Como Francisco fala sobre a liturgia. É a sua maneira de falar sobre o Vaticano II. Artigo de Massimo Faggioli

Foto: Vatican News

20 Julho 2022

 

“No início dos anos 2000, a tarefa da teologia era evitar as autoridades hierárquicas (começando com a Cúria Romana de João Paulo II e depois Bento XVI) de sufocarem as reformas litúrgicas e outras conciliares. Hoje, não é mais o Vaticano II que precisa ser defendido das garras de Roma. Em vez disso, é Roma que está vindo em defesa do Vaticano II”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por Commonweal, 18-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Nunca foi verdade que o Papa Francisco não é um teólogo. Mas é verdade que a questão da liturgia, desde sua eleição, tornou-se um foco cada vez mais significativo de sua atenção, e que falar sobre a liturgia tornou-se uma maneira distinta para ele falar sobre o Vaticano II. Em 29 de junho – quase um ano após o motu proprio Traditionis custodes, um documento marcante em seu pontificado – Francisco publicou outro texto-chave sobre a liturgia, a carta apostólica Desiderio desideravi, “sobre a formação litúrgica do povo de Deus”.

 

De maneira mais sistemática do que o habitual, Francisco apresenta sua compreensão do Concílio Vaticano II e seu legado, e em particular da reforma litúrgica: “Devemos ao Concílio – e ao movimento litúrgico que o precedeu – a redescoberta de uma compreensão da liturgia e de sua importância na vida da Igreja” (parágrafo 16). Ele defende a reforma litúrgica contra as acusações que se tornaram rotina em alguns círculos católicos: “Quando falo de espanto pelo mistério pascal, não pretendo de forma alguma me referir ao que às vezes me parece significar a vaga expressão 'senso de mistério.' Às vezes, isso está entre as supostas principais acusações contra a reforma litúrgica. Diz-se que o sentido de mistério foi removido da celebração” (par. 25).

 

Francisco mostra a importância da constituição litúrgica na arquitetura abrangente dos documentos do Vaticano II em sua intertextualidade: uma questão teológica é abordada em diferentes documentos e um documento se cruza com todos os outros. Portanto, os documentos do Vaticano II devem ser vistos e lidos como um corpus, como um corpo de ensinamentos: “É com esta realidade do mundo moderno que a Igreja, unida no Concílio, quis entrar em contato, reafirmando sua consciência de ser o sacramento de Cristo, “Luz das nações” (Lumen gentium), colocando-se em escuta devota da “Palavra de Deus” (Dei Verbum), e reconhecendo como suas “as alegrias e as esperanças” (Gaudium et spes) do povo de nossos tempos. As grandes Constituições do Concílio não podem ser separadas umas das outras, e não é por acaso que este único grande esforço de reflexão do Concílio Ecumênico – que é a expressão máxima da sinodalidade na Igreja e cuja riqueza eu, juntamente com todos os de vós, sou chamado a ser o guardião – começou com a reflexão sobre a Liturgia (Sacrosanctum concilium)” (par. 29).

 

Os parágrafos 29 e 31 mostram especialmente a profunda familiaridade de Francisco com os desdobramentos históricos do Concílio a partir do debate litúrgico, com as conexões entre o debate litúrgico da primeira sessão em 1962 e o debate eclesiológico da segunda sessão em 1963. O caráter intertextual do Vaticano II implica uma abordagem interdisciplinar da liturgia e da formação teológica: “Cada disciplina de teologia, cada uma a partir de sua própria perspectiva, deve mostrar sua própria conexão íntima com a liturgia à luz da qual a unidade da formação sacerdotal se torna clara e realizada” (par. 37).

 

Francisco destaca o que está em jogo na nova questão litúrgica que surgiu nos últimos anos e a aborda com a franqueza de sempre: “Seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre gostos relativos a forma ritual. A problemática é principalmente eclesiológica. Não vejo como é possível dizer que se reconheça a validade do Concílio – embora me surpreenda que um católico possa presumir não fazê-lo – e ao mesmo tempo não aceitar a reforma litúrgica nascida de Sacrosanctum Concilium, documento que expressa a realidade da Liturgia intimamente ligada à visão da Igreja tão admiravelmente descrita na Lumen gentium”.

 

Desiderio desideravi também pode ser vista como um sinal da luta e frustração deste pontificado para fazer valer o respeito pela reforma litúrgica como Francisco detalhou em Traditionis custodes há um ano: “Como já expressei em minha carta a todos os bispos, senti o dever de afirmar que ‘os livros litúrgicos promulgados por São Paulo VI e São João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a expressão única da lex orandi do Rito Romano’” (par. 31).

 

Francisco nos chama a uma contínua redescoberta da constituição e reforma litúrgica: “Por isso não podemos voltar àquela forma ritual que os padres conciliares, 'cum Petro et sub Petro', sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito Santo e seguindo sua consciência de pastores, dos princípios dos quais nasceu a reforma. Os santos pontífices São Paulo VI e São João Paulo II, aprovando os livros litúrgicos reformados ‘ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II’, garantiram a fidelidade da reforma do Concílio. Por isso escrevi Traditionis custodes, para que a Igreja suscite, na variedade de tantas línguas, uma só e mesma oração capaz de exprimir a sua unidade. Como já escrevi, pretendo que esta unidade seja restabelecida em toda a Igreja do Rito Romano” (par. 61).

 

O documento deve ser considerado um acréscimo significativo ao corpo dos ensinamentos de Francisco. Mas não é relevante apenas para aqueles que estudam este papa por interesse acadêmico. Desiderio desideravi também é significativa no contexto do confronto entre alguns bispos estadunidenses e políticos católicos do Partido Democrata, a começar por Joe Biden e Nancy Pelosi. Como salientou o liturgista beneditino francês Patrick Pretot sobre Desiderio desideravi: “O papa repete de outra forma o que ele expressou muitas vezes em outros lugares: a Eucaristia não é um prêmio pelo bom comportamento. Mas é uma iniciativa de um Deus que se doa: é um desejo de Cristo que é primordial”.

 

O documento fala à Igreja Católica nos Estados Unidos de maneira particular. Primeiro, aborda o fato de que em alguns círculos americanos, o tradicionalismo litúrgico, o sentimento teológico anti-Vaticano II e a oposição ao Papa Francisco se tornaram um. Esses grupos não são secretos ou independentes das autoridades eclesiásticas: ao contrário, eles contam com o apoio de alguns bispos locais e estão bem representados no establishment católico estadunidense. Por exemplo, uma conferência litúrgica com um sabor distintamente tradicionalista e restauracionista ocorreu na arquidiocese de San Francisco no final de junho. Organizada pelo arcebispo de San Francisco, Salvatore Cordileone, o evento contou com palestrantes como o cardeal Robert Sarah, ex-prefeito de liturgia da Santa Sé, e o cardeal George Pell, ex-tesoureiro do Vaticano. Alguns bispos dos EUA desafiaram abertamente a Traditionis custodes, e isso não passou despercebido no Vaticano; o prefeito do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, o cardeal inglês Arthur Roche, tem falado muito ultimamente sobre as disputas litúrgicas, chamando-as de “uma tragédia”.

 

Segundo, Desiderio desideravi confirma que Francisco trouxe uma mudança importante no papel do papado na crise da reforma litúrgica. Ele deixou ainda mais claro do que antes que o movimento por uma “reforma da reforma litúrgica” não pode mais contar com o apoio do papado. É um afastamento significativo do que Bento XVI havia iniciado e se enraizou, especialmente nos Estados Unidos: um movimento pelo retorno da missa em latim pré-Vaticano II. O documento cita o ensinamento sobre a liturgia de todos os papas desde Pio XII – todos menos Bento XVI, que nunca é mencionado. Não é um descuido, mas um julgamento sobre os efeitos do motu proprio de 2007 de Bento XVI, Summorum pontificum. Ao mesmo tempo, Desiderio desideravi critica os defensores liberais-progressistas do Vaticano II, que muitas vezes prestam atenção apenas aos aspectos do ensinamento do Concílio daquilo que gostam. Com este documento, Francisco se confirma um verdadeiro Papa do Vaticano II, mantendo uma interpretação do Concílio que está ciente tanto dos movimentos anticonciliares em oposição ao Vaticano II quanto do risco de um catolicismo “a-conciliar” mais sutil, onde a vida da Igreja e especialmente a formação teológica é concebida como se o Vaticano II nunca tivesse acontecido.

 

Terceiro, Desiderio desideravi aborda diretamente, embora não explicitamente, a crise interna da Igreja Católica dos EUA, ao mesmo tempo em que revela as preocupações de Roma sobre a recepção do Vaticano II globalmente. Francisco redescobre a eclesiologia da reforma litúrgica, mas de uma maneira diferente do Vaticano II há sessenta anos, ou do que fiz em meu livro há dez anos. O papel da reforma litúrgica e das reformas em geral mudou substancialmente desde o Vaticano II – e desde o início dos anos 2000. Na década de 1960, a eclesiologia do Vaticano II tratava de uma ideia sacramental da Igreja versus uma ideia jurídica de Igreja, a favor das aberturas ecumênicas contidas na liturgia reformada e reconhecendo a existência de ritos litúrgicos diferentes e igualmente legítimos. No início dos anos 2000, a tarefa da teologia era evitar as autoridades hierárquicas (começando com a Cúria Romana de João Paulo II e depois Bento XVI) de sufocarem as reformas litúrgicas e outras conciliares. Hoje, não é mais o Vaticano II que precisa ser defendido das garras de Roma. Em vez disso, é Roma que está vindo em defesa do Vaticano II.

 

Francisco é um centrista do Vaticano II, que coloca a reforma litúrgica nesse centro quando fala sobre o Concílio. Outras questões para as quais o Vaticano II abriu caminhos, como o ministério ordenado, são mais complicadas para ele. Mas ele está atento ao risco que enfrentamos: até onde pode ir a deslegitimação e o enfraquecimento do Vaticano II – através da rejeição da reforma litúrgica e sua eclesiologia – antes de danificar irreparavelmente a unidade da Igreja?

 

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