24 Abril 2023
"O que estamos testemunhando pode ser apenas mais uma tempestade que o catolicismo enfrentará, como tantas vezes antes, porque 'a Igreja pensa em séculos'. Mas a crise dos abusos e seus desdobramentos nos últimos anos revelaram o quanto mudou na percepção da Igreja, incluindo o ofício papal".
A análise é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 20-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um dos axiomas mais antigos para definir o papel da Sé de Pedro na Igreja diz: “prima sedes a nemine iudicatur” – a primeira sé não pode ser julgada por ninguém. Séculos antes de o primado papal ser definido no Concílio Vaticano I, em 1870, o bispo de Roma já gozava de um tipo de imunidade tanto na esfera religiosa quanto na político-secular.
Hoje, temos uma Igreja mais centrada no papa, na qual cinco dos oito papas que atuaram no século XX foram beatificados ou canonizados, e um Estado da Cidade do Vaticano onde o papa é o monarca absoluto.
Mas essa ordem teológica, política e legal protetora do papado está agora sob pressão devido à crise dos abusos sexuais. Vimos isso com as recentes insinuações contra João Paulo II, feitas depois que o Vaticano reabriu as investigações sobre o desaparecimento em 1983 de Emanuela Orlandi, que era a filha de 15 anos de um empregado da Cúria Romana, que vivia com sua família dentro dos muros da Cidade do Vaticano.
É um dos mistérios italianos mais duradouros com os quais eu cresci e que foi trazido de volta ao noticiário pelo lançamento, no fim do ano passado, da série “A garota desaparecida do Vaticano” ('The Vatican Girl'), da Netflix.
Seu irmão mais velho, Pietro Orlandi, insinuou na televisão nacional italiana que Emanuela foi vítima de uma quadrilha de escravas sexuais e que João Paulo II estava ciente disso. O cardeal Stanislaw Dziwisz, secretário particular do falecido papa de 1966 até sua morte em 2005, e a mídia oficial do Vaticano responderam diretamente às acusações, chamando-as de “difamatórias”. Isso levou Orlandi a se distanciar de suas declarações anteriores.
Na oração Regina Caeli do domingo, 16 de abril, o Papa Francisco defendeu João Paulo II, o homem que o nomeou bispo e o tornou cardeal.
“Certo de interpretar os sentimentos dos fiéis de todo o mundo, dirijo um pensamento agradecido à memória de São João Paulo II, objeto nestes dias de ilações ofensivas e infundadas”, disse Francisco.
João Paulo II também foi atacado por jornalistas investigativos em sua terra natal, a Polônia, por ter conscientemente encoberto abusos sexuais quando era arcebispo de Cracóvia. Essas alegações estão detalhadas em um livro mais difícil de liquidar com uma breve declaração.
Mas não é apenas João Paulo II que está sob fogo cruzado. Nestes últimos anos, Bento XVI e Francisco tornaram-se parte do crescente foco em casos eminentes de abuso, de maneiras que não eram imagináveis enquanto o papa polonês ainda estava vivo. O que estamos vendo é uma nova forma de ofensiva contra o papado.
Não se trata mais de um ataque frontal, manu militari, como ocorreu nos séculos anteriores – de Sciarra Colonna e Guilherme de Nogaret contra Bonifácio VIII em 1303 a Napoleão Bonaparte contra Pio VI e Pio VII cinco séculos depois. Não se trata nem mesmo do antiquado antipapalismo político semelhante ao dos tempos da Kulturkampf de Bismarck ou do anticlericalismo das elites que impulsionam o nacionalismo europeu do século XIX.
Não, trata-se de algo mais sutil e “democrático” – ou pelo menos tão democrático quanto as teorias da conspiração aspiram a ser. É um tipo diferente de deslegitimação que está ocorrendo manu mediatica, apesar de todos os esforços do papado moderno para ser mais amigável às mídias.
Não se trata de uma conspiração ou uma aliança. Pelo contrário, faz parte das grandes mudanças culturais em nossas sociedades, especialmente no Ocidente. A secularização mudou o modo como o jornalismo secular tradicional aborda o catolicismo e o papado.
A deferência automática que antes era concedida ao “Vigário de Cristo” não existe mais. Agora, há uma atenção mais desapaixonada, às vezes de má qualidade e fofoqueira, às vidas privadas dos membros da elite eclesiástica, que está mais próxima da cobertura dos tabloides sobre a família real britânica. E, ultimamente, algumas autoridades da Cúria Romana têm desempenhado voluntariamente um papel nesse infotenimento atual.
É claro, a indústria do entretenimento também está envolvida nisso. Um excelente exemplo é o filme “Spotlight”, de 2015. Ele narra a investigação do jornal Boston Globe sobre o encobrimento de abusos sexuais cometidos por padres católicos, retratando a Igreja como uma organização mafiosa vai à cúpula do Vaticano. O fato de ter ganhado o Oscar de melhor filme do ano (e muitos outros prêmios ao redor do mundo depois) significa que algo mudou – uma certa ideia do catolicismo se tornou generalizada.
Outro exemplo é a série de TV “The Young Pope”, de 2016, e sua sequência feita para a televisão, “The New Pope”, de 2020. Elas normalizaram a ideia do papado como metade “feriado romano” e metade vício eclesiástico, usando um cenário elegante para exibir todos os tipos de corrupção (começando pela sexual), tudo “típico” da pornocracia papal dos séculos IX e X até os Borgias no século XV.
Não são apenas operações para fazer dinheiro. Essas mudanças na forma como a mídia e a indústria do entretenimento retratam o papado e o catolicismo são apenas a ponta do iceberg. São apenas uma pequena parte visível de algumas mudanças culturais maciças no modo como o catolicismo tem sido percebido nesses últimos 40 anos, certamente desde o início da atual crise dos abusos sexuais.
Uma dessas mudanças é a ideia de ubiquidade da violência e dos abusos sexuais, em que a paranoia em torno da “pedofilia de elite” sobre o Vaticano é apenas uma versão menos sofisticada da noção de que “o sagrado provou ser o melhor esconderijo para o mal” – como um dos mais influentes estudiosos do catolicismo nos Estados Unidos, Robert Orsi, escreveu no livro “History and Presence” (Harvard University Press, 2016).
Outra mudança é a crise do masculino em uma sociedade em que a redefinição dos papéis de gênero foi mapeada de maneiras que são, pelo menos em teoria, muito mais claras para as mulheres do que para os homens. Diretamente, é também uma crise para um clero totalmente masculino que levou bispos e influenciadores católicos a oferecerem receitas que promovem a “masculinidade católica”, que são tudo menos reconfortantes (a internet é uma caixa de pandora a esse respeito).
A crise dos abusos produziu mudanças tectônicas, e os católicos – não apenas os bispos e o Vaticano – ainda estão lutando para encontrar seu equilíbrio. A ascensão do movimento #MeToo somou-se a essa crise para criar um clima de suspeita em relação a relacionamentos genuínos e, na Igreja, à direção espiritual.
Isso gerou ansiedade em relação àquilo que nossas lideranças da Igreja e companheiros católicos – mas também vizinhos, colegas de trabalho e até membros da família – podem um dia revelar sobre si mesmos (ou àquilo que pode ser revelado por outros) como vítimas/sobreviventes ou abusadores. Tudo isso é mais típico de um Estado totalitário e policial do que de uma sociedade liberal-democrática e menos ainda de uma comunidade cristã. Está mais próximo de “A vida dos outros” do que de “A festa de Babette”.
A incapacidade da Igreja Católica de administrar o escândalo dos abusos do ponto de vista legal e institucional é o sintoma de esperanças frustradas de que novas leis resultariam em punições justas e em sistemas de prevenção suficientes para restabelecer a nossa humanidade comum.
O papado está pagando o preço por suas responsabilidades históricas na desconstrução dessa esperança, e isso tem amplas consequências. A crise dos abusos produziu um desencanto (senão até um desprezo ou uma ira) difícil de reverter, mediante a tentativa do magistério de enviar uma mensagem positiva sobre a sexualidade. Ela manchou, por pelo menos mais um século, a credibilidade do catolicismo – e do papado – de falar sobre uma ampla gama de questões.
O Papa Francisco acelerou sua resposta à crise dos abusos depois que surgiram escândalos em 2018 envolvendo os bispos do Chile e o ex-cardeal Theodore McCarrick. Esse foi o ano em que o escândalo afetou sua credibilidade pessoal. E isso agora faz parte da “nova questão romana”.
A antiga surgiu diante do colapso do Estado Papal entre 1860 e 1870. A nova surgiu devido ao colapso de algo menos tangível, mas não menos substancial – a credibilidade e a legitimidade do papado (e do Vaticano) para a Igreja Católica, a maior provedora não governamental de serviços sociais, educacionais e médicos do mundo.
Claramente, a política dos papas do fim dos séculos XX e XXI de canonizar seus antecessores imediatos na Cátedra de Pedro é mais do que ineficaz. Na verdade, é contra-eficaz, porque dá a impressão de uma defesa preventiva do papado e um impedimento para uma compreensão de sua santidade que não seja pura apologética.
O que estamos testemunhando pode ser apenas mais uma tempestade que o catolicismo enfrentará, como tantas vezes antes, porque “a Igreja pensa em séculos”. Mas a crise dos abusos e seus desdobramentos nos últimos anos revelaram o quanto mudou na percepção da Igreja, incluindo o ofício papal.
O papado romano foi construído teológica e arquitetonicamente no segundo milênio. Ele se tornou um ícone da civilização cristã, a ponto de a romanitas pontifícia e a catolicidade serem frequentemente vistas como sinônimas.
João Paulo II escreveu que o papado no terceiro milênio deveria estar a serviço da unidade ecumênica. Mas essas duas últimas décadas enviaram uma mensagem bem diferente.
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Agora, na crise dos abusos da Igreja, quem está em julgamento é o papado. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU