aceitem alguns convites para almoçar, mas não façam a ronda das casas).
Essa ressalva é agora um pesado ônus bem atual. Será honrado não só pelo relevo de uma organização sustentável da instituição, mas sobretudo pela proteção de uma retidão que por si só constrói toda a reputação de um testemunho.
Sobre esses temas a “conversa espiritual” ativada nas igrejas parece ser cordata, convergente, insistente e sincera.
Tudo isso deve ser enfrentado não para voltar a ser conquistadores, mas para agir mais intensamente como intercessores, como devem ser sempre os verdadeiros ministros, especialmente em um contexto em que o desejo de Deus é mais um ruído de fundo do que uma linguagem comum. Para selar esta meditação com um ícone bíblico, lembro-me da cena do Êxodo 32 em que Moisés discute com Deus o destino do povo e da aliança (Êx 32,7-14).
É um diálogo que acontece depois da proclamação do decálogo em Êxodo 20, que não são apenas os dez mandamentos resumidos em frases pelo nosso catecismo, mas 22 longos capítulos nos quais das palavras fundamentais da aliança deriva também toda uma construção ética e religiosa que no texto é ilustrada a Moisés diretamente por Deus, e que também inclui todo o sistema do culto, as festas, o santuário, a tenda, a arca, as vestes sacerdotais, a moradia, o castiçal, o altar, o investidura dos sacerdotes. Em suma, todo o arcabouço “eclesiástico” tão solene e que parece tão indispensável.
Mas no auge de tudo isso o povo quis, com o bezerro de ouro, fazer sua própria imagem de Deus. Então Deus perde a paciência e falando com Moisés propõe que ele abandone à sua própria sorte esse povo tão insensível e recomece por conta própria. “Deixe-me agora, para que a minha ira se acenda contra eles, e eu os destrua. Depois farei de você uma grande nação” diz Deus a Moisés.
Não lhes parece descrito perfeitamente o estado de espírito de nossas feridas eclesiásticas e suas tentações mais instintivas, de abandonar polemicamente o mundo à sua sorte? Mas Moisés não se deixa lisonjear por essa perspectiva, em que paira uma forma de salvação e eleição indigna de um homem (salvo-me perdendo a todos). Então ele discute com Deus. Nas entrelinhas parece dizer-lhe que se ele abandonar essa gente nem ele o seguirá. Podem até ser pessoas obtusas, insensíveis e malévolas, mas uma promessa é uma promessa, e se Deus a abandonar, ele, Moisés, não o seguirá.
Então acontece que Deus muda de ideia, um pouco como quando uma mulher estrangeira, falando de migalhas e cachorrinhos, faz Jesus mudar de ideia. E é formidável que em nossos textos sagrados haja o tema de Deus que muda de ideia quando encontra razões humanas. O nosso mundo e a nossa época até podem ser “um povo de lábios impuros”, mas ainda assim são aquela humanidade da qual não nos sentimos capazes de nos separar e na qual mantemos vivas as brasas das promessas de Deus.
Então, o Sínodo deve ocorrer somente sob o signo desse traço de intercessão. Também terá que fazer muitas coisas concretas. Mas só poderá fazê-las com sinceridade se forem atravessadas por esse sentimento.