11 Novembro 2022
Nos últimos 40 anos, em nenhum outro país o neoliberalismo foi mais influente e o intervencionismo estatal um assunto de maior tabu do que nos Estados Unidos. É possível dizer que os Estados Unidos foram o país onde a crítica neoliberal ao keynesianismo, a celebração do poder dos mercados e o desprezo ao governo foram levados às suas consequências mais extremas. A famosa afirmação de Ronald Reagan de que “o governo não é a solução para o nosso problema; o governo é o problema” continha uma visão do Estado como uma máquina ineficiente e esbanjadora que precisava ser mantida na linha para permitir o florescimento da iniciativa privada.
Na centro-esquerda, isso foi seguido por pontos de vista antiestatais semelhantes, como exemplifica a famosa afirmação de Bill Clinton de que “a era do grande governo acabou”, em seu Discurso sobre o Estado da União de 1996. No entanto, na última década, a sucessão de crises que vivemos parece levar a um distanciamento do dogma neoliberal, que é ainda mais acentuado nos Estados Unidos do que na Europa.
As guerras comerciais de Donald Trump com a China e a Europa já tinham alterado muitas suposições bem enraizadas sobre o que constituía uma política econômica aceitável. Essa mudança de paradigma está se tornando mais evidente com as políticas econômicas de Joe Biden, que incluem grandes programas de investimento público no valor de trilhões de dólares e uma forte ênfase na política industrial, como se viu recentemente com a aprovação da Lei dos Chips e da Ciência, que pretende transformar os Estados Unidos em um centro de produção de semicondutores, diminuindo assim a dependência do país da Ásia Oriental e de Taiwan em relação a este material estratégico.
Essas diversas tendências demonstram que a fé na globalização e na sabedoria superior dos mercados que marcaram a era neoliberal está desaparecendo e que algo novo está em curso. Mas que tipo de novo paradigma está surgindo?
Para abordar essa questão, conversamos com Felicia Wong, presidente e diretora geral do Instituto Roosevelt, que ajudou a liderar essa transição na elaboração de políticas nos Estados Unidos. Conforme destaca Wong, “o neoliberalismo puro perdeu sua influência. Mas o novo paradigma continua sendo algo pelo qual estamos lutando”, já que está ocorrendo uma importante luta política e ideológica entre a esquerda e a direita em direção ao mundo pós-neoliberal.
A entrevista é de Paolo Gerbaudo, publicada por Agenda Pública/El País, 04-11-2022. A tradução é do Cepat.
Em 2020, você escreveu uma influente análise do cenário argumentando que estávamos testemunhando um abandono do dogma neoliberal. Poderia explicar por que considera que o neoliberalismo desapareceu?
O neoliberalismo critica o papel do governo na economia. Para os neoliberais, muitas ferramentas do governo são ilegítimas e só devem ser usadas em caso de emergência ou para fins de segurança nacional. Contudo, agora, há uma onda na direção oposta que está fazendo com que a ação direta do governo – tanto o investimento quanto a criação de regras – seja uma parte mais habitual da gestão da economia.
No Instituto Roosevelt, ao menos os últimos oito anos, defendemos que a política deve reivindicar todas as ferramentas do governo: da tributação à política industrial, passando pelas infraestruturas e o planejamento. Por razões tanto de escala como de velocidade, muitos dos desafios de nosso tempo exigem uma ação governamental afirmativa: descarbonizar nossa economia e lutar contra a mudança climática; criar maior equidade racial, de gênero e riqueza; construir uma infraestrutura industrial estadunidense mais forte. Esse papel mais ousado e robusto do governo vai contra o pensamento neoliberal dos anos 1980 em diante, e acredito que os estadunidenses e a política dominante estadunidense aceitam cada vez mais esta necessidade.
De qualquer forma, nós nos afastamos da velha cartilha de Reagan e inclusive da velha cartilha de Clinton. O componente libertário, de governo pequeno e de baixos impostos do neoliberalismo, perdeu grande parte de seu poder explicativo e domínio político, embora permaneça sendo o padrão na forma como muitas pessoas pensam que a economia funciona. Agora, temos que garantir que o governo realmente trabalhe em prol do interesse público e que é democrático.
Quais são as razões do declínio do neoliberalismo? É realmente o fim dele?
O neoliberalismo não é mais hegemônico na política estadunidense, em grande parte por causa de seus fracassos: indicadores econômicos ruins, desigualdades galopantes e evidentes excessos corporativos.
É verdade que muitos elementos do neoliberalismo persistem, pois estão enraizados nas relações econômicas e de poder existentes. O neoliberalismo permitiu o crescimento de megacorporações com um poder de mercado desmedido em setores como o tecnológico, o farmacêutico, o agrícola e o varejista, e seu poder é muito difícil de conter.
Contudo, nos debates políticos, a mudança é muito evidente. Há um forte impulso em favor de políticas econômicas que se concentram em maior igualdade e resiliência. E as atitudes em relação à globalização mudaram substancialmente. Conforme Rana Foroohar diz em seu recente livro Homecoming, caminhamos para um mundo mais local e menos globalizado e no qual é dada mais importância à criação de economias locais resilientes, em vez de deslocalizar postos de trabalho para países com baixos salários.
Até que ponto essa mudança no senso comum político é resultado do trabalho do Instituto Roosevelt?
Penso que nosso trabalho teve um impacto, embora, é claro, existem muitos outros fatores. O Instituto Roosevelt cresceu muito. Estamos na vanguarda dos debates sobre a política industrial, apresentamos argumentos econômicos em apoio a um Green New Deal e, durante uma década, defendemos os princípios econômicos de maior poder dos trabalhadores e um poder financeiro e empresarial menos extrativo.
Tanto em termos de orçamento quanto de pessoal, agora somos cinco vezes maiores do que quando comecei. O mais importante é que muitas das ideias de Roosevelt ganharam importância, mas isso não se deve apenas ao Instituto. Trata-se muito mais de uma transformação coletiva. Existem muitos outros think tanks que trabalham nessa área.
Somos relativamente pequenos. Nosso orçamento é um décimo do de organizações maiores, mas encontramos um nicho estratégico no que descrevemos como mudança de paradigma. Reunimos economistas, cientistas políticos e especialistas em comunicação para pensar na transformação de longo prazo e nas políticas e ideias necessárias para isso.
As condições externas também contribuíram para essa mudança. A pandemia de Covid e, antes disso, a recuperação do baixo crescimento da crise de 2008 demonstraram que o velho pensamento econômico não estava funcionando. De certa forma, a presidência de Donald Trump, com sua ruptura das velhas regras neoliberais sobre o comércio e o déficit, demonstrou que era possível uma mudança de paradigma.
Na esquerda, figuras como Bernie Sanders e Elizabeth Warren estimularam a política econômica e essa mudança também. Nosso trabalho no Instituto Roosevelt complementa esse pensamento, realizando pesquisas e desenvolvendo visões políticas de longo prazo, algo que os políticos, muitas vezes, não têm recursos para fazer.
Por qual razão o consenso neoliberal está sendo substituído?
Se o declínio do neoliberalismo está bastante claro, o que vem na sequência é incerto. A grande questão é se o novo paradigma será mais igualitário, mais progressista e mais inclusivo ou o contrário. Há uma versão da história que termina com uma espécie de etnonacionalismo de direitas, onde no lugar do neoliberalismo, mergulhamos em um conservadorismo linha-dura. O risco é uma espécie de alternativa autocrática, autoritária ou mesmo fascista ao neoliberalismo.
Contudo, esse não é o único cenário possível. Existe também uma saída progressista e inclusiva da atual estagnação, e é por isso que os progressistas nos Estados Unidos vêm lutando e que Biden avançou em parte.
Um dos níveis mais evidentes da mudança da sabedoria neoliberal parece que está no contexto da política industrial e comercial. Qual a importância da atuação de Biden nesse campo?
O desenvolvimento de uma estratégia industrial tem sido um objetivo crucial do governo Biden e fundamental na legislação aprovada nos últimos dois anos. As políticas da administração se concentram no lado da oferta e nos trabalhadores que fazem parte dessa oferta. Algumas dessas políticas são destinadas a estabilizar o mercado de trabalho, o que é um passo essencial para a execução de uma estratégia industrial. Outras se concentram em infraestruturas, nas quais foram investidos 1,2 trilhão de dólares, e outras se dirigem à tecnologia e aos componentes tecnológicos estratégicos.
Talvez o exemplo mais notável seja a Lei dos Chips e da Ciência, que envolve um investimento de 250 bilhões de dólares em semicondutores e em pesquisa básica. O governo Biden também implementou medidas destinadas a desenvolver nossa capacidade de fabricação ecológica, que abarcam desde bombas de calor até turbinas eólicas e painéis solares, embora obviamente os veículos elétricos recebam muita atenção. Portanto, o governo está assumindo um papel de liderança no fortalecimento de partes da cadeia de fornecimento e de nossa capacidade de construir coisas em áreas que o mercado não tem sido capaz de proporcionar.
Muitas vezes, essas políticas também são apresentadas como se tivessem um elemento social. Mas até que ponto essa estratégia de deslocalização vai contribuir para a melhoria econômica das antigas regiões industriais empobrecidas dos Estados Unidos?
Se observarmos os detalhes dessas leis, pedem que se construa em regiões dos Estados Unidos que, desde os anos 1980, foram realmente dizimadas, como o chamado Cinturão da Ferrugem do Meio-Oeste e do Nordeste. A ideia é levar a fabricação, o emprego, as infraestruturas e a banda larga para essas regiões do país.
O projeto de lei dos Chips prevê a criação de cerca de 20 centros regionais diferentes para a fabricação de semicondutores, que atualmente estão 80% localizados na Ásia, no leste da Ásia e, em particular, em Taiwan. Este será um grande desafio e depende muito do desenho das políticas. Há uma oportunidade real para que as comunidades e os trabalhadores se beneficiem dessa mudança de política.
Os republicanos se veem como prováveis vencedores das eleições de meio de mandato. Isto poderia deter o distanciamento do neoliberalismo que você descreve?
Se os republicanos ganharem uma ou as duas câmaras, sem dúvida, será muito difícil para os democratas fazer algo a mais em nível legislativo. Alguns também afirmam que os democratas não fizeram o suficiente durante seu período no poder. No entanto, o que muitas vezes se ignora é que a atual coalizão democrata vai de gente como Alexandria Ocasio-Cortez a gente como Joe Manchin, e sua maioria é muito apertada.
Quando Franklin Delano Roosevelt e Lyndon B. Johnson criaram o New Deal e a Great Society, tinham algo como 70% de maioria no Congresso. No momento, o Senado está dividido quase por igual, por isso tem sido muito difícil e demorado aprovar leis. Se os republicanos vencerem as eleições de meio de mandato, as coisas certamente ficarão mais difíceis para a agenda econômica progressista.
Contudo, não acredito que haverá uma reversão completa dessa guinada pós-neoliberal. Os planos de investimento do governo Biden já foram aprovados e o dinheiro alocado: só resta gastá-lo. Grande parte da atenção deve se concentrar agora em como vamos aplicar a legislação que já aprovamos. O problema do formato da política e o impacto real desta legislação mal começaram.
Muitas vezes, você ressaltou que as políticas redistributivas devem andar de mãos dadas com o desenvolvimento das instituições democráticas. O que você quer dizer com isso e por que considera que é tão importante?
Não há justiça social sem democracia. Precisamos que os cidadãos e os trabalhadores participem das decisões que os afetam. Em relação aos projetos de infraestruturas, temos que fazer com que as pessoas façam parte do processo de planejamento.
Qualquer projeto de construção requer a conciliação de interesses contrapostos. O risco é que repitamos os erros cometidos no passado com os projetos de infraestruturas que muitas vezes afetaram negativamente as comunidades operárias e negras, causando segregação e exclusão. Para evitar isso, é necessário que as comunidades participem de forma afirmativa no processo de planejamento. Não é fácil, mas no futuro devemos gerenciar esses produtos de forma diferente do que fizemos no passado.
Também é importante levar mais democracia para o local de trabalho. Estamos vendo uma enorme onda de sindicalização, e os sindicatos são mais populares agora do que nos últimos 75 anos. Temos que garantir que os trabalhadores não apenas recebam melhores salários, mas também opinem sobre suas condições de trabalho, o seu horário e coisas como a segurança no local de trabalho. Só assim poderemos fazer com que o mundo pós-neoliberal seja mais justo socialmente e mais democrático, e que as pessoas vejam que o governo é delas.
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Um paradigma pós-neoliberal está surgindo. Entrevista com Felicia Wong - Instituto Humanitas Unisinos - IHU