25 Outubro 2022
"Mas o que resulta com clareza é o fato de que aquele Concílio, temido, rejeitado, contrariado em todos os modos pelos vértices da cúria papal tanto em seu desenvolvimento histórico quanto em sua aplicação lenta e às vezes inexistente, que encontrou em Roma mais obstáculos do que incentivos, acabou se tornando uma espécie de mito fundador da Igreja Católica, de sua identidade histórica, doutrinal e pastoral", escreve o historiador italiano Massimo Firpo, professor da Universidade de Turim e da Scuola Normale Superiore di Pisa, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 23-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
História da Igreja. Reza a história que, após o Concílio de Trento, o catolicismo passou por uma renovação: novos estudos de arquivo o desmentem.
Uma versão historiográfica ainda amplamente atestada nos manuais escolares apresenta a dramática crise vivida pela Igreja Católica entre os séculos XV e XVI como o resultado dos inúmeros abusos, corrupção, da cultura neopagã que haviam invadido todo o corpo, desencadeando entre os fiéis desconfianças, severas advertências, anseios proféticos, e a explosiva rebelião de Martinho Lutero em 1517, com a rápida disseminação da Reforma Protestante em toda a Europa do Norte, Suíça, Inglaterra, França e também Itália.
A reação de Roma foi lenta e tardia, devido a deslizamentos, conflitos internos, costumes antigos, prevalência dos interesses políticos dos papas da família Médici, como indica o fato da Inquisição Romana ter sido instituída apenas em 1542. Foi Paulo III Farnese (1534-49) o primeiro a reagir com as armas de controle e repressão daquela que mais tarde será definida como a Contrarreforma (um conceito, aliás, sempre problemático para os estudiosos católicos, pois leva a subordinar a história da Igreja à Reforma Protestante), mas também em positivo, colocando em prática alguma frágil ação de renovação.
Foi o início da chamada Reforma Católica, que se tornara cada vez mais vigorosa, capaz de encontrar na longa história do Concílio de Trento, que durou quase vinte anos (1545-1563), o momento genético de uma estratégia reformadora apta a transformar profundamente - pelo menos na Itália - o rosto da instituição eclesiástica, reunida em torno da autoridade papal, capaz de infundir em toda parte seu espírito de renovação, de restituir ao clero a consciência de seu papel pastoral, de formá-lo através de seminários, de impor uma nova disciplina religiosa também ao laicato, de fazer uso de novas e poderosas ordens religiosas (em primeiro lugar os jesuítas), de engajar-se em múltiplas iniciativas assistenciais e caritativas, de se expandir com extraordinário ardor missionário na América e na Ásia.
Na realidade, especialmente se for se restringir à Itália, é realmente difícil perceber os vestígios de uma autêntica Reforma católica, tanto que a historiografia anglo-saxônica, ciente das aporias desse conceito, tem preferido nos últimos anos recorrer à definição de "early modern catholicism" (catolicismo da primeira época moderna). Sem dúvida uma categoria indiscutível, elástica, utilizável sempre e em todos os lugares, mas também reduzida a uma mera dimensão cronológica que nada diz e nada explica sobre o que fosse aquele "early modern catholicism", quais suas características essenciais, o conjunto de valores e dos projetos a que visava sua ação, as ferramentas que utilizou, os resultados que alcançou.
Desta forma, procurou-se sair da trilha traçada há sessenta anos pelo mais ilustre estudioso de Tridentino, o padre salesiano Hubert Jedin, segundo o qual uma severa Contrarreforma foi certamente implementada contra todo desvio doutrinário, mas o que mais contou e deixou marca na história foi uma reforma católica incisiva, capaz de se desdobrar cada vez mais forte e capilar, valendo-se de instâncias de renovação já presentes no corpo da Igreja bem antes do aparecimento de Lutero (e, portanto, autônomas da Reforma Protestante) e prontas depois para se difundir e se enraizar de forma cada vez mais eficaz nos vértices e em todo o corpo da Igreja após a conclusão do concílio.
A historiografia leiga questionou essa imagem apologética edificante, contrapondo a ela uma realidade muito diferente, com base em rigorosas pesquisas de arquivo. É o caso, por exemplo, do importante livro de Michele Mancino e Giovanni Romeo, Clero Criminale. L’onore della Chiesa e i delitti degli ecclesiastici nell’Italia della Controriforma (Roma-Bari, Laterza, 2014), que demonstrou a substancial impunidade nos séculos pós-tridentinos de um número impressionante de padres corruptos, às vezes violentos responsáveis por crimes gravíssimos e até reincidentes, graças à tenaz defesa implementada pelos tribunais romanos para proteger a honra do clero, do prestígio da Igreja e de seus privilégios jurisdicionais. Isso encontrou imperdoável confirmação na continuação até hoje de gravíssimos casos de pedofilia que por muito tempo encontraram cobertura, silêncios, cumplicidade por parte daqueles que deveriam vigiar, impedir e reprimir.
Clero criminale. L'onore della Chiesa e i delitti degli ecclesiastici nell'Italia della Controriforma
Tudo isso sugeriu ao autor destas linhas tentar, ainda que apenas sumariamente, por meio da infinita casuística oferecida pelos verbais das visitas pastorais em toda a Itália, uma avaliação das consequências dos decretos tridentinos no curto, médio e até mesmo longo prazos. Resultou uma realidade desoladora, tal que, por exemplo, no início do século XVIII, um representante típico do establishment anglicano, como Joseph Addison, ficou impressionado em Veneza pela "ignorância e licenciosidade do clero, [...] pela corrupção e dissolução dos conventos"; ou na igualmente civilizada Toscana, onde em 1786 as condições do clero não pareciam nem mais nem menos do que desastrosas para o arquiduque Pedro Leopoldo.
Pior ainda era a situação das pequenas e pobres dioceses do Sul, onde em muitos casos de reformas tridentinas não havia vestígio algum. Dois séculos após a conclusão do concílio de Nápoles, os camponeses às portas da cidade pareciam como "bárbaros" aos olhos de Antonio Genovesi, selvagens "sem arte e às vezes sem religião, da qual muitos [...] só têm a casca sem o espírito”.
Em 1742 a "fradismo napolitano" (uma centena de conventos para cerca de 30 ordens religiosas), julgado por alguns "mais bárbaro que a própria barbárie espanhola", no centro de todo tipo de escândalos, vícios, crimes, intimidações, egoísmos gananciosos, foi tachado pelo ministro Bernardo Tanucci como "horroroso". Ainda em 1916, a primeira carta pastoral coletiva do episcopado calabrês para a Santa Quaresma, lamentava a forma precipitada e imprecisa com que os padres celebravam a missa, quase sempre sem entender o significado das liturgias, o estado desastroso de igrejas e mobiliários sagrados ("sujo, imundo o chão; os confessionários em ruínas, cheios de poeira e teias de aranha; toalhas de mesa, batinas, amitos, corporais, purificadores, toalhas que pedem por um pouco de limpeza em vão"), procissões intercaladas com rituais de viés pagão e a chamado “mesura” diante dos chefes mafiosos ainda hoje infelizmente em uso ("uma verdadeira profanação, [...] um verdadeiro rebaixamento").
Naquela de 1948, lamentava-se que a prática religiosa fosse "muitas vezes entristecida por formas parasitárias e supersticiosas" e terminava amargamente com a constatação de que "nos movemos em um mundo cristão apenas de aparência". O mesmo mundo, aliás, vivido por Carlo Levi no confinamento em Aliano na Basilicata que lhe foi imposto pelo regime fascista.
Uma vasta documentação, portanto, parece obscurecer e às vezes dissolver no nada a chamada “disciplina” tridentina, da qual, inclusive, as aristocracias sociais estavam, de fato, isentas. É claro que, ao longo dos séculos, a vida religiosa coletiva passou por mudanças significativas e os próprios estados seculares (ainda que apenas por causa de suas batalhas jurisdicionais contra a Igreja) foram protagonistas de significativas instâncias reformadoras.
Mas o que resulta com clareza é o fato de que aquele Concílio, temido, rejeitado, contrariado em todos os modos pelos vértices da cúria papal tanto em seu desenvolvimento histórico quanto em sua aplicação lenta e às vezes inexistente, que encontrou em Roma mais obstáculos do que incentivos, acabou se tornando uma espécie de mito fundador da Igreja Católica, de sua identidade histórica, doutrinal e pastoral. Mais um exemplo de heterogênese dos fins, como o grande Paolo Sarpi explicou no início do século XVII em uma página memorável de sua história do Tridentino, ressaltando como aquela assembleia dos bispos do cristianismo tivesse tido "forma e cumprimento todo contrário ao desígnio de quem a convocou e do temor de quem com todo estudo a perturbou”.
Vale a pena relê-lo na íntegra: “Esse concílio, desejado e buscado por homens piedosos para reunir a Igreja que começava a se dividir, estabeleceu assim o cisma e tornou obstinadas as partes, o que causou discórdias irreconciliáveis; e propiciou princípios para reforma da ordem eclesiástica, causou a maior deformação que já houve desde que o nome cristão existe, e sendo pelos bispos esperado para readquirir a autoridade episcopal, em grande parte repassada apenas ao pontífice romano, a fez perder a eles inteiramente, reduzindo-os a maior servidão; ao contrário, temido e escapado da corte de Roma como meio eficaz para moderar o poder exorbitante, transformado por vários progressos de pequenos princípios a excesso ilimitado, a estabeleceu e confirmou de tal forma a sobre a parte que lhe ficou sujeita, que nunca havia sido tão grande, nem tão bem enraizada".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Reforma Católica, um falso mito. Artigo de Massimo Firpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU