Bento XVI: “O amor na verdade – caritas in veritate – é um grande desafio para a Igreja”

02 Janeiro 2023

"Que neste ano que começa, possamos nos fazer próximos de Cristo, para, ao aprender a amá-Lo, aprender a amar ao próximo como a nós mesmos, e, como Bento XVI, nos tornarmos cooperadores da verdade".

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

Numa época em que discursos vazios inflamam os corações, palavras verdadeiramente profundas e transformadoras continuam a ecoar apesar do tempo. Assim são e serão as de Bento XVI, falecido neste sábado, 31-12-2022, em suas encíclicas, cartas apostólicas, homilias, pronunciamentos públicos e entrevistas, no seu esforço colossal de comunicar e anunciar o que lhe foi dito: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”. Motivado por esta mensagem, ele dialogou com intelectuais e líderes religiosos de todo o mundo, crentes e não crentes, seguindo igualmente as palavras daquele que o precedeu no pontificado: “Santifiquem Cristo como Senhor no coração. Estejam sempre preparados para responder a qualquer que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês”. Com isso ele inspirou a muitos de nós a confrontar a realidade a partir das verdades evangélicas que superam toda e qualquer teoria porque são sustentadas pelo próprio Cristo. Desse modo também ele nos ensinou a amar a Igreja, apesar da nossa própria miséria, e, diante das nossas fraquezas, a nos retirarmos em oração e nos unirmos com Aquele que nos sustenta e nos transforma.

O seu lema como papa, Cooperatores veritatis (cooperadores da verdade), é um convite a todos nós – especialmente em uma época em que o Evangelho é utilizado como instrumento político – a cooperarmos com Cristo, começando por imitá-Lo, e deixando-nos ser conduzidos pelo seu Espírito Santo. Não é tarefa fácil porque imitar Cristo significa negar a nossa própria natureza naquilo que ela tem de pior, mas também favorecer o que ela tem de melhor. 

Na famosa encíclica, intitulada Caritas in veritate, publicada em 2009, Bento XVI não poderia ser mais claro e incisivo ao mencionar o maior desafio da Igreja hoje e em todos os tempos: "O amor na verdade – caritas in veritate – é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização". Em outras palavras, o maior desafio da própria Igreja é o amor em Cristo Jesus, o amor a Cristo Jesus, o amor por Cristo Jesus. "A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor – «caritas» – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta", disse.

Isso não significa que a Igreja deve fechar-se em si mesma. Ao contrário, ao amar a Cristo, aprende-se a amar ao próximo e a desejar o bem comum. Como ele explica,

“depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele «nós-todos», formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais.

Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este é o caminho institucional – podemos mesmo dizer político – da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai diretamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras".

Apesar de todas as acusações que lhe foram atribuídas em vida – uma das inúmeras cruzes que ele também teve que carregar –, neste mesmo texto, Bento XVI não omitiu-se de proclamar a necessidade de a Igreja perseguir o bem dos povos de modo muito prático e concreto, ao citar a famosa encíclica Populorum progressio:

"Ao publicar a encíclica Populorum progressio em 1967, o meu venerado predecessor Paulo VI iluminou o grande tema do desenvolvimento dos povos com o esplendor da verdade e com a luz suave da caridade de Cristo. Afirmou que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal fator de desenvolvimento e deixou-nos a recomendação de caminhar pela estrada do desenvolvimento com todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência, ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade. É a verdade originária do amor de Deus – graça a nós concedida – que abre ao dom a nossa vida e torna possível esperar num «desenvolvimento do homem todo e de todos os homens», numa passagem «de condições menos humanas a condições mais humanas», que se obtém vencendo as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo do caminho. Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica, pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçada para os atualizar nos dias que correm. Este processo de atualização teve início com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha convicção de que a Populorum progressio merece ser considerada como «a Rerum novarum da época contemporânea», que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação".

A recordação dessas palavras não poderia ser mais oportuna e estar em mais sintonia com as que foram proclamadas pelo Papa Francisco na homilia do Natal do Senhor, quando clamou pela paz na atual conjuntura de guerra e subjugação dos povos, ao refletir sobre a "proximidade":

“Tantas guerras! Em tantos lugares, ainda hoje, são espezinhadas a dignidade e a liberdade! E as principais vítimas da voracidade humana são sempre os frágeis, os vulneráveis. Também neste Natal, uma humanidade insaciável de dinheiro, insaciável de poder e insaciável de prazer não dá lugar – como sucedeu com Jesus (cf. 2, 7) – aos mais pequenos, a tantos nascituros, pobres, abandonados. Penso sobretudo nas crianças devoradas por guerras, pobreza e injustiça. Mas é precisamente lá que vem Jesus, menino na manjedoura do descarte e da rejeição. N’Ele, menino de Belém, está cada criança. E está o convite a olhar a vida, a política e a história com os olhos das crianças. Na manjedoura incômoda da rejeição, acomoda-Se Deus: vem para ali, porque nela está o problema da humanidade, a indiferença gerada pela pressa devoradora de possuir e consumir. Cristo nasce lá e, naquela manjedoura, descobrimo-Lo próximo. Vem aonde se devora o alimento para Se fazer nosso alimento”.

Que neste ano que começa, possamos nos fazer próximos de Cristo, para, ao aprender a amá-Lo, aprender a amar ao próximo como a nós mesmos, e, como Bento XVI, nos tornarmos cooperadores da verdade.

 

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