10 Fevereiro 2022
“Legítima, quase comovente, a confissão de fé de Ratzinger - que, afinal, consegue conceder à misericórdia do Filho uma espécie de primazia sobre a justiça jurídica de Deus. A vida espiritual nunca cessa de fazer crescer o homem interior, mas quanto teria ajudado anos atrás essa nova disposição alcançada - por exemplo, quando a censura da Congregação para a Doutrina da Fé, sob sua liderança, travou uma batalha ímpar contra a teologia da libertação latino-americana”.
A opinião é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 08-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Agradecimento, defesa, confissão. Essa é a cadência da carta divulgada hoje, na qual Bento XVI toma pessoalmente posição sobre os acontecimentos ligados à publicação do Relatório sobre os abusos na diocese de Munique, da qual foi arcebispo por cinco anos.
Seu agradecimento vai para os amigos e colaboradores que o ajudaram a ler a enorme documentação enviada pelo escritório de advocacia bávaro, responder às perguntas apresentadas e redigir a resposta que foi enviada.
Defesa dele e daqueles que trabalharam com (para?) ele nessa conjuntura: a afirmação presente na resposta, de que o então arcebispo de Munique não estivesse presente em uma reunião do Ordenariado em que se tratou de um padre acusado de abusos sexuais, foi um descuido e não um ato de má-fé.
A confissão diz respeito à intimidade espiritual de Ratzinger, à persuasão da fé que se aproxima do encontro com Deus e do seu juízo. A liturgia eucarística - escreve o papa emérito - "diz-me de modo consolador que, por maior que possa ser a minha culpa hoje, o Senhor me perdoa, se eu com sinceridade permitir que ele me examine e eu estiver realmente disposto à mudança de mim mesmo".
Engastado nessa confissão de confiança em saber-se perdoado por Deus, aparece um parágrafo dedicado aos sobreviventes que sofreram abusos e violências nas mãos do pessoal eclesiástico:
"Em todos os meus encontros, especialmente durante as muitas viagens apostólicas, com as vítimas de abusos sexuais por parte dos sacerdotes, olhei nos olhos as consequências de uma grandíssima culpa e aprendi a entender que nós mesmos somos arrastados nessa grandíssima culpa quando a negligenciamos ou quando não a enfrentamos com a necessária decisão e responsabilidade, como muitas vezes aconteceu e acontece. Como naqueles encontros, mais uma vez só posso expressar minha profunda vergonha, minha grande dor e meu sincero pedido de perdão a todas as vítimas de abusos sexuais. Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica. Maior é a minha dor pelos abusos e erros ocorridos durante o tempo do meu mandato nos respectivos locais. Cada caso de abuso sexual é terrível e irreparável. Para as vítimas dos abusos sexuais vai minha profunda compaixão e lamento cada caso”.
Legítima, quase comovente, a confissão de fé de Ratzinger - que, afinal, consegue conceder à misericórdia do Filho uma espécie de primazia sobre a justiça jurídica de Deus. A vida espiritual nunca cessa de fazer crescer o homem interior, mas quanto teria ajudado anos atrás essa nova disposição alcançada - por exemplo, quando a censura da Congregação para a Doutrina da Fé, sob sua liderança, travou uma batalha ímpar contra a teologia da libertação latino-americana.
E, além disso, como essa confissão de fé ressoa para os corpos que foram violados por homens da Igreja? Porque esta é a pergunta decisiva, inclusive para a intimidade da fé e sua firme persuasão. O pecador, por mais imensurável que seja sua culpa, é perdoado "porque confio firmemente que o Senhor não é apenas o justo juiz, mas ao mesmo tempo o amigo e o irmão que já sofreu ele mesmo as minhas faltas e, portanto, como juiz, ele é ao mesmo tempo meu advogado (Paráclito)".
E para a desmedida da violência, cometida na Igreja "durante o tempo do meu mandato nos respectivos lugares", o que temos de igualmente resolutivo, pacificador, definitivo? Nada, senão palavras obsoletas, sem eficácia e sem operosidade - justamente, sem graça. E quando falta a graça, o limiar entre a confiança no perdão e a autoabsolvição torna-se dramaticamente impalpável.
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Ratzinger, uma autoabsolvição? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU