Herdeiro da luta de Davi Kopenawa diz que genocídio foi praticado contra 600 mil brasileiros na pandemia de covid-19.
A entrevista é de Murilo Pajolla, publicada por Brasil de Fato, 01-02-2023.
O líder histórico dos Yanomami, Davi Kopenawa, começava há 40 anos uma luta contra garimpeiros que desaguaria na criação da Terra Indígena Yanomami, a maior do Brasil. A missão foi herdada por seu filho mais velho, Dário Kopenawa, que hoje enfrenta um garimpo mais destrutivo e protegido por políticos locais e nacionais.
Na conversa exclusiva com o Brasil de Fato, Dário responsabilizou o governo Bolsonaro pelo genocídio de pelo menos 570 crianças indígenas. E mandou um recado a ex-autoridades bolsonaristas que minimizam a crise humanitária na tentativa de se eximirem da responsabilidade: "parem de mentir!".
A liderança também reagiu a fake news e teses difundidas por militares de que os Yanomami seriam separatistas ou manipulados por ONGs: "Vocês têm que acreditar em nós, povo Yanomami, porque nós estamos sofrendo. A gente tem representantes nas aldeias". O ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a chamar emergência sanitária de "farsa da esquerda".
Dário defende que militares garantam a segurança na fronteira com a Venezuela. E disse ouvir de lideranças Yanomami locais que o Exército brasileiro recebe propina para fazer vista grossa à proliferação do garimpo ilegal.
"O Exército tem que fazer a soberania nacional onde as drogas estão entrando, onde os garimpeiros estão entrando, onde os estrangeiros estão entrando. Isso é responsabilidade de general. Isso é papel do Ministério da Defesa", afirmou em entrevista disponível na íntegra a seguir.
Kopenawa afirmou que os militares presentes na Terra Indígena Yanomami ficam próximos a pontos de garimpo ilegal. "Eles [militares] estão vendo os garimpeiros voando, pousando... Os pelotões não coíbem e não fazem vistoria", denuncia.
Em relação às primeiras ações emergenciais tomadas pelo governo federal, Dário as considera satisfatórias, mas insuficientes. Será preciso, segundo ele, manter a presença forte do Estado por mais tempo, para evitar que os garimpeiros voltem após serem expulsos.
"O governo está se preocupando e viu a realidade quando foi em Roraima. Ele [Lula] viu as crianças na vida dele, pessoalmente. As crianças estão doentes, estão desnutridas, com malária. E isso é desumano", afirmou.
Dário fez questão de dizer que o genocídio no Brasil não atingiu apenas os indígenas. "Estou falando de 600 mil que o governo matou na pandemia. Não é só o povo da Floresta, o povo Yanomami, que tem que se defender. A sociedade brasileira também".
Hoje em meio a uma maratona de reuniões, entrevistas e viagens como porta-voz dos Yanomami, ele relembra a infância marcada pelo horror do garimpo ilegal.
"Meus parentes, meus tios foram assassinados. Minhas tias morreram de epidemia. Eu cresci nesse movimento de violações do meu povo. E reconheci a luta do meu pai. Ele viajava muito na luta, gritando para autoridades brasileiras. Então eu cresci e eu aprendi. Depois, nesse meu crescimento, pensei no meu avô, na minha mãe".
Autoridades da gestão Bolsonaro estão publicando acusações graves e sem provas. Nas redes sociais, alegam por exemplo que os indígenas famintos vieram da Venezuela. O que representa ataques como esses em plena crise humanitária?
Vocês, como imprensa e jornalismo, têm que ouvir os povos da Floresta. Vocês têm que acreditar em nós, povo Yanomami, porque nós estamos sofrendo. A gente tem representantes nas aldeias. A gente vive na realidade. Não é para acreditar em [ex-vice presente Hamilton] Mourão, Bolsonaro e Damares [Alves, ex-ministra] e outros bolsonaristas. Foram irresponsáveis quando estavam no poder.
Esses são apoiadores do garimpo ilegal, do desmatamento da Amazônia, do desvio de recursos, de matar o povo brasileiro. Estou falando de 600 mil que o governo matou na pandemia. Não é só o povo da Floresta, o povo Yanomami, que tem que se defender. A sociedade brasileira também. Isso [mortes na pandemia] é responsabilidade deles [governo anterior]. Mas o governo não se responsabilizou, não cuidou da população, não cuida do povo da Floresta, especialmente povo Yanomami.
Temos Yanomami no Brasil e venezuelanos também. Nossos parentes também estão lá [na Venezuela]. Mas esses parentes [vítimas da crise humanitária] não são venezuelanos. São os do Brasil. Repetindo, são [das comunidades] Surucucu, Homoxi, Kayanau, Parafuri, Kataroa... São brasileiros.
Então isso é uma mentira. Eles estão mentindo nas redes sociais, estão mentindo na imprensa. Parem de mentir! Então vocês, povo brasileiro, não acreditem mais. Vocês já têm conhecimento do que eles não cumpriram e não resolveram para a população geral. Quem fala pelo Yanomami são as lideranças tradicionais. Nós não estamos mentindo. Eu, Dário, não sou mentiroso.
Se não teve 570 mortes por causa de invasores [que receberam] apoio logístico do governo passado, eu não estaria falando com vocês [da imprensa]. Eu não estaria falando na rede, mostrando minha cara. Eu ficaria na minha aldeia, cuidando dos meus parentes, trabalhando. Ia colocar as roças, ajudar meu povo sem problema.
Nós vamos continuar criticando o governo passado, porque eles têm responsabilidade. Eles têm que responder na Justiça pelo que eles não cumpriram, não respeitaram a legislação brasileira. Não pode falar mentiras nas redes sociais e nos jornais. Eles têm que responder na Justiça pelo erro, pela gravidade e pela negligência.
Eles mataram 600 [mil brasileiros na pandemia]. Isso significa massacre, que é o genocídio. Não cuidaram da população brasileira. Eu quero que a justiça seja bem dura. A Justiça tem que cumprir, e essas pessoas têm que ser presas.
Aquele, o Bolsonaro, ele fugiu foragido. E aí, cadê a população brasileira? Nós Yanomami estamos criticando ele porque era o papel dele [proteger os Yanomami]. A gente reconhece a legislação brasileira.
Dentro da cultura das Forças Armadas brasileiras há uma ideia – nunca corroborada por qualquer evidência - de que os Yanomami seriam separatistas e tentariam fundar um país independente...
Nós, povo Yanomami, não queremos dividir o país. O nosso país já foi destruído por invasores há 523 anos. Europeus, franceses e portugueses já destruíram a nossa Terra. Por que a gente iria criar um país? O resto do povo Yanomami [que não morreu durante a colonização europeia] conseguiu quase 9 milhões de hectares [na Terra Indígena Yanomami].
O Exército Brasileiro tem que fazer a soberania nacional onde as drogas estão entrando, onde os garimpeiros estão entrando, onde os estrangeiros estão entrando. Isso é responsabilidade de general. Isso é papel do Ministério da Defesa. Hoje não estão monitorando muito as drogas e os estrangeiros que estão entrando com liberdade. Não tem controle de soberania nacional.
Relatórios internos da Funai revelados recentemente apontam que os militares da fronteira com a Venezuela receberam dinheiro para favorecer garimpeiros. É verdade?
O exército fica no território Yanomami lá [nas regiões de] Surucucu, Awaris e Maturacá. É um papel de defesa, fazer um monitoramento de fronteira. Como Yanomami, eu vejo que o papel do Exército é para monitorar os inimigos. Mas nos Yanomami não está acontecendo isso. No Surucucu, garimpeiros [estão há] quase 10 metros, 15 metros. Estão olhando e não fazem nada.
Os garimpeiros estão a 15 metros do pelotão de fronteira do Exército em Surucucu?
Estão, no Surucucu. Em Awaris também, e tem garimpo lá. Eles [militares] estão vendo os garimpeiros voando, pousando... Os pelotões não coíbem e não fazem vistoria. Então isso é um problema. Futuramente nós vamos discutir como podemos pressionar os pelotões dentro do território. O que eles estão fazendo? Para que eles estão ali? Será que estão monitorando a nossa vigilância nacional?
Os próprios Yanomami estão dizendo que [os militares] são envolvidos [com o garimpo ilegal. Estão pegando propinas, ouro. Estão comunicando e avisando [os garimpeiros]. Isso tem sim. As lideranças Yanomami me falam que o Exército é envolvido, mas eu não tenho prova. Tenho informações. Nós Yanomami não somos mentirosos. A gente não pode mentir. Mas, quando o Yanomami vê [envolvimento de militares com o garimpo], ele fala a verdade. Por isso o Exército não se mexe.
Nessa realidade paralela militar, o problema não seriam os garimpeiros, mas sim as ONGs, que manipulariam os Yanomami para agir contra os próprios interesses...
Quando falam alguma coisa sobre ONGs... Eu sou ONG. E eu faço o meu papel. A minha instituição [Hutukara Associação Yanomami] é ONG. Proteger as terras indígenas, coibir os invasores: esse é meu papel de defesa da Amazônia.
Nós, Yanomami e outros indígenas, não somos manipulados. Nós temos capacidade, nós temos inteligência, nós temos conhecimento e nós temos filosofia. Nós temos pensamento. O que queremos está na Constituição. Esse é o nosso pensamento para representar os indígenas como ONG. As organizações indígenas fazem parte da proteção territorial do Brasil.
A Hutukara Associação Yanomami considera o governo Bolsonaro genocida?
Na minha opinião, sim. É um genocídio extremamente claro. Por que as crianças estão morrendo? Por que o nosso rio morreu? Cinco Yanomami foram assassinados. A palavra “assassinado” já é o genocídio do governo Bolsonaro, que derramou sangue dos Yanomami novamente. A gente considera que o governo Bolsonaro é o principal genocídio para a sociedade Yanomami e sociedade não indígena. Então isso é uma responsabilidade da Justiça.
Estamos enfrentando o problema por que o governo Bolsonaro se aliou a políticos locais, políticos partidários e políticos internacionais, principalmente da atividade de garimpo ilegal. Exploração nas terras indígenas Yanomami, Kayapó e Munduruku, nos Macuxis. Então isso foi a maior crise que caiu dentro do território Yanomami.
Por que a gente está falando do Bolsonaro? Porque o Bolsonaro liberou atividades de garimpo ilegal na Terra Yanomami. Destruição, exportações de madeiras, soja, por exemplo. E outros problemas com as leis, como é PL [Projeto de Lei] 490, PL 191, Marco Temporal. Então ele fez vários decretos para poder abrir as portas da Terra Yanomami.
Há 40 anos seu pai, o líder Davi Kopenawa, lutava contra uma invasão massiva de garimpeiros. Como é, para você, encarar novamente essa responsabilidade?
Eu nasci com o problema da invasão. Meus parentes, meus tios foram assassinados. Minhas tias morreram de epidemia. Eu cresci nesse movimento de violações do meu povo. E reconheci a luta do meu pai. Ele viajava muito na luta, gritando para autoridades brasileiras. Então eu cresci e eu aprendi. Depois, nesse meu crescimento, pensei no meu avô, na minha mãe.
Meu pai me chamou a atenção: "nós conseguimos demarcar o território, mas eu quero que você siga na luta daqui 20 ou 30 anos. O problema vai repetir, e por isso você tem que se preparar. Você tem que estudar, você tem que conhecer as legislações não indígenas que eles criam e saber como podemos se defender através da Constituição. Então você tem que entrar na linha de defesa do direito do povo Yanomami".
Meu pai falou tudo isso, e eu aprendi, eu estudei tudo isso. Agora eu estou nessa linha me responsabilizando na defesa do direito da população Yanomami. O meu pai já lutou muito e agora ele tem que descansar. Um Yanomami lutou com quase 40 mil garimpeiros. E agora estou lutando com mais de 20 mil garimpeiros. Isso é um papel importante para mim.
O nosso território é demarcado através de lei brasileira. Foi homologado e registrado pelo governo federal. Mas, de outro lado, nosso território não está garantido. Se tivesse garantido, os garimpeiros não estariam no meu território. Não matariam os nossos rios. Então a gente sempre relembra esse processo.
Os senadores e deputados, eles criam leis querendo acabar com os territórios, querendo tirar os nossos direitos na Constituição. Se tiver governo cuidando de nós, originários povos da floresta, nós Yanomami não estaríamos brigando. Não estaríamos denunciando o governo federal. E eu não estaria falando na mídia, gritando, denunciando o Estado brasileiro.
O cenário está repetindo. Na década de 80, 90 e 2022 é o mesmo problema que nós estamos vivendo. Não mudou nada. Eu estou defendendo o meu povo, defendendo a floresta. Eu não estou do lado do governo, do lado dos políticos. Não, a minha política é a defesa do direito do povo Yanomami.
As medidas anunciadas até agora pelo governo Lula são suficientes?
Agora o governo federal se preocupou. Ele [Lula] prometeu que iria zerar o garimpo ilegal e o desmatamento da Amazônia. Então ele lembrou da promessa dele quando houve a repercussão da imagem de negligência da saúde Yanomami. Então ele [Lula] assumiu a responsabilidade. Para nós, como populações indígenas, esses apoios de emergência são bons. É importante salvar as crianças e ter o medicamento para a Terra Yanomami.
E amanhã, como acontecerá isso? Temos algumas dificuldades de entender de quanto tempo será esse apoio. Seis meses? Um ano? Dois anos? Na minha opinião só esse apoio de emergência e de alimentação não vai resolver. Hoje tem várias discussões de apoio de emergência e de organizações não governamentais. Organizações da sociedade civil estão conversando sobre qual é o plano de emergência para salvar o povo Yanomami.
Por exemplo, tem que ter muitos médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e muito apoio de políticos locais para abastecer com medicamentos e transporte. E nutricionistas para ver qual é o grau de desnutrição.
[As ações emergenciais são] o primeiro passo e um ponto positivo para a gente. Eu não sei, futuramente, se vai continuar isso. Mas é bom. O governo está se preocupando e viu a realidade quando ele foi em Roraima. Ele [Lula] viu as crianças na vida dele, pessoalmente. As crianças estão doentes, estão desnutridas, com malária. E isso é desumano.
Essa preocupação sobre a permanência do governo federal está em uma carta encaminhada recentemente ao Executivo pela Hutukara Associação Yanomami, da qual você é vice-presidente. Quais são as outras demandas apresentadas pela Associação?
Essa carta é um plano de emergência e de desintrusão. O governo Lula tem que fazer isso: retirar os garimpeiros na Terra Yanomami imediatamente. A carta fala de melhoria de assistências e melhoria de educação. A gente enviou essa carta falando sobre plano de emergência e plano estratégico.
Quando o governo federal pode fazer proteção territorial imediatamente? Então a carta está dizendo que em dois anos, três anos, quatro e até dez anos tem que monitorar território Yanomami. A gente pediu para o governo fazer a proteção territorial permanente.
Se você tirar [os garimpeiros] amanhã, semana que vem eles vão entrar de novo. Então essa carta está dizendo uma recomendação nossa. Ele [Lula] tem que seguir o nosso plano. O governo tem que seguir isso. Se você tirar 20 mil [garimpeiros] amanhã, por exemplo, isso não vai resolver. Tem que ter policiamento, monitoramento, posto de fiscalizações, tem que ter bloqueio ao redor do território Yanomami, com órgãos públicos de responsabilidade do governo. [Tem que ter] apoio de logística e recursos. Por isso nós colocamos no papel, na carta que entregamos ao governo.