06 Janeiro 2022
"Três rachaduras, nenhuma das quais pode ser consertada a marteladas. Para arrumá-las, é preciso paixão pela unidade (dos católicos, dos cristãos, de todos), da qual a sinodalidade é matriz. E quanto mais cedo for entendido que sinodalidade não é indeterminação, mas comunhão, melhor será", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 05-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existem profundas rachaduras em três grandes arcos institucionais do catolicismo: as conferências episcopais nas quais revivem os antigos concílios provinciais, os órgãos através dos quais o sucessor de Pedro exerce o seu ministério, as igrejas locais para qual o bispo é constituído vigário de Cristo. Mais difíceis do que os temas dos noticiários do dia a dia da igreja - compostos de viradas do papa, de inimigos do papa, de esforços do papa - elas marcarão a agenda da igreja.
A primeira rachadura atravessa a Europa eclesiástica e é assustadora.
A Igreja da França foi incinerada, em uma tentativa desajeitada de restauração (como Notre Dame...). Ter calculado estatisticamente (sic!) que desde o pós guerra cerca de 250 mil abusos poderiam ter sido cometidos pelo clero católico, dos 5,5 milhões de casos estimados no país para o mesmo período, obrigatoriamente tinha que deixar claro que o abuso de crianças é o lado mais impiedoso de uma ferocidade patriarcal, coberta por silêncios coniventes antigos e modernos, difundida em todas as camadas sociais. E em vez de se perguntar qual teologia do ser masculino e do padre tenha impedido a denúncia ou o reconhecimento desse mal, os dados da comissão de Sauvé tornaram-se ocasião para vazias expressões de "vergonha", refrãos sobre "tolerância zero" e para apostas arriscadas sobre a possibilidade de elevar a suspeita a exorcismo do demônio do silêncio cúmplice.
A Igreja alemã não está em melhor situação. O caminho sinodal, em vez de assumir uma agenda de penitência e unidade, abriu tensões internas e forneceu a Roma o pretexto para que lhe enviassem advertências inúteis ou exasperantes, ou ambas. Assim, no vazio deixado por aquele gigante teológico e político que foi o cardeal Lehmann, com o primeiro governo federal composto inteiramente por ateus, o pulmão intelectual da igreja se expressa com golpe de cena como a (falsa) renúncia do cardeal Marx ou os delírios (verdadeiros) do Cardeal Müller.
A Igreja polonesa está perdendo fiéis e credibilidade por todos os lados: prelados que se sentiam intocáveis desabaram sob os golpes de dois filmes dos irmãos Sekielski sobre os abusos. Mas os sobreviventes da limpeza pós-wojtyliana são obcecados antieuropeístas que exaltam a "continuidade biológica" das nações e que definem as direitas polonesas, homofóbicas e anti-imigrantes, "uma bênção de Deus", e dão o tom para os bispos rebaixados a capelães das democracias centro-europeus.
De modo que a Igreja italiana - que tem dezenas de bispos dedicados em tempo integral a denegrir os que estão nas cadeiras onde se viam ou se sentavam eles mesmos - é a única que ainda tem uma própria corporalidade: e, se não reduzir o sínodo a uma mera reunião, talvez possa resistir aos impulsos autodestrutivos e às seduções fascistas (talvez).
A segunda rachadura está na cúria.
Aguarda a promulgação de uma reforma que, depois da bula que a precede, merece o juízo muito severo com que Eugenio Corecco enterrou a anterior: "sem alma eclesiológica" e, portanto, incapaz de conter prepotências e insuficiências. Espera que pare de uma vez o sistema de inspeções que acionam expurgos pare onde poderia haver só prejuízo para o erário. E aguarda o resultado do processo do cardeal Becciu, que de certa forma terminou quando o papa teve que fazer quatro leis ad hoc para continuá-lo: por outro lado, a ilusão de produzir "mais" justiça colocando o promotor de Mafia Capitale como presidente do tribunal e um advogado de defesa daquele processo para sustentar a acusação com interrogatórios de textos passíveis de chantagem, é algo que despertou admiração em todas as chancelarias do mundo.
A terceira rachadura é a mais fina, mas a mais grave e diz respeito à doutrina do episcopado. O Vaticano II ensina (infalivelmente) que todo bispo se torna sucessor dos apóstolos pela consagração que recebe e não pelo mandato que o papa lhe confere. Hoje tal doutrina não é contestada: desbotou.
A história de D. Aupetit, ex-arcebispo de Paris, é exemplar: uma vez que foram descobertos os casos amorosos de seu passado, não se demitiu, dizendo que quem calou o que sua consciência lhe censurava não pode ensinar a liberdade cristã. Ele "entregou de volta o mandato ao papa", como se fosse um prefeito. E o papa, em vez de depô-lo por pusilanimidade, aceitou sua renúncia, dizendo, porém, que o fazia "no altar da hipocrisia": porque viu naquele caso o desfecho de uma "fofocagem" mais poderosa do que a verdade. Episódio não único, mas emblemático de uma redução e autorredução dos bispos a funcionários da justiça papal com consequências incalculáveis, porque é um "torpe axioma", diria Pio IX, pensar a Igreja desta forma.
Três rachaduras, nenhuma das quais pode ser consertada a marteladas. Para arrumá-las, é preciso paixão pela unidade (dos católicos, dos cristãos, de todos), da qual a sinodalidade é matriz. E quanto mais cedo for entendido que sinodalidade não é indeterminação, mas comunhão, melhor será.
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As três rachaduras na Igreja. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU