Na semana dedicada à Nossa Senhora Aparecida, historiador reflete como essa devoção mariana surge muito antes em uma religiosidade popular e que, mesmo depois de institucionalizada, segue unido as pessoas
As demonstrações dos fiéis de Nossa Senhora Aparecida, por todo o Brasil nessa semana, impressionaram. Na Basílica de Aparecida, uma multidão se acotovelava para prestar homenagens – aliás, a Basílica recebe cerca de dez milhões de pessoas por ano, segundo a administração do local. Diante de tais imagens, chega a ser contraditório pensar no decrescimento do catolicismo no Brasil e nas grandes fileiras de bancos vazios nas missas. Mas, para o historiador José Leandro Peters, a comparação é problemática por tratar de níveis distintos, pois o primeiro caso está relacionado a uma piedade popular, enquanto no outro trata-se de espaços institucionalizados. “As diversas manifestações de fé que vemos no santuário, em Aparecida ou em outras regiões, estão muito mais vinculadas ao catolicismo devocional do que aos padrões institucionais”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Peters acrescenta que “a piedade popular está relacionada ao modo como o fiel se aproxima do campo sagrado, independente das estruturas institucionais. A relação que o devoto estabelece com a Virgem, o Menino Jesus e os santos se faz de modo muito particularizado, permitindo uma variedade de formas de vivenciar a fé”, pontua. Assim, “estas ações, ao mesmo tempo, podem distanciar o sujeito da religião dogmática e aproximá-lo da vivência da fé, permitindo que ele se relacione diretamente com o sagrado”.
Por isso, é importante compreender como emerge a religiosidade popular. No caso de Aparecida, o movimento é claro. “Nos seus primeiros 150 anos de história, a devoção à Nossa Senhora Aparecida se deu sem uma interferência direta da Igreja, permitindo a emergência e proliferação de formas particulares de vivência da fé e de narrativas milagrosas sobre a Virgem. Com o processo de reforma do catolicismo brasileiro, houve uma preocupação da Igreja em registrar, selecionar e divulgar as narrativas sobre a Virgem, afirmando determinadas memórias e silenciando outras”, explica.
É nesse sentido que o historiador descola da ideia de crise de fé, ou mesmo do cristianismo. Talvez, como ele afirma, o que esteja em xeque é a forma de viver a fé, que na piedade popular é transversal e ultrapassa muros institucionais. “Não acredito que o cristianismo e o catolicismo estejam em crise. Penso que o modelo tradicional de vivência do cristianismo talvez esteja”, enfatiza. Afinal, acredita que “a Igreja esvaziada não corresponde necessariamente a uma crise da fé, mas sim a um questionamento do modelo tradicional de vivência da religião”.
José Leandro Peters
Foto: Arquivo pessoal
José Leandro Peters possui graduação, mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Seus estudos e pesquisas são relacionados às missões religiosas no sudeste brasileiro entre os séculos XIX e XX e as relações entre o catolicismo popular e a proposta de reforma religiosa empreendida pela Igreja Católica brasileira. É professor na área de História, Filosofia e Sociologia vinculado à Central de Ensino e Desenvolvimento Agrário de Florestal – CEDAF, da Universidade Federal de Viçosa – UFV. Entre suas publicações, destacamos o livro “A Mãe Compadecida do povo brasileiro: Nossa Senhora Aparecida no discurso da Igreja Católica no Brasil 1854-1904” (Curitiba: Prismas, 2015).
IHU – Como podemos compreender a conformação da piedade popular, ou catolicismo popular, no Brasil ao longo de sua história? De que forma a devoção a Nossa Senhora Aparecida se associa a esse modo de devoção popular?
José Leandro Peters – A piedade popular está relacionada ao modo como o fiel se aproxima do campo sagrado, independente das estruturas institucionais. A relação que o devoto estabelece com a Virgem, o Menino Jesus e os santos se faz de modo muito particularizado, permitindo uma variedade de formas de vivenciar a fé. Estas ações, ao mesmo tempo, podem distanciar o sujeito da religião dogmática e aproximá-lo da vivência da fé, permitindo que ele se relacione diretamente com o sagrado.
Daí emergem as simpatias, as procissões, as promessas e os milagres. Isto acontece praticamente em todos os lugares em que há a manifestação da fé por parte dos sujeitos históricos. Quanto ao Brasil, é comum entre os historiadores haver a noção de que, no país, havia uma carência de estruturas institucionais da Igreja Católica, limitando a assistência espiritual e a fiscalização das formas de vivência do catolicismo. Essa situação se aprofunda quando observamos os sertões do país, lugares em que pouco se via a presença de um representante da Igreja.
Este contexto de uma presença superficial, ou de uma ausência da instituição permitiu e estimulou a proliferação de formas particulares de relação entre os fiéis e o campo sagrado. Não havia autoridade católica para incentivar um catolicismo dogmático e fiscalizar as práticas religiosas, portanto cada um vivia a fé ao seu modo, ou seguindo as tradições familiares e locais.
O caso de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é emblemático no que se refere ao catolicismo devocional. A devoção à Virgem de Aparecida emerge de maneira espontânea em uma vila no interior do estado de São Paulo, no início do século XVIII. Naquele período, a Vila de Guaratinguetá era formada por pequenos povoados que se dedicavam à pesca e à agricultura. Não havia estruturas de poder estabelecidas na região.
O culto à pequena imagem de terracota começou na família de Felipe Pedroso e Silvana Rocha, com a reza de terços na casa da família e só posteriormente foi ganhando um caráter mais público com a construção de uma capela e com os registros oficiais do encontro e dos primeiros anos de culto. Desde 1717, as relações entre os devotos e a Virgem foram se dando de modo muito particular, marcadas por uma intensa proximidade entre os devotos e a Virgem.
Em vários momentos, houve a humanização da Virgem, atribuindo a ela sentimentos e posicionamentos terrenos, o que aproximava ainda mais os devotos de Nossa Senhora. Diversas formas de vivência da fé e devoção foram se desenvolvendo nestes 300 anos de história da Virgem de Aparecida. As procissões, as promessas, as romarias e outros rituais foram se prendendo ao histórico da padroeira do Brasil.
Seja em Aparecida-SP ou em outras regiões do país, os católicos e devotos veem Nossa Senhora Aparecida como a Mãe compadecida, aquela que acolhe, ampara e socorre em momentos de dor e sofrimento. As diversas manifestações de fé que vemos no santuário, em Aparecida ou em outras regiões, estão muito mais vinculadas ao catolicismo devocional do que aos padrões institucionais.
IHU – Hoje, como se vive um catolicismo popular no Brasil? Aliás, que manifestações podemos compreender como catolicismo popular em nosso tempo?
José Leandro Peters – Conforme pontuei na questão anterior, entendemos por catolicismo popular as manifestações religiosas paralelas às formas e aos padrões de religiosidade dogmáticos ou institucionais. A piedade popular corresponde às manifestações religiosas espontâneas, carregadas de fé e respeito, em que o sujeito que está envolvido se aproxima do campo sagrado de forma particular e de modo paralelo aos meios institucionais.
O catolicismo popular está presente no cotidiano dos devotos que se benzem ao passar diante de um templo religioso, que beijam imagens em sinal de respeito e agradecimento, que santificam ações corriqueiras do dia a dia. Além desses exemplos, podemos citar as festas religiosas, as promessas e a prática dos ex-votos [presente dado pelo fiel ao seu santo de devoção em consagração, renovação ou agradecimento de uma promessa].
IHU – Vivemos o que muitos têm chamado de crise da Modernidade, onde instituições que pareciam sólidas apresentam também suas crises. Nesse sentido, o senhor acredita que o catolicismo e o cristianismo estão em crise? Em que medida a religiosidade popular pode ser uma resposta a essa crise?
José Leandro Peters – Não acredito que o cristianismo e o catolicismo estejam em crise. Penso que o modelo tradicional de vivência do cristianismo talvez esteja. A pós-modernidade, ou o mundo líquido, como defende Zygmunt Bauman, tem como característica principal uma outra relação dos sujeitos com os bens de consumo e com as instituições. As relações são mais fluídas, mais rápidas e tendem a se transformar com a mesma fluidez e rapidez.
Entretanto, isto não quer dizer que não sejam relações profundas e carregadas de significado, ou que as instituições tradicionais não possam se adaptar a este novo cenário. Elas não só podem como também estão fazendo. Dou um exemplo: essa semana, ao assistir uma missa no Santuário de Aparecida, durante o ofertório, eis que surgiu, nos televisores espalhados pelo templo, um QR code para os fiéis ofertarem suas doações via pix. Ao andar pelo santuário, percebemos a presença de redes de TV com transmissões ao vivo para todos os públicos. Portanto, o que vejo são as instituições em constante diálogo com o tempo em que atuam, atualizando constantemente o seu discurso.
A religiosidade popular também é atualizada, pois refere-se ao modo como o sujeito se relaciona com o campo sagrado. As devoções, as correntes de oração e as promessas estão presentes nas redes sociais das mais diversas formas. As festas religiosas continuam a ocorrer. A sacralização do cotidiano ainda permanece. Ainda que os bancos dos templos estejam mais vazios nas manhãs de domingo (não tenho certeza disso, uma vez que não tenho pesquisas e dados para comprovar, apresento só uma hipótese), as relações particulares entre os devotos e a Virgem, característica primordial da piedade popular, permanecem sólidas.
IHU – No que consistem e o que revelam as críticas à religiosidade popular?
José Leandro Peters – É importante ressaltar que o que incomoda as instituições nas práticas religiosas populares é justamente a fé que move os sujeitos que as praticam. Elas têm significado e sentido no universo dos seus praticantes. Resumindo, o sujeito que faz uma promessa, ou aquele que beija uma fita que pende de uma imagem, acredita na eficácia deste ritual. Aos olhos da instituição, o grau de proximidade entre o sujeito e o sagrado no catolicismo popular abre profundas possibilidades de heresias e desvios.
Entende-se, portanto, que a linha que divide o sagrado e o profano, neste universo, é muito tênue, podendo ser transposta a qualquer momento. As críticas ao catolicismo devocional tendem a reforçar a imagem de que estas são formas superficiais de vivência da fé, caracterizadas por exageros e exterioridades e pouco sacramentais. Elas revelam uma incompreensão dos significados destes rituais para quem participa deles, ou um temor pela fé depositada neles e, em alguns casos, um certo grau de preconceito.
IHU – Voltando à devoção à Virgem Aparecida, gostaria que o senhor recuperasse a história dessa aparição, destacando o papel do próprio Império e dos redentoristas na propagação dessa devoção mariana no Brasil. Afinal, o que faz essa devoção ainda tão popular no Brasil?
José Leandro Peters – A imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi encontrada no Rio Paraíba em 1717 por três pescadores: Felipe Pedroso, João Alves e Domingos Martins. Três homens pobres, trabalhadores, religiosos e socialmente oprimidos. Depois da pescaria milagrosa, a imagem ficou guardada por alguns anos com a família de Felipe Pedroso.
Quadro com a representação dos três pescadores que encontram a imagem de Nossa Senhora.
Imagem: Acervo Basílica de Aparecida (artista não catalogado)
A devoção à Virgem dava-se de modo limitado, com reuniões para oração nos finais de semana na casa de Felipe Pedroso. Somente na década de 1730 foi construída uma pequena capela para abrigar a prodigiosa imagem e para que os seus devotos pudessem fazer suas orações. Depois destas ações, somente em meados do século XIX é que a Igreja voltou a se preocupar com a devoção à Virgem de Aparecida. Havia uma preocupação da instituição em controlar e moralizar as romarias e as diversas manifestações de fé que se faziam presentes na pequena vila do estado de São Paulo.
Compreende-se, portanto, que nos seus primeiros 150 anos de história, a devoção à Nossa Senhora Aparecida se deu sem uma interferência direta da Igreja, permitindo a emergência e proliferação de formas particulares de vivência da fé e de narrativas milagrosas sobre a Virgem. Com o processo de reforma do catolicismo brasileiro, houve uma preocupação da Igreja em registrar, selecionar e divulgar as narrativas sobre a Virgem, afirmando determinadas memórias e silenciando outras. Aparecida foi sendo apresentada como a Mãe Compadecida do povo brasileiro. Uma virgem da cor caramelo escuro que era solidária às pautas da população oprimida.
Não houve uma ação do Império brasileiro para promover a devoção ou a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Há relatos sobre a passagem de membros da família real pela Basílica de Aparecida e uma narrativa que relaciona a princesa Isabel com a coroa da Virgem – a coroa seria fruto de uma doação de Isabel por uma graça alcançada. A ação de promoção da imagem de Nossa Senhora Aparecida ficou circunscrita à Igreja Católica, destacando-se nessa instituição os padres redentoristas.
Os redentoristas vieram para o Brasil com o objetivo de promover a reforma do catolicismo praticado no país. Um dos grupos destes padres ficou responsável pela administração do Santuário de Aparecida, logo responsabilizaram-se também pela moralização das práticas devocionais e divulgação da imagem de Nossa Senhora Aparecida.
No contexto da Proclamação da República (1889) e da afirmação do estado laico, houve uma disputa entre o Estado republicano e a Igreja pela afirmação de símbolos nacionais. A Igreja apresentou Nossa Senhora Aparecida como um símbolo da nacionalidade brasileira. Uma Virgem cor de caramelo que acolhia a população brasileira nos momentos de sofrimento e opressão. Houve um esforço para a construção e divulgação de uma memória sobre a Virgem de Aparecida. Todo esse movimento foi coroado com a elevação de Nossa Senhora Aparecida à condição de Padroeira e Rainha do Brasil em 1931.
A memória construída não exaltou somente uma imagem institucional de Nossa Senhora, mas ressaltou também o seu caráter acolhedor, divulgando narrativas de milagres e/ou prodígios atribuídos à Virgem. A população se viu representada e acolhida pela Mãe compadecida de Aparecida. A proliferação das narrativas atraiu e continua a atrair devotos das diversas regiões do Brasil.
IHU – Como podemos entender a inculturação que faz de Maria a mulher mãe da América Latina e, especificamente, a mãe do Brasil?
José Leandro Peters – A América Latina foi colonizada pelos países ibéricos, a saber: Portugal e Espanha. Dois estados que tinham como objetivo dominar política e economicamente regiões do além-mar, mas também expandir a fé católica em um contexto de contestação do catolicismo na Europa pela Reforma Protestante.
Por exemplo, a expansão espanhola é conhecida como “a expansão pela espada e pela cruz”. Logo, as conquistas das diversas regiões da América Latina vieram acompanhadas de um processo de conversão das populações nativas ao catolicismo e de afirmação dos dogmas católicos. Uma das formas comuns de afirmação do catolicismo na América era o uso de imagens e o incentivo do culto à Virgem Maria. Nativos e colonizadores eram apresentados a variadas imagens da Virgem Maria e a narrativas relacionadas a ela, fazendo com que eles a vissem como a mãe que os acolhia e os protegia.
IHU – Como o ideal de candura e santidade se concilia com a utopia da libertação expressa na devoção à Aparecida no Brasil? Que narrativa a Igreja e o Estado brasileiro constituem de Nossa Senhora Aparecida, ao longo da história, e que narrativa emerge do povo? Em que medida essas narrativas se chocam e em que medida caminham juntas?
José Leandro Peters – Na memória exaltada sobre a imagem de Nossa Senhora Aparecida, existe um ideal de cristão que foi construído e afirmado pela Igreja: pessoas humildes, pobres, mestiças e tementes a Deus. As narrativas sobre os acontecimentos extraordinários/milagres atribuídos à Virgem de Aparecida exaltam personagens com estas características.
Portanto, há um esforço na construção do ideal de católico que se deseja, ao mesmo tempo que se condenam atitudes arrogantes e de questionamento da piedade e dos dogmas religiosos. Estas narrativas são divulgadas em texto e imagem por diversos meios e suportes, assim podemos afirmar que possuem um tom pedagógico para católicos e para os devotos de Nossa Senhora. Podemos citar os murais expostos no Santuário de Aparecida: a pescaria milagrosa; uma menina cega que volta a enxergar; o caso de um menino que cai no rio e é salvo depois da intercessão de Nossa Senhora; o cavaleiro arrogante que não consegue entrar na igreja; um sertanejo que foi salvo de um ataque de onça e a libertação do escravo Zacarias.
Todos esses “milagres” foram relatados à Igreja pelos devotos, ou seja, surgiram antes no meio popular, se propagaram pela tradição oral e só posteriormente foram registrados pela Igreja e selecionados para serem divulgados. Eles representam a imagem de cristão/católico que a alta hierarquia da Igreja deseja.
Conforme tenho ressaltado, não há uma imposição rigorosa destas narrativas/imagens. Elas se constituem em um diálogo entre os devotos e a Igreja, numa via de mão dupla em que há negociações e ajustamentos. A Igreja acessa essas histórias através do relato dos devotos, registra-os, seleciona aqueles que estão de acordo com os seus interesses momentâneos e os reapresenta aos devotos sob uma narrativa oficial.
Podemos perceber estas ações não só nos murais expostos no santuário, mas também na Sala das Promessas, que recebe diariamente bens de devotos que pagam suas promessas. Alguns dos objetos deixados no santuário são expostos e passam a constituir uma memória da devoção e dos prodígios da Virgem de Aparecida. Aqueles que não dialogam com os interesses da Igreja, são silenciados, ou seja, não são divulgados.
IHU – Que conexão e dissociações podemos fazer entre a devoção à Nossa Senhora Aparecida e a devoção à Virgem de Guadalupe? Como cada uma das devoções marianas se inscreve no imaginário popular brasileiro e latino-americano?
José Leandro Peters – Interessante esta pergunta, porque foi estudando a história da Virgem de Guadalupe, por meio da obra do historiador Serge Gruzinski, que me interessei pelas pesquisas sobre o caso brasileiro da Virgem de Aparecida.
Serge Gruzinski é historiador francês, filiado a história das mentalidades. É autor de inúmeras obras
acerca da colonização espanhola na região do México. Entre elas:
“A águia e o dragão” e “A colonização do imaginário”.
Foto: Wikipédia
No início das minhas pesquisas, tentei estabelecer aproximações entre os dois casos, mas percebi que o que os aproxima são os modos como a Igreja atua para afirmar determinadas narrativas. Em ambos os casos, houve um esforço da alta hierarquia católica em construir imagens e narrativas que aproximam as Virgens das populações locais. Elas possuem, portanto, um tom pedagógico e catequético na conversão de povos ao catolicismo.
Entretanto, falamos de temporalidades distintas. O caso da Virgem de Guadalupe está alocado no século XVI e o da Virgem de Aparecida no século XVIII. A trajetória histórica de construção da imagem de Guadalupe está relacionada a ações de sujeitos históricos voltadas à catequização e conversão de indígenas. O caso brasileiro remonta a uma devoção popular de um povoado já convertido, acolhida pela Igreja e utilizada pela instituição para se afirmar no Estado e apresentar uma identidade nacional e católica no contexto republicano.
Guadalupe foi apresentada não só como símbolo nacional mexicano como também padroeira de toda a América Latina, reforçando o ideal católico dos países ibéricos, responsáveis pela colonização latino-americana. Aparecida é uma devoção nacional, portanto, mais restrita ao Brasil. Embora possamos traçar diversas aproximações entre os usos das imagens das Virgens, como também destacar as distinções, gostaria de ressaltar que, em ambos os casos, as Virgens figuram no imaginário popular, e não só entre católicos, como a Mãe protetora, compadecida de um povo oprimido e sofrido, o qual invoca sua intercessão em diversos momentos da vida.
IHU – Quais são as raízes da devoção mariana no Brasil? Como essa devoção se atualiza, hoje, na cultura popular do campo e da cidade, entre os jovens e num mundo que parece viver numa espiral de crises?
José Leandro Peters – As raízes da devoção mariana no Brasil estão alocadas no processo de colonização sofrido pelo Brasil. Conforme ressaltei em questões anteriores, nossa colonização foi promovida pelo Estado português e pela Igreja Católica, uma aliança que se esforçou por formar um povo católico e devoto à Virgem e ao Menino Jesus. Desde os primórdios do Brasil colonial, a devoção mariana se fez presente. Esteve na catequização dos indígenas e na formação da cultura colonial.
Esta devoção foi atualizada de acordo com o tempo vivido pela sociedade brasileira, sendo associada a eventos políticos e sociais. Na atualidade não é diferente. A devoção mariana “saiu” dos templos e foi para as redes. As imagens tornaram-se avatares. As narrativas foram adaptadas a uma nova linguagem para atingir crianças, jovens e adultos. Tudo isso acontece independentemente da região (campo ou cidade) do devoto. As narrativas tradicionais permanecem, mas novas linguagens são associadas, atualizando os discursos.
IHU – O senhor trabalha com o conceito de catolicismo reformado no Brasil. No que consiste essa ideia e como, dentro desse catolicismo, se articulam e se chocam os chamados dogmas de fé e a religiosidade popular?
José Leandro Peters – O catolicismo reformado no Brasil corresponde aos padrões religiosos derivados do Concílio de Trento, que ocorreu na Europa entre 1545 e 1563. No Brasil, os princípios tridentinos começaram a ganhar popularidade na alta hierarquia eclesiástica a partir de meados do século XIX, durante a Reforma Ultramontana. O ultramontanismo ganhou força no país com a atuação de dom Antônio Ferreira Viçoso (1787-1875), que propôs a abertura de seminários para uma melhor formação do clero brasileiro e a valorização de princípios religiosos sacramentais em detrimento das práticas religiosas devocionais.
Segundo Peters, d. Antônio Ferreira Viçoso (foto) fortaleceu o ultramontanismo no Brasil.
Imagem: acervo Museu da Inconfidência
Valorizava-se um catolicismo mais internalizado, caracterizado por manifestações de fé sacramentais: cumprimento dos sacramentos; comportamento comedido e ilibado; frequência às missas; obediência aos dogmas da Igreja e crença na infalibilidade papal. Estes princípios se chocam com a religiosidade popular ao considerá-las como um conjunto de práticas exageradas e superficiais, consideradas exageros e simples exterioridades.
IHU – Uma igreja menos dogmática e uma fé que emerge do povo, logo, uma religiosidade popular, pode ser um caminho para a Igreja do futuro?
José Leandro Peters – Penso que esta questão é muito complexa. A fé menos dogmática sempre existiu, existe e continuará existindo, porque envolve a crença do sujeito, o modo como ele se relaciona com o campo sagrado. Ela certamente aproxima o sujeito da Igreja, mas é muito plural, diversa, justamente por estar relacionada aos interesses individuais. Já a instituição, a Igreja, trabalha com a coletividade, algo que é comum a todos. Estas duas posições dificultam o diálogo, porque as ações que são individuais, particulares, nem sempre estarão em conformidade com o que é comum.
A Igreja do futuro certamente será diferente da Igreja atual, com uma linguagem e uma estrutura física distintas, como a Igreja de hoje não é a Igreja do século XVIII. Contudo, não penso que ela será menos dogmática. Precisamos considerar também que, quando a Igreja se apropria das narrativas populares e atualiza o seu discurso, ela torna o princípio ou a narrativa apropriada numa verdade, num dogma. Portanto, mesmo com um diálogo constante, a Igreja continuará contando a sua verdade, propondo os seus dogmas.
IHU – Vivemos uma crise de fé? Como compreender a devoção mariana nesse contexto?
José Leandro Peters – Conforme disse em uma questão anterior, não penso que vivemos uma crise da fé, talvez estejamos em um momento de transformação e atualização dos discursos. A fé, as crenças e as devoções permanecem, e acredito que permanecerão, mas sob uma nova linguagem, elas ainda fazem parte do nosso cotidiano.
Do mesmo modo, a devoção mariana entre católicos e não católicos também permanece fortalecida. As estruturas desta devoção estão presentes fisicamente, virtualmente e psicologicamente. Os discursos institucionais, assim como os extraoficiais/devocionais, também foram atualizados. As imagens físicas tornaram-se avatares, representações virtuais. A meu ver, a Igreja esvaziada não corresponde necessariamente a uma crise da fé, mas a um questionamento do modelo tradicional de vivência da religião.