12 Janeiro 2018
Esse texto faz parte da investigação Maternidades Emancipadas, organizado por Ana Cifuentes Ponce – Quito/Equador. Foi ganhador do edital para projetos artísticos e culturais 2016-2017, do Ministério de Cultura e Patrimônio do Equador e pode ser acessado em Maternidades X – Duas feministas brancas, acadêmicas, cisgêneras e praticamente heterossexuais, uma de família rica em decadência e a outra de classe média baixa emergente, encontram-se num bar no sudeste do Brasil. Uma tem filhos crescidos, a outra não tem filhos. Bebem algumas garrafas de cerveja multinacionalizadas custando R$ 12,50 cada uma. Elas fazem parte de um sistema de trabalho cognitivo precarizado e disputam o capital cultural com muita gente (disputa acirrada e violenta). Tentam cada uma ao seu modo construir um caminho próprio (singular). Estão inseridas nas questões contemporâneas, preocupadas com a política atual, com o futuro da humanidade e com seu próprio lugar no mundo. Faz um tempo que não se vêem, não são dadas a conversas pequenas.
A crônica é de Fabiane M. Borges e Milena Durante, publicada por OutrasPalavras 01-12-2017.
Simone: Amiga, que saudade. Como você está?
Dona: Estou na maior crise do mundo. Perdi o macho. Não fiz filhos, nem família. Estou ficando velha. Vou morrer sozinha e seca em um apartamento, solitária que nem essas senhoras que são encontradas um mês depois de mortas em Viena. Sabe?
Simone: Calma que perder o macho não é um drama tão grande assim… E sempre vira um ótimo recomeço, novos passos numa direção que não seja a de exercer uma outra maternidade, mais difícil e, ainda por cima, sem as graças de ver a criança crescer: ficar cuidando de macho – consolar, dar de mamar, arrumar a grande quantidade de caos que fazem ao redor da nossa vida. Mesmo que saibam colocar a roupa na máquina. Perdi vários e, na real, não perdi nada. Quanto mais tempo sozinha, mais forte me senti. Sozinha, claro, vamos morrer. Mas secas, meu bem? Eu duvido, ahahhaha. E ser achada morta um mês depois, qual diferença? Já estaremos mortas mesmo. Você acha que sou menos sozinha do que você por causa dos meus filhos? Eles adoram a ideia de ter uma mãe feminista que não aparece nem no Natal. Falam de mim pros amigos com certo orgulho mas não fazem mais questão da minha presença. E eu, sinceramente, também já não faço mais, inclusive para não ter que viver a maternidade quase integral pela segunda vez, sendo a avó que cuida dos netos como se não tivesse vida própria.
Dona: Acho que isso tem a ver com a solidão do feminino. A gente perdeu a característica máxima da nossa utilidade, quando resolvemos não ser mais as cuidadoras. E na medida que caminhamos para um modelo cada vez mais individualista, capitalista e competitivo, esse papel vai se perdendo, até chegar a um ponto em que ninguém mais vai cuidar de ninguém. Só as máquinas médicas e os teóricos do “care”. Mas por enquanto, as mulheres que não “cuidam” dos seus bebês, companheiros, velhos, famílias, carregam um tipo de maldição além da solidão geral, uma maldição punitiva, que restringe suas alianças: “Por não cuidar, serás abandonada”. Sendo que os homens geralmente não sofrem essa punição por não cuidar. E mesmo que sofram, na maioria dos casos podem ser confortados em sua solidão mesmo sendo machistas, pais presentes ou ausentes, ricos ou pobres, autocentrados e patéticos. Sempre há alguém para consolar a culpa dos homens. Isso é machismo estrutural. Talvez isso esteja mudando com a força do feminismo, mas este às vezes funciona num acoplamento sintomático com capitalismo global, como se lutássemos por nossa própria servidão, quando nos afastamos do cuidado da família tradicional mas nos prendemos à “família global” da internet vigiada por robôs, administrando nossa solidão e carência com Facebook. De modo que se o feminismo não investir rapidamente na criação das famílias alternativas, das comunas, enfim, reverter essa lógica individualista, vamos todas e todos acabar nos tanques da matrix morrendo sufocados com nossa própria placenta super inflacionada pelo mercado.
Simone: Sim, é isso mesmo. Esse machismo estrutural é o que determina que os postos de cuidado na sociedade, que são ocupados por uma grande maioria de mulheres, sejam vistos como papéis secundários, sem valor no mercado. Criar filhos, cuidar da família, cuidar dos velhos, doentes, do psíquico, deveriam ser os papéis mais importantes, porque deles dependem a vida. Nesse sentido, é lógico que o feminismo vai apontar esses espaços como espaços de opressão, como Silvia Federici, desvalorizados socialmente, e que precisam ser repensados. Colocar o fardo do cuidado nas costas das mulheres é de um profundo oportunismo, um mal caratismo de gênero. Essas discussões são importantes para ir minando esses machismos estruturais, muitas vezes tidos como “naturais”. O reconhecimento final é insignificante, mas sempre vai ter um filho, um marido feliz parabenizando a “cuidadora” que foi uma mulher que ensinou muito, que abriu mão de tudo pra cuidar de todos. Impedir as mulheres de construir o mundo, para se ater à reprodução e cuidado, desvalorizando totalmente esse trabalho, é uma picaretice histórica imperdoável. E isso se prolonga com a relação dos pais e mães divorciadas, por exemplo. Eles usufruem de muito mais liberdade, e sexo, afeto, cuidado e “perdão” lhes é muito mais acessível. Por isso penso que é mais vantajoso procriar e cuidar a partir da perspectiva do pai, mesmo quando com guarda compartilhada.
Dona: Ahahahaha! Sem dúvida o pai tem um papel mais tranquilo, porque apesar das cobranças atuais da paternidade compartilhada e da divisão dos serviços domésticos, em larga escala isso ainda nem se compara aos da mulher. E eu não me importaria nem um pouco de ser provedora de várias famílias, se caso tivesse condições materiais e afetivas para isso, e se as famílias estivessem de acordo. Mas a coisa do oportunismo é que pesa!! Se matar para para criar os outros e esquecer de si, parece injusto para quem vive. Como se toda a potência de um corpo, de um espírito, fosse gasta na promessa de futuro do espírito e do corpo do outro, e não na construção do mundo e de si no mundo. Claro que as mulheres se permitiram tanto tempo de exploração porque são alimentadas pela lenda do gene. Da eternidade do sangue. Da extensão da sua própria vida. Mas daí, quando olhamos para a bolinha azul lá de cima da órbita, é tão evidente que somos uma mescla genética com suas derivações específicas, fazendo gambiarras no tempo e que estamos entrelaçados por uma condição multitudinal, que não tem a ver só com um corpo. É uma ilusão, uma ilusão patriarcal a da extensão do eu nos filhos, é um projeto de propriedade e herança.
Simone: Exato. É a grandessíssima ilusão de deixar um pedaço de si para o futuro, como se existisse um si: ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro, as contribuições que temos que dar para esse mundo. Só que é bem dessa lógica de hierarquização genética supremacista que vem todo o racismo e a diferenciação “nós-outros”. Minha família que eu protejo, os outros que eu mato. As crianças nem cresceram e já dizemos a ela: “quando você casar e tiver filhos…” Estamos já planejando os filhotes de nós que irão massacrar os filhotes dos outros, mesmo se não estivermos nos dando conta disso. Ou fingindo que não damos. Enquanto tudo ficar em família, vai ser assim. Por que família é tão necessário para criar uma criança? Pra quê precisamos dessa máquina de neurose? Por que entre amigos não podemos adotar, fazer alianças de responsabilidade e afeto mais múltiplas que as possibilidades de um casal, ainda que não hétero normativo?
Dona: Então, a ideia de comuna faz muito sentido como resistência a um plano de super controle e individualização. Ainda mais nessa época de câmbios climáticos, antropoceno e todas essas coisas. Estamos em uma espécie de momento divisor de águas, onde os donos do mundo vão apresentar todo o roteiro das novas formas de vida, não sem antes criarem mais ferramentas que promovem a guerra generalizada entre grupos e ideologias, que facilita o desentendimento entre as pessoas e o vício de opinião sem ética ou profundidade. Esse roteiro provavelmente investirá ainda mais na desconfiança e na competição como plataforma de todo o funcionamento social. Para sair dessa armadilha, pelo menos temos que propor outras alternativas, inclusive para cuidar das nossas crianças, dos nossos velhos, e de nós mesmas, fazendo alianças, comunas, criando espaços de cuidado e crescimento pessoal, criando singularidade nos nossos modos de vida. Esse modelo patriarcal é muito difícil de manter porque pressupõe a desistência de si. E geralmente essa desistência de si é feita pelo lado mais fraco, seja por gênero, raça, classe.
Simone: Estamos mesmo em um grande momento de transição, e a transição parece ser em direção ao fim do mundo. Mas enquanto estivermos vivas, as comunas seriam mesmo uma possibilidade. Tendo a pensar em outros lugares que não as grandes cidades, que já se esgotaram engolidas por especulação, rios de merda, prédios super lotados, desigualdade, essas solidões das mortes isoladas nos apartamentos minúsculos, com janelas para o fundo. Espero apenas que a gente não vá para Marte colonizar lá da mesma forma, mas já sem esperança porque ao que tudo indica é isso mesmo que vai acontecer.
Dona: As ideologias que vão colonizar Marte são as desse sistema atual. Toda a campanha está sendo feita para isso, para a exploração de recursos minerais, construção de ambientes corporativos e sociedade subserviente. O que pode ser interessante é a disfuncionalidade de Marte. Eu tendo a olhar pelo lado positivo. Como as circunstâncias serão adversas e a instalação das primeiras colônias muito precárias, dentro da cultura do it yourself que eles têm que ter de qualquer modo, pode ser que surja a resistência. Gosto de pensar assim, para pensar que resistência é algo que não morre. Pode até se matar entre si mesma, mas não morre. Ou seja, é preciso preparar as bases de autonomia espacial e encarar de peito aberto que nossas perspectivas estarão disputando os outros planetas também. Já temos laboratórios de satélites livres, ou projetos de construção de foguetes ligados à sociedade civil e universidades. Mas provavelmente antes disso vão chegar muitos soldados e soldadas das corporações em Marte. Mas lá, eles estariam preocupados com a procriação?
Simone: Sim, e muito. Eu estava vendo esses dias no site do projeto Mars One uma matéria em que eles se perguntavam porque tão poucas mulheres se envolviam nesse projeto e como eles poderiam envolvê-las em maior número? E por quê? O interesse em colocar mulheres no espaço quando a possibilidade de colonização era pequena também era pequena, não é mesmo? Mas agora eles querem as barrigas das mulheres jovens, em idade de procriação, e crianças também. Sugerem o envolvimento das escoteiras, as boas meninas. Porque precisam das pessoas que as mulheres vão produzir e de quem vão cuidar ad eternum e no universo inteiro, não só na Terra. As mulheres são máquinas de produzir gente e cuidar delas de graça até que possam crescer por si para trabalharem e virarem novas máquinas de (re)produção. Fico alegre com a tua esperança nessa resistência extraterrestre e me esforço também pra isso.
Dona: Mas eles estão impedindo as “multidões queers” de tomarem o Espaço no Mars One? Ou será que vai começar a ter exportação de setores empobrecidos mas com capacidade reprodutiva, não importando seu gênero ou raça, desde que sejam capazes de fazer bebês?
Simone: Claro, acho que sim. Acho que estão planejando machos e fêmeas para reproduzir. Acho que nessa fase não devem estar pensando exatamente nisso, em exportação de pessoas pobres em específico, pois imagino que deva haver muitos voluntários ainda. Mas talvez depois que uma ou outra coisa comece a não funcionar tão bem como o planejado, será que não vai virar um tipo de alistamento? “Você que tem ou vai completar 18 anos…” E aí certamente as mulheres também precisarão ser convocadas, recebendo um soldo que lá não vai valer porra nenhuma, pelo menos no início. Porque não tem volta, né? Não tem como voltar de lá ainda, pelo menos nesses primeiros projetos.
Dona: Sim, ainda não tem como voltar, os foguetes reutilizáveis do SpaceX ainda não estão preparados para viagens tão longas. Mas isso vai acontecer. Com muito recurso terrestre no início. Mas no filme sci-fi Elysium, os pobres ficam na Terra, que é administrada por robôs-soldados, subordinados aos ricos que ficam em órbita. A tendência também é essa. A grande questão será, que resistências se farão quando os filhos de Marte começarem a se revoltar com os modelos impostos nas primeiras colônias espaciais? No caso do planeta Terra, as corporações já andam se juntando para decidir a programação e o design desse novo mundo quente, com florestas devastadas, e com suas empresas comandando o curso dos rios. A grande freada nos modos de produção de tecnologia ainda não está acontecendo, mas já faz parte do projeto começar a criar vazão para os outros planetas. Não sei quanto tempo vai demorar, mas a onda está forte. Eles prometem “daqui a 20 anos”, mas já existem alguns protótipos de condomínios orbitais na Terra.
Simone: Pois é, as novas gerações poderão sim se revoltar e resistir. A resistência não morre, sempre que tiver poder, haverá resistência, concordo com você, sim. Mas também continuamos lá, na nossa prospecção, como continuamos aqui: sem utopia, vivendo a distopia, e ainda tentando criar heterotopias. A colonização do espaço seria uma heterotopia radical em termos de topos, de lugar. Mas e em termos de hétero? Hahaahhahahh! Seria mesmo outro topos, outro lugar, uma heterotopia de fato ou homotopia? Tô aqui esperando que você me convença.
Dona: Dizem que os projetos não começaram ainda porque o corpo humano não resiste à pouca gravidade de Marte, pois enfraquece e envelhece com velocidade. Por isso há todo um empreendimento agora, no transumanismo e na engenharia genética, para eliminação de doenças e retardamento do envelhecimento. Faz tudo parte de um mesmo processo ideológico de otimizar a vida. Vivendo mais tempo, com menos doenças, os corpos resistiriam mais às tribulações atmosféricas e das viagens espaciais. Tem um filme meio bobinho hollywoodiano, mas que é bom para pensar, o The Space Between Us de 2017 que é feito em cima disso, a primeira criança produzida em Marte. Ela cresce adequada às características climáticas e gravitacionais de Marte, e quando vem à Terra, seu coração não resiste à força da gravidade, tendo que voltar a morar lá. A ficção já está fazendo essas colônias há bastante tempo, resta pouco para começarem a se atualizar na realidade. Nesse filme, a mãe morre no parto, e ele é “cuidado” pela tripulação. E… Se fizermos esse paralelo entre Marte e Terra, vemos que as coisas se reconfiguram. Marte é vazio e devastado. Já passou por seu apocalipse. Está sendo reinvestida a vida lá. A Terra é cheia de humanos e biodiversidade, mas está passando por uma Martirização (e aqui o nome é propício) … Então se pensarmos em questão de classe, ou de povos explorados, talvez ter filhos seja a coisa mais importante no processo de reversão… Mas, pensando aqui: será que o que estamos falando é que há uma necessidade e exigência de que as mulheres brancas, eurodescendentes, hegemônicas, cisgêneras, heterossexuais, privilegiadas, herdeiras do patriarcado colonizador, parem de se reproduzir para que as comunidades subalternizadas possam reinverter a ordem política global?
Simone: Oxi. A gente retorna à mulher precisando engravidar pra salvar alguma coisa e agora não é mais só ela mesma a ser salva, mas todo o futuro. Ao mesmo tempo que sim parece uma boa ideia que as brancas parem de se reproduzir de uma forma geral, também é absolutamente injusto colocar esse encargo sobre as mulheres não brancas, mais uma vez, a grande responsabilidade da reprodução. É sempre pesada essa responsabilidade da reprodução sobre as mulheres. Não adianta mudar de planeta se o patriarcado for junto. E ele sempre vai. As mulheres todas pararem de ter filhos poderia ser uma coisa a ser feita. Todas. A anti-maternidade. O que também não resolveria tudo em termos de presente, mas ia estancar um futuro, pelo menos esse futuro patriarcal aparentemente inevitável no qual não se quer viver.
Dona: Me referia à anti-maternidade das brancas como um movimento de resistência ao domínio patriarcal e colonizador branco, gerando com essa negação a ter filhos, mais acesso às comunidades exploradas e subalternizadas nos espaços de produção e poder. Seria como dar um tempo na reprodução genética branca para que outras populações tomassem esses espaços, através da procriação, promovendo mais equilíbrio nos postos de controle do mundo. Mas você fala que isso não mudaria o estado de opressão para as outras mulheres, e provavelmente não resolveria o problema do patriarcado. Hummm…
Simone: A questão de classe seria afetada mas o patriarcado sairia ileso, a meu ver. Aí, em tese poderia entrar de novo a anti-maternidade total até acabar com ele. Mas conhecendo o patriarcado como a gente conhece, não te parece quase impossível isso acontecer e as mulheres serem simplesmente estupradas, engravidadas à força como se dá e se deu em todos os processos de colonização? Até que ponto as mulheres conseguiriam resistir à gravidez de um modo geral? E, nessa greve de parto, a violência do patriarcado talvez não somente aumentaria em vez de ser contida?
Dona: Em alguns anos de infertilidade, como no filme Children of Men de 2006, os humanos começariam a ficar desesperados, e trabalhar em laboratórios para criar alternativas à gravidez uterina. Provavelmente isso traria muito avanço nos projetos de criação de androids, clonagem e reprodução genética artificial. Mas também começaria uma cena de tráfico, pirataria e violência, jamais vista, contra os corpos das mulheres e “a favor da humanidade”, como você está falando. Mas talvez fosse a única maneira de realmente dar um reboot na humanidade, interrompendo a máquina de reprodução humana, e por consequência a realidade do capitalismo. De outra forma isso não seria interrompido, continuando as resistências políticas do modo como as conhecemos, os sonhos revolucionários cada vez mais cooptados pela máquina de produção de capital.
Simone: Mas e se desse certo? Se não fôssemos todas e todos engolidas por essa guerra? E o movimento de anti-maternidade realmente interferisse no modo como as coisas funcionam? Uma super freada nos modos de produção e reprodução, trazendo de novo o futuro para perto de nós e o corpo e a vida como o principal valor, e não o capital! Um futuro pra se imaginar.
Dona: Esse período de anti-maternidade produziria um caos nas estruturas econômicas. Todas aquelas empresas focadas em crianças, desapareceriam em pouquíssimos meses. Quero dizer… Nesse período muitas coisas perderiam o sentido: as escolas, a indústria de brinquedos, o papel de cuidado das mulheres, os hospitais, o próprio trabalho, nada iria funcionar normalmente.
… Isso geraria uma desestruturação em todos os níveis de produção, assim como causaria uma profunda reflexão sobre o sentido da vida no planeta Terra!!!!
Pedem mais uma rodada de bebidas. Já estão se divertindo com a greve geral da maternidade.
Dona: Você acha que as mulheres suportariam não serem mães? Quero dizer, dizem por aí que não tem amor maior que esse, e se elas fossem impedidas de ser, o que sustentaria as relações por esse período antes da extinção?
Simone: Acho essa a pergunta mais difícil de hoje. De certo modo isso já está acontecendo em algum países da Europa e em alguns países da Ásia. Porque ter filhos hoje em dia está mais relacionado a classe social. Quanto mais intelectualizada e tecnologizada determinada população, menos filhos tem. Imigrantes, refugiados, as classes mais baixas economicamente, geralmente estão tendo mais filhos que as classes dominantes. Já se tem uma quantidade grande de mulheres que não estão se dedicando à maternidade, mas à construção do mundo. Claro que não é exatamente assim, e nunca sem conflito. Mas já se tem novas gerações de mulheres, que não vêem na maternidade o sentido das suas vidas. Mas que não deixam de se preocupar com outras pessoas, ou com a emancipação dos povos oprimidos. Porém uma radicalização, ou uma greve geral da maternidade, a partir do desejo comum de todas as mulheres do mundo, seria realmente assombroso no aceleramento desse processo de reboot. Caso isso acontecesse, se reiniciaria o sistema, e talvez a maternidade se tornasse algo muito mais raro e importante. Como no texto da Haraway The Camille Histories – Children of Compost, quando fala que naquele mundo a gravidez é um acontecimento numa comunidade. Que todos se tornam cuidadores, seres simbióticos, desde animais, plantas, elementos da natureza, até os mais distantes espectros culturais. Pensar então na anti-maternidade radical, sem autoritarismo nem fascismo, só seria possível se fosse a partir de uma consciência abrupta e generalizada, de interrupção no sistema patriarcal e de controle no único local onde ele realmente opera – na vida.
Dona: Sim, o reboot já estaria acontecendo na subjetividade de quem pudesse engravidar quando esse movimento de radicalização da anti-maternidade estivesse em curso. Talvez fruto de algumas gerações de um pensamento que operasse muito claramente contra um regime de dominação. Aqui penso em Medeia e Llorona, que matam os filhos antes que eles sofram a queda. Mas no caso de não parir, é anterior. É na formação de um desejo extremo de frear a máquina. Isso provavelmente seria a luta mais intensa entre o biopoder e a biopotência.
Simone: Tem um movimento anti criança no mundo de hoje – com as mães e crianças separadas, assim como velhos e loucos, cada um nas suas instituições. Existe firme e forte, e muito bem serve ao capitalismo porque tira de circulação as pessoas sem fins lucrativos imediatos, enquanto promovem com elas mais capital. Por outro lado, os projetos megalomaníacos de construção de crianças para o Estado que se teve nos regimes autoritários. Crianças enfiadas em hospitais infantis desde o nascimento, depois em escolas disciplinares, para servir aos projetos de guerra. Ou ainda hoje em dia, as fertilizações artificiais com genes desconhecidos, onde a pior questão ética que se apresenta é que só as empresas sabem a proveniência dos genes, mas legalmente se tornam donas deles, então já não se trata de filhos do Estado, mas filhos de empresas e corporações, com toda sua ideologia de eugenia e racismo. Enfim, fico me perguntando como seria viver nesse mundo sem crianças de fato? Ou onde o nascimento seria um acontecimento raro?
Dona: Provavelmente teria mais engajamento na vida comum. As crianças não seriam depositárias das expectativas dos adultos, ou do uso do mercado, como são hoje em dia. As pessoas talvez se engajassem mais nas relações de convivialidade e cuidado entre humanos, e com elementos de outras espécies também, animais, plantas, minérios, florestas, e esse autocentramento humano genético se reconfiguraria, e com ele a questão do antropomorfismo se manifestaria com mais força, já que seria atribuída a outros seres a expressão do cuidado humano. A necessidade de produção e consumo também seria necessariamente revista, já que a queda seria drástica. Viveríamos com mais robôs, os projetos de ciborguezia e duração da vida seria super investido. Mas tudo em menor escala.
Simone: Quando você me diz que seriam atribuídas a outros seres as expressões de cuidado e potência humana eu penso imediatamente nas mães de cachorros, nas festas de aniversário e casamento de cachorros, gatos e bichos de estimação. Numa humanização infantil dos bichos que já está em curso. Mas por outro lado uma potência antropomórfica maior do que a antropocêntrica, com horizontalização das espécies e elementos. Possivelmente as duas ao mesmo tempo disputando as narrativas.
Dona: Provavelmente você está certa. Talvez fôssemos inundadas por uma cultura de humanização de todo o planeta, projetando sobre ele as características humanas, a fim de dar conta da nossa carência e vontade de nos eternizarmos. Mas acho que a questão das comunas, poderia voltar com mais força, mesmo tecnologizadas, mesmo pensando em desbravar novos mundos desconhecidos, mas com mais gente engajada nesse processo ao invés de somente os donos do mundo e os herdeiros da Terra. E nessas comunas, não só humanas, se dariam essas disputas por perspectivas que você fala. Por certo. Acho que de certa forma já estamos caminhando para isso, para essas comunidades alternativas, ocupas, famílias expandidas, só que ainda é pouco, e talvez esse processo precise ser acelerado, e as grandes cidades esvaziadas para o campo e pequenas cidades, com a liberação dos modos de ser e produzir, para que as pessoas se sintam à vontade, não importando onde estejam, de serem quem são, com suas sexualidades múltiplas e complexas, com suas raças, culturas, e claro, seria bom que o nomadismo fosse salvaguardado, um nomadismo feito com tempo, ao invés dessa correria turística.
Simone: Sim, essas comunas com outros modos de pensar e viver que pudessem se reorganizar por cima desse vício de colonização, e que agrupamentos com conhecimentos ancestrais como os quilombolas e os ameríndios fossem muito empoderados, fossem espaços de poder, de articulação, de construção de modos de vida, e não de pobreza, massacre e violência.
Dona: Com menos humanos e mais horizontalidade entre espécies. Por fim, ahahahha.
Simone: ahahahha, será que a gente consegue?
Dona: Não sei, mas agora já não estou com medo de morrer velha, seca e sozinha dentro de um apartamento austríaco. Museficada dentro da minha residência até me acharem anos depois, por não ter tido filhos. Agora estou com a ideia de começar a construção das comunas com você e mais esse monte de outra gente e elementos. E posso ajudar no projeto inverso da anti-maternidade, com as plantas e bichinhos.
Simone: Vamos fazer essa comunidade então, eu já estou me programando. Tinha uma outra coisa sobre o que queria te falar, mas vamos para a rua, chega desse bar. Lá eu te conto.
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