Para ex-ministro da Justiça Tarso Genro, uso de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública é ilegal e mais um crime de responsabilidade de Bolsonaro.
A reportagem é de Cláudia Motta, publicada por Rede Brasil Atual, 14-09-2021.
O Habite Seguro, programa habitacional lançado nesta segunda-feira (13) pelo presidente Jair Bolsonaro para agentes da segurança pública, pode não sair do papel. “É uma ilegalidade gritante, uma manipulação de verbas públicas e uma violação das leis que regulam a execução orçamentária. Seguramente, vai ter uma manifestação ou do Tribunal de Contas, ou da Procuradoria perante a Justiça, para que seja suspenso esse programa.” A avaliação é do ex-ministro da Justiça (2007/2010), o jurista Tarso Genro. Isso porque os subsídios e repasses ao programa usariam R$ 100 milhões de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), ligado ao Ministério da Justiça.
O FNSP, de acordo com o site do próprio ministério, foi criado “para apoiar projetos na área de segurança pública e prevenção à violência, enquadrados nas diretrizes do plano de segurança pública do Governo Federal”. E, para isso, conta com um conselho gestor, que administra o fundo, de forma que seus recursos sejam “destinados a reequipamento, treinamento e qualificação das polícias civis e militares, corpos de bombeiros militares e guardas municipais; sistemas de informações, de inteligência e investigação, bem como de estatísticas policiais; estruturação e modernização da polícia técnica e científica; programas de polícia comunitária e programas de prevenção ao delito e à violência, dentre outros”.
Portanto, é para essa ilegalidade que alerta o ex-ministro Tarso Genro. “Trata-e de uma visível ilegalidade, porque o FNSP foi instituído por lei. Desse modo, tem um conselho gestor que deve apreciar e deferir ou indeferir projetos relacionados com a segurança pública quem venham dos entes da União. Ou seja, as finalidades do fundo estão expressas na lei”, afirma.
“Mas uma eventual regulamentação não pode ampliar nem reduzir as finalidades que estão dispostas na lei. Se fizer isso, será a alteração de uma lei por um decreto, absolutamente inconstitucional. E as finalidades do fundo são claras: o projeto tem de ter vínculo com a segurança pública. Seja para a formação de policiais, seja para a instituição de projetos de segurança comunitária. Ou seja , também, de apoio material às guardas municipais, à polícia civil, às polícias militares, vinculados a projetos de segurança pública. Isso que está sendo apresentado é um projeto habitacional e eleitoreiro”.
Na cerimônia de lançamento do Habite Seguro no Palácio do Planalto, Bolsonaro discursou. “Entendemos que pode, sim, atingir uma grande parte desse efetivo da segurança que arrisca a sua vida em defesa da nossa vida e do nosso patrimônio”, disse, sobre o programa que vinha prometendo a policiais há algum tempo, em mais um aceno à parte significativa da sua base eleitoral. Além dos subsídios de até R$ 300 mil, o Habite Seguro entregará também recursos do FNSP para que os agentes de segurança possam abater das taxas de contratação, segundo reportagem da Folha de S.Paulo.
Bolsonaro discursa em cerimônia de lançamento do Programa Habite Seguro. (Foto: Alan Santos/PR)
Num país com tanta carência de moradia digna, é difícil tecer críticas a um programa habitacional e, de fato, não é disso que se trata, explica Tarso Genro. “Esses programas habitacionais destinados a categorias são possíveis de ser implementados pelo governo. Desde que sejam implementados pelos órgãos específicos ligados à promoção de habitação e, assim, que tenham recursos destinados a ele dentro das prerrogativas que a lei que regula as políticas habitacionais permitam”, explica o ex-ministro.
“Fazer um programa específico para servidor público federal, estadual, com juros subsidiados, destacados precisamente dentro de uma política habitacional universal, não é proibido. Mas que seja feito com apoio na legalidade”, diz Genro. Desse modo, a ilegalidade do Habite Seguro está em tirar dinheiro de um fundo que não tem essa destinação.
Para Josué Rocha, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), os policiais estão entre os servidores públicos com baixa remuneração que deveriam ter apoio do governo federal para aquisição de moradias. “No entanto, esse benefício deveria ser estendido aos demais servidores públicos e não ficar restrito a uma única categoria”, avalia.
Segundo o MTST, o déficit habitacional no Brasil é 5,8 milhões de moradias, o que engloba o ônus excessivo com aluguel, a coabitação, a moradia precária. Assim, afirma o integrante do MTST, o programa anunciado por Bolsonaro é insuficiente. “Destina um subsídio muito pequeno, principalmente para a faixa de renda mais baixa. Bolsonaro tenta acenar à sua base, mas com um programa insuficiente.”
E há outros caminhos para promover programas habitacionais, que não usar os recursos do Fundo de Segurança Pública, outra área que carece tanto de atenção no Brasil. “Tem, por exemplo, cooperativas que podem acessar e aplicam esses recursos para uma determinada comunidade, numa determinada região, ou para uma categoria profissional, privada ou pública, que se habilite com projetos factíveis que sejam absolutamente transparentes para que as outras corporações, as outras categorias, possam também aplicar’, reforça Tarso Genro. “Mas isso é política habitacional, não é política de segurança pública. Por isso tem um erro grave nessa proposta que é na minha opinião absolutamente eleitoreira, irresponsável e “provisória”. Açodada como todos os projetos que vêm desse governo ilegítimo e genocida que está aí.”
A relação que Bolsonaro está manejando com as forças de segurança do país é outro problema grave embutido na criação do Habite Seguro. “Essa decisão do governo está inscrita precisamente nesse cortejo. Nessa corte que o governo está fazendo do sistema policial militar, do sistema de polícia civil e das próprias Forças Armadas. Para trazer para o leito da política do governo o apoio dessas corporações visando manter o regime de exceção a que nós estamos submetidos”, critica o ex-ministro da Justiça. “Isso é visivelmente uma ação de subversão política da Constituição, que o governo está fazendo. Desta feita, utilizando de maneira falsa a política habitacional socorrido em fundos que não são destinados a políticas habitacionais.”
Para Tarso Genro, a exceção foi sendo aplicado de maneira progressiva no país e explica a existência e permanência de Bolsonaro no poder. “Ela começou a ser aplicada antes das eleições, quando o atual presidente da República declarou seu voto no impeachment da (presidenta da República) Dilma Rousseff. Apoiando a tortura e consagrando a propaganda da violação, da violência, a propaganda do estupro, como ele fez naquele momento, Bolsonaro deveria ter sido cassado e preso”, assevera o advogado. “E as instituições, embaladas por todos os meios de comunicação tradicionais, estavam em uma campanha criando uma ilusão de que a solução do país era retirar o PT do governo.”
O ex-ministro responsabiliza o “sistema de comunicação privado no Brasil, que pertence a meia dúzia de famílias”, pelo atual estado de coisas. “Ele se irmanou com essa vocação fascista que o Bolsonaro instituiu como linha de governo, negociando com ele o apoio às reformas. E isso foi cumprido pelo governo. Tanto é que eles atacam o Bolsonaro pelo seu autoritarismo político, pela sua postura fascista, pela sua visão genocida e negacionista, mas ressalvam o Guedes (Paulo Guedes, ministro da Economia). E o Guedes está pelas reformas.”
Esse “conluio”, avalia Tarso Genro, está finalmente sendo desmontado. “E com a saudável resistência agora do Poder Judiciário, o que é muito importante num momento como esse. Esse bloqueio que o Poder Judiciário fez de determinadas medidas, e continua fazendo, tem uma importância estratégica para recuperar Estado de Direito formal que foi conquistado com a Constituição de 1988.”
Quando fala sobre as atribuições do FNSP, o site do Ministério da Justiça e Segurança Pública elenca as atribuições também do conselho gestor do fundo. Tarso, no entanto, afirma não ter informação sobre o pleno funcionamento desse conselho. “Os conselhos todos dos fundos, no governo Bolsonaro, não tiveram que eu saiba nenhum funcionamento regular. O próprio presidente extinguiu uma série de conselhos que tinham a participação das comunidades políticas, de representação das categorias, das comunidades interessadas”.
Para o ex-ministro da Justiça, no entanto, a questão é que a criação do Habite Seguro, da maneira como foi divulgado, “pega dinheiro do Fundo de Segurança Pública e isso é tão grave quanto quaisquer dos crimes de responsabilidade que o presidente cometeu até agora”, diz. “E me parece que está sendo feito por ordem direta dele (Bolsonaro) nesse cortejamento inconstitucional que ele está fazendo para politizar as polícias no sentido fascista que ele empresta ao seu governo”.
O Habite Seguro encerra ainda mais uma questão que vem sendo denunciada pelos bancários, em especial pelos empregados da Caixa Econômica Federal. O uso político que está sendo feito do banco público e que pode ter como pano de fundo uma disputa entre o presidente do banco e o ministro da Economia de Bolsonaro. Técnicos do ministério foram contrários ao programa.
“São várias as denúncias que temos feito e que somente agora estão sendo apresentadas pela grande imprensa. Acreditamos que tem a disputa entre o Pedro Guimarães e o Paulo Guedes”, relata Sérgio Takemoto, presidente da Fenae, federação que representa os trabalhadores da Caixa. “No programa que está sendo lançado para os policiais, mais uma vez o governo está usando a Caixa e recursos da União para fins políticos. E nesse caso, para beneficiar a base de apoio do bolsonarismo, em detrimento de toda a população”, critica.
No lançamento nesta segunda-feira, o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, informou que o programa habitacional “não é só para o grupo que ganha menos. Qualquer um pode receber” as vantagens oferecidas pelo Habite Seguro. A informação foi confirmada pelo atual ministro da Justiça e Segurança Pública, o delegado da Polícia Federal Anderson Torres. O ministro também informou que a partir de 2022, além dos recursos do FNSP, o programa vai contar com emendas parlamentares.
Da esquerda para a direita: o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres; o presidente da República, Jair Bolsonaro; o vice-presidente, Hamilton Mourão e o ministro da Economia, Paulo Guedes na cerimônia de lançamento do Programa Habite Seguro. (Foto: Alan Santos/PR)
“Todos devem ter direito ao acesso à moradia e não privilegiar apenas uma categoria. Mas o governo excluiu a população mais pobre desse país”, lembra Takemoto, com a extinção do programa Minha Casa Minha Vida. O Casa Verde e Amarela de Bolsonaro acabou com os subsídios para a Faixa 1, que atendia famílias com renda de até R$ 1,8 mil.