A simples aplicação dos “valores ocidentais” é praticamente impossível, ninguém os aceitará, nem mesmo os ocidentais. Além disso, os “valores ocidentais” talvez existam apenas na mente de quem luta contra a liberdade. Em vez disso, é preciso uma base prática de diálogo entre culturas e povos. Com efeito, isso já está começando a existir.
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin da China. O artigo foi publicado por Settimana News, 12-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A invasão russa da Ucrânia está recriando as bases de uma política continental e transatlântica, mas também está ajudando a lançar as bases para um novo sistema de valores e tradições que unem mais do que ontem uma parte do mundo.
Um dos objetivos do presidente russo, Vladimir Putin, no início da invasão da Ucrânia era dividir a União Europeia e o Velho Continente em geral em uma frente (mais forte) favorável a Moscou e distante de Washington, e outra (mais fraca) favorável a Washington e distante de Moscou.
A primeira, grosso modo, podia ter três centrais, Alemanha, Itália e França; a segunda era de países ex-soviéticos, além de eventuais franjas de outros europeus. Estes últimos se curvariam sob o domínio conjunto de leste e oeste.
Em termos gerais, assemelhava-se a acordos antigos ou mais recentes que dividiam a Europa central entre um império russo e os impérios alemães, prussianos ou austro-húngaros. O plano agia sobre sentimentos e percepções antigas e opunha a ideia de uma história secular à de uma história nova, totalmente a ser inventada, para uma Europa diferente.
O plano, como se viu, fracassou. Isso não muda o fato de que as linhas de fratura na Europa continuam a existir e podem se ampliar até mesmo após o fim da guerra na Ucrânia.
De fato, o ataque russo trouxe à tona uma ferida profunda na estratégia alemã e europeia dos últimos 30 anos. Em Berlim e Bruxelas, mas também em Paris e ainda mais em Roma, pensavam que a política, a realpolitik, inventada pelos alemães, como diz o nome, tinha deixado de existir e só a economia dominaria o mundo.
Assim, a Alemanha fez uma dupla aposta ao se ligar à Rússia para o fornecimento de energia a baixo custo e à China como base produtiva e de mercado. Uma aposta política que podia até estar certa há 30 anos, mas feita sem hedging the bets, sem garantias.
Ou seja, a Alemanha e, por extensão, toda a Europa que gravita economicamente em torno de Berlim gradualmente deixaram de considerar alternativas aos investimentos político-econômicos na Rússia e na China.
Os motivos eram todos razoáveis e fundamentados na época, mas hoje se revelam errados, infelizmente para a Alemanha e para toda a Europa, que segue seus passos.
Hoje, não estão em risco apenas os fornecimentos de energia russa, mas também o mercado chinês. Porque, a menos que a China mude de rumo rápida e radicalmente, após a guerra na Ucrânia haverá um desacoplamento econômico com Pequim, e Pequim está ciente disso [1].
De fato, assim como não é possível mais arriscar um fornecimento de energia de países “em risco”, assim também os países “em risco” como a China não podem mais estar na cadeia de fornecimento.
Esse desacoplamento não ocorrerá apenas por vontade dos Estados Unidos, mas também pelas crescentes pressões de países asiáticos que veem uma oportunidade de crescimento ao hospedar investimentos em fuga de Pequim. E porque qualquer gnomo financeiro de Zurique aumentará o interesse e os elementos de risco para aventuras relacionadas à China.
Esse é o futuro próximo para Berlim, enquanto o presente já pressiona. A inflação de dois dígitos não só traz de volta cenários de pânico de 100 anos atrás, quando a crise econômica foi o deslizamento que deu o poder a Hitler, mas também é uma realidade concreta.
Apenas a metade dos alemães possui uma casa, e, portanto, a inflação, com o aumento dos aluguéis, incide mais do que na Itália, onde mais de 80% são proprietários da casa em que moram. Isso, por sua vez, depende de muitas coisas, incluindo impostos mais altos sobre a propriedade de imóveis em Berlim do que em Roma, e uma propensão diferente à poupança privada, menor na Alemanha, maior na Itália, talvez também devido à confiança no Estado, maior na Alemanha, menor na Itália.
Esse erro de estratégia, portanto, atinge profundamente as células do organismo alemão. Assim, enquanto os italianos, mais céticos em relação ao Estado, também estão mais preparados psicologicamente para enfrentar uma crise, os alemães, que têm mais confiança em seu governo, estão menos.
Por outro lado, a história das últimas décadas mostrou que a Alemanha não precisou de ajudas externas, enquanto outros países tiveram necessidade disso. Então, o que os outros europeus fariam diante de uma grave e gritante crise alemã? Nada, talvez?
Os 200 bilhões de euros do fundo para limitar o custo do gás e a resistência até ontem ao teto do preço do gás, marco importante na estratégia pró-Rússia, mas também uma hipoteca sobre a estratégia pró-China, talvez também respondam a esse emaranhado de sentimentos e percepções.
Por outro lado, ex-países soviéticos como a Polônia ou a República Tcheca se sentem vingados em sua militância antirrussa. Além disso, como informa o documento de John Pomfret em seu “From Warsaw with Love”, a Polônia está muito ligada aos Estados Unidos. Finalmente, a economia polonesa está funcionando, não está no euro e, depois da guerra, poderia criar um eixo político formidável com a Ucrânia, que mudaria muitos equilíbrios europeus, especialmente com a crise da Alemanha.
Com a crise da Alemanha, a França também entra em crise. E a Itália, já fraca em si mesma, que fim terá?
Não se trata apenas de uma questão de política externa, mas se mistura com escolhas de política interna. A Polônia e a República Tcheca, vistas de Bruxelas, se dirigem a uma deriva autoritária, que não agrada Berlim ou Paris.
Nem a nova estrutura concordante que desce da Suécia-Finlândia e passa pelo Báltico, Polônia e cai pela Ucrânia, Romênia e Bulgária pode ser uma reedição do poder dos séculos XVI-XVII que dividia a Europa de acordo com diretrizes diferentes das franco-alemãs.
Tal deriva parece encorajar forças extremistas que na França chegaram perto do poder e que poderiam crescer na Alemanha. Afinal, em 28 de outubro, haverá o centenário da Marcha sobre Roma com uma primeira-ministra in pectore pós-fascista, Giorgia Meloni. Uma coincidência que não escapa à Europa e que incute prudência, apesar de todas as cautelas e atenções da própria Meloni.
Luca Ricolfi tem razão em seu artigo no jornal La Repubblica de 10 de outubro, ao afirmar que as questões candentes para o próximo governo italiano são econômicas. Meloni provavelmente terá que pedir dinheiro em Bruxelas nos próximos meses. Mas, com a crise político-econômica alemã, as questões de caixa também podem se tornar de valores.
Isso dá à Itália, pela primeira vez em muitos anos, objetivamente, um grande poder de equilíbrio, mas com o poder vêm também enormes responsabilidades.
De fato, é preciso ajudar a Alemanha com todas as forças possíveis para que ela encontre um novo horizonte político-econômico e, ao mesmo tempo, não ostracize a Polônia, mas a ajude a reentrar plenamente no leito europeu. Essas duas coisas, por si sós, exigem uma profunda reavaliação da Europa.
Tal reavaliação não pode deixar de ocorrer também por meio de uma profunda discussão com Washington. De fato, muitos dos erros estratégicos da União Europeia na Ucrânia passaram pela distância que se criou na relação transatlântica.
Aqui, o terceiro ato do drama, as questões de valores. Elas dividiram profundamente a sociedade estadunidense e a europeia, e essa falha tectônica talvez seja a grande linha de continuidade e união ao longo do Atlântico.
Elas são compreensíveis, embora muito controversas, em ambas as margens do Atlântico, mas às vezes parecem inescrutáveis, por exemplo na Ásia, como as cores para os daltônicos.
Uma geopolítica unitária transatlântica poderia forçar a ignorá-las, mas isso é impossível, dado os quão profundamente enraizados e profundos são os temas. Além disso, alguns elementos essenciais, como a questão da liberdade, que vai da pessoa à política e ao mercado, e os limites dessa liberdade também são decisivos entre sociedades mais ou menos livres.
Então, é preciso olhar para dentro de nós mesmos, pelo menos um pouco.
Deus, pátria, família foram os três lados do triângulo conservador-reacionário que marcou a direita europeia por pelo menos dois séculos, da Revolução Francesa de 1789 à queda do Muro de Berlim em 1989. Agora, tudo começou a girar em sentido contrário.
No século passado, o ataque conjunto do ateísmo comunista e do neopaganismo fascista tentou abolir Deus. Sob pressões semelhantes, a pátria foi declarada nula pelos comunistas em nome de um neouniversalismo proletário que colocava tudo sob o comando de Moscou ou foi levado ao extremo por quem via apenas a própria pátria e ignorava os direitos e as exigências das pátrias alheias.
A família que era a patriarcal acabou pela simples emancipação feminina universal que continua e continuará movendo a agulha dos equilíbrios do estar juntos.
Agora que o grande impulso comunista acabou, sentimo-nos perdidos em um mundo que está mudando a uma velocidade cada vez maior, e o desejo de valores e tradições que valham para todos está retornando.
Um problema, naturalmente, diz respeito a quais valores e tradições. Valores africanos, chineses, indianos, europeus, árabes são todos iguais?
Se são todos iguais, o mundo se atomiza, não há mais juízos, regras e, portanto, falta comunicação. É a anarquia baseada no poder do mais forte. A simples aplicação dos “valores ocidentais” é praticamente impossível, ninguém os aceitará, nem mesmo os ocidentais. Além disso, os “valores ocidentais” talvez existam apenas na mente de quem luta contra a liberdade.
Em vez disso, é preciso uma base prática de diálogo entre culturas e povos. Com efeito, isso já está começando a existir.
Deus voltou. Quer seja o intolerante dos fundamentalistas ou o misericordioso do Papa Francisco. Pode haver uma ausência de multidões orantes nos locais de culto, mas o ateísmo não é mais teorizado. Acabou o ódio contra Deus que começou com a Revolução Francesa. Além disso, a percepção de Deus voltou na preferência prática, e a maioria das pessoas, sem manias suicidas, escolherá o deus misericordioso do papa.
O universalismo comunista acabou, e não há espaço nem mesmo para uma pátria que atropele as pátrias alheias, como os russos tentaram fazer contra a Ucrânia. Se os russos não puderam fazê-lo, é improvável que outros o façam.
Em vez disso, há um retorno de uma pátria que alinha seus interesses com os do mundo.
A família. Não há a velha tirania patriarcal, mas há um novo desejo de um núcleo de afetos que se coagula em torno de um casal com filhos. O fato de os LGBTs quererem o direito de casar é prova do retorno, da força da família. Dito isso, crianças adotadas por casais LGBT, gravidezes de aluguel, abortos fáceis, contracepção estão afastando a antiga contiguidade entre sexo, reprodução e família patriarcal.
Mas, antigamente, a contiguidade entre sexo e reprodução era paga com abortos clandestinos, filhos não reconhecidos pelos pais, filhos de pais pobres dados como servos para as casas dos ricos. Ter pai e mãe era uma sorte.
Agora que seria possível facilmente ter uma família “normal”, abrir mão dela parece uma bofetada na cara da miséria. Obviamente, isso parece contranatural, mas, afinal, uma população que explodiu em um século de um para oito bilhões, com uma expectativa de vida média que duplicou nesse meio tempo de 40 anos para quase 80 anos, é igualmente “inatural”.
A verdade parece ser que a “tradição” está se reorganizando em parâmetros diferentes dos de antes da Revolução Francesa ou Soviética.
Em suma, em muitas das manifestações “novistas”, não há um desejo de sublevações como as do século passado, fascistas ou comunistas, mas se trata de um neotradicionalismo. Também nas manifestações “woke” que negam a “cultura branca”, há o desejo de estabelecer outra tradição cultural.
Aqui, a distinção não é cultura branca ou negra, vermelha ou verde. É cultura sim ou não. Aqueles que se opõem ao estudo dos clássicos gregos devem estudar também os clássicos chineses, ou os indianos, ou os hieróglifos maias.
Finalmente, as estátuas demolidas e reconstruídas são parte essencial da cultura ocidental, são a iconoclastia que atormentou o cristianismo durante séculos e ainda dilacera o mundo muçulmano como se lê em “Meu nome é vermelho”, de Orhan Pamuk. Nada de novo sob o sol, faz parte da nossa tradição.
A essência dessa tradição, para além das polêmicas cotidianas, é um cimento profundo nos dois lados do Atlântico, que se projeta para o futuro se e na medida em que consegue encontrar uma síntese, por mais tênue que seja.
A posição extrema, “neoczarista” defendida por Moscou e por seus adeptos ocidentais, por outro lado, está destinada a desaparecer, derrotada pela guerra, como ocorreu com o fascismo após a Segunda Guerra Mundial ou com o comunismo após a Guerra Fria. Além disso, isso caminha de mãos dadas com a transformação do mundo muçulmano, que está olhando cultural e religiosamente mais para um diálogo com a Santa Sé e política e economicamente para uma relação com Israel.
A crise em curso no Irã, contemporânea à russa, parece indicar outro aspecto dessa transformação profunda, a mudança e a marginalização do Islã mais radical que explodiu justamente a partir da revolução de Khomeni em Teerã há 40 anos.
Essa transformação em curso também apresenta oportunidades e desafios culturais, políticos e econômicos muito importantes para a Ásia, pátria de 60% da população mundial.
Uma pergunta, acima de tudo, vai para a China: se Moscou, parte da cultura europeia, não conseguiu dividir a Europa e a relação transatlântica política e culturalmente, Pequim poderia conseguir? E, se não conseguir, que estratégias a China pode adotar para enfrentar seu futuro próximo para evitar um perigoso isolamento?
Saber essas respostas poderia realmente dar início ao pós-guerra ucraniano.
1. Cf. Zongyuan Zoe Liu, “China Is Hardening Itself for Economic War”.