Reconhecendo a importância das cartas e atos pela democracia que se espalharam pelo Brasil desde a USP, professor adverte que manifestação ainda é deslocada no tempo e não atinge as massas
Enquanto o presidente da República vociferava contra toda a mobilização em torno da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, o país era varrido por uma onda de manifestos e atos públicos inspirados na iniciativa da Faculdade de Direito de Universidade de São Paulo – USP. Remontando um ato realizado durante a ditadura militar, quando a Faculdade preparou um manifesto com assinatura de muitos intelectuais e lideranças da sociedade em defesa da democracia em pleno anos de chumbo, a carta preparada em 2022 teve o mesmo objetivo: defender o Estado Democrático de Direito. Mas, com uma diferença: a ameaça não vem mais da repressão e da ditadura, mas do próprio presidente Jair Bolsonaro, que tenta minar a já cambaleante democracia brasileira. O resultado foi mais de um milhão de assinaturas, uma manifestação pública diante da Faculdade e inúmeras outras cartas e atos públicos Brasil afora.
Para analisar as questões de fundo desse ato diante da atual conjuntura nacional, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU ouviu o professor Rudá Ricci. Para ele, o ato é importante, mas é preciso ter sobriedade para apreender seu real tamanho. “A carta revela que segmentos da elite intelectual e empresarial do Brasil se alinham, não necessariamente com o lulismo, mas contra outras ameaças do bolsonarismo. E só, não há mais do que isso”, pontua. Segundo Rudá, “há toda uma certa repercussão na grande imprensa de que isso é uma clara demonstração de oposição. Não é verdade, pelo contrário, esse tipo de manifestação é típico do século XX, quando se tinha um apelo grande. Mas, no século da difusão de informações e dos núcleos comunitaristas, coletivos e virtuais esse documento é mais uma bolha”, acrescenta.
Ainda assim, segundo o professor, “o mais importante da carta é que amarra, com o último parágrafo, a relação do momento atual com a defesa da democracia durante a ditadura militar, o que vai levar ao fim da ditadura. Ou seja, essa narrativa sugere que estamos num momento que exige a defesa da democracia tal como naquele período durante a ditadura militar e que, portanto, essa ameaça é antidemocrática”. Porém, lamenta que “ela [a carta] não cita exatamente, não dá um nome a quem faz a ameaça. Portanto, é um discurso genérico que serve pouco para um embate nas redes sociais”. Rudá Ricci compreende que “se esse manifesto não ‘dá um nome aos bois’ nitidamente, fica mais difícil de você repercutir nas redes como Twitter, Instagram, Facebook”.
Já na avaliação do historiador Valério Arcary, "o que há de mais significativo na carta é a defesa do sistema eleitoral, ou seja, o posicionamento intransigente de lisura das urnas eletrônicas e, portanto, daquilo que é a essência do regime liberal democrático, que é o direito à alternância de poder". Na entrevista a seguir, concedida via WhatsApp ao IHU, ele disse que o presidente e seu grupo político "estão dramaticamente apreensivos e inseguros" e "as ameaças de Bolsonaro são que ele ganha ou ganha as eleições; ele não pode perder. Se eventualmente for superado nas eleições pela candidatura Lula, ele não reconhecerá e vai denunciá-la como fraude, como uma conspiração e, portanto, posiciona a extrema-direita no lugar da desobediência civil".
Para Arcary, "o regime democrático eleitoral tal como se estabeleceu no Brasil desde o final dos anos 1980 está seriamente ameaçado por golpistas que respondem a uma estratégia política do bolsonarismo. Essa estratégia obedece a uma perspectiva que é que o tipo de ajuste econômico e social que o governo Bolsonaro persegue não é possível com a preservação intacta das liberdades democráticas e civis com as quais convivemos ao longo das últimas décadas".
O professor José de Souza Martins aponta que "muitos, ingenuamente, acharam que com as Diretas, já! e a nova Constituição todos os problemas estruturais da sociedade brasileira estavam resolvidos". Para ele, "A estrutura fundamental do Estado brasileiro continuou retrógrada e autoritária. O que houve foi uma conciliação de sobrevivência entre esquerda e direita, que foi se esgotando aos poucos".
Mais especificamente com relação à carta e toda a mobilização da semana passada, considera que o documento em si revela muito pouco. "Prudentes, seus autores reduziram o propósito do documento ao que pode unificar a complexa diversidade política e social brasileira para que pudesse favorecer a formação de uma frente ampla pela democracia e, sobretudo, pelo Estado democrático de Direito", observa. "Diferente do que ocorreu em grandes manifestações de massa do passado, nesta o Brasil mostrou uma nova cara política. Não a da estrutura de classes sociais, mas a das identidades segmentárias, os novos sujeitos que nasceram durante a luta contra a ditadura militar e se consolidaram nos anos seguintes. Só a bela trajetória política dos povos indígenas desse longo período não teve a devida visibilidade nos atos", completa, defendendo a tese de que o ato foi muito mais de "uma mentalidade urbana e de classe média".
Rudá Ricci (Foto: Arquivo pessoal)
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.
Ricci é autor, junto com Luís Carlos Petry, da edição 338 do Cadernos IHU ideias, intitulado Sobre o mecanismo do terrorismo político-fascista: a violência estocástica da serpente do fascismo.
Valério Arcary (Foto: Reprodução)
Valério Arcary é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. É professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - IFSP. É autor de Ninguém disse que seria fácil (São Paulo: Boitempo, 2022).
José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016) e Sociologia do Desconhecimento – Ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021).
IHU – Qual sua análise quanto ao atual momento da democracia no Brasil? Como chegamos a esse quadro?
Rudá Ricci – Nós temos hoje duas forças políticas nacionais com grande apelo popular, que são o lulismo e o bolsonarismo. O bolsonarismo, na verdade, é mais do que Jair Bolsonaro, assim como o lulismo é mais do que Lula. Mas o fato é que o bolsonarismo é muito mais difuso do que o lulismo. O bolsonarismo tem duas grandes bases que dão consistência a ele, lembrando que ele é fascista de extrema-direita.
Nós usamos o conceito de extremismo para definir uma força política quando ela nega ou ameaça constantemente a democracia e, quase sempre, com ameaça e uso real da força. É exatamente isso que estamos vivendo, com manifestações de 7 de Setembro contra as instituições, com ataque aos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, ou seja, os poderes independentes do Executivo, que são pilares da república, além de assassinatos, ameaças em manifestações políticas, vandalismo contra carros de juízes que mandam prender ex-ministros do governo Bolsonaro, assassinato de dirigente do PT de Foz do Iguaçu, de ambientalistas, na Amazônia, bombas em eventos como o da Candelária, no Rio de Janeiro, ou drone jogando veneno em manifestantes aguardando Lula em Uberlândia. Ou seja, é uma sequência bem nítida a partir de um comando verbal do presidente da República através de uma frase dele: “nós sabemos o que fazer, vocês sabem o que tem que ser feito”. Ou, ainda, outra frase como: “nada que uma granadinha e um tiro, uma arma, não resolvam”. Isso se chama terrorismo estocástico.
Além dessa organização difusa do Bolsonarismo, não necessariamente de uma classe social estruturada por uma organização, temos também uma base política, aí sim organizada. Nessa base, poderia citar os militares, em especial, no Exército, os comandantes da missão de paz no Haiti. São todos eles bolsonaristas e que vêm do Haiti com o ideário muito nítido do uso da força para coibir o que eles chamam de baderna dos segmentos sociais mais marginalizados do Brasil. Eles retomam uma tese do século XIX chamada haitianismo, a força militar dos Estado controlando as demandas sociais nos setores negros e pobres da população.
O segundo segmento é do empresariado, em especial, o empresariado do setor varejista, das redes varejistas de alimentação e da venda de produtos de consumo básico familiar. O terceiro segmento é o baixo clero do Congresso, ou seja, os deputados que não têm projeto nacional e só pensam em alimentar com verbas e obras a sua base municipal eleitoral. Portanto, os cabos eleitorais deles são os prefeitos.
E, finalmente, o segmento evangélico que nas eleições se aproxima da base que não pensa como a bancada da Bíblia no Congresso, mas que no período da eleição trabalha o discurso da pauta de costumes, em especial de defesa da família, dizendo que lésbicas, feministas etc. conspiram contra o equilíbrio e a paz na família.
Esse é o bolsonarismo e nós, então, estamos vivenciando essa lógica bolsonarista do terror e da instalação do pânico e das ameaças constantes que fazem o setor lulista ou antibolsonarista ficar sempre muito apreensivo. Portanto, a situação política no Brasil é de grande apreensão a despeito de hoje o Lula estar com uma vantagem imensa em termos de intenção de votos e de apoio partidário sobre o bolsonarismo. Apesar de os dados revelarem essa vantagem, o clima é de muita apreensão.
Valério Arcary – O regime democrático eleitoral tal como se estabeleceu no Brasil desde o final dos anos 1980 está seriamente ameaçado por golpistas que respondem a uma estratégia política do bolsonarismo. Essa estratégia obedece a uma perspectiva que é que o tipo de ajuste econômico e social que o governo Bolsonaro persegue não é possível com a preservação intacta das liberdades democráticas e civis com as quais convivemos ao longo das últimas décadas. Chegamos a um ponto em que a divisão na classe dominante – e, especialmente, este núcleo mais concentrado da riqueza, os chamados donos do PIB – se colocou em movimento. Foi muito tardio. O Supremo Tribunal Federal – STF resistiu sozinho às ofensivas de Bolsonaro desde a pandemia. O Congresso permaneceu indiferente a todas as ameaças do governo Bolsonaro e quando o centrão se integrou como um componente assimilado dentro do governo, o Congresso foi anulado e, portanto, vivemos uma situação na qual o presidente esteve blindado apesar dos crimes de responsabilidade.
Ainda que tarde, é positivo que os pesos pesados do grande capital tenham acordado. Este movimento que se traduziu nas cartas é positivo e é um ponto de apoio para resistirmos às ameaças de 7 de setembro.
José de Souza Martins – A democracia no Brasil, mesmo com a Constituição de 1988, tem sido frágil e fragilizável. Apesar da robustez dos primeiros governos, tem sido uma democracia do papel, mas não tem sido substantiva e sólida, baseada no reconhecimento da pluralidade cada vez maior da sociedade brasileira. Polarizada entre uma direita voraz, frequentemente corrupta e corruptora, e uma esquerda dividida e de vários modos alienada porque limitada à polarização e aos antagonismos ideológicos, mais partidária do que propriamente política. Muitos, ingenuamente, acharam que com as Diretas, já! e a nova Constituição todos os problemas estruturais da sociedade brasileira estavam resolvidos. Não estavam. A estrutura fundamental do Estado brasileiro continuou retrógrada e autoritária. O que houve foi uma conciliação de sobrevivência entre esquerda e direita, que foi se esgotando aos poucos.
Nossas esquerdas nunca tiveram clara consciência social e crítica, fundada nas revelações e carências fundamentadoras da práxis e da diversidade estrutural desta sociedade. Não se deram conta de que o Brasil faz parte do mundo, de que a história não se repete nem é cópia da de outras sociedades. Sobrepusemos uma alienação de esquerda à alienação capitalista. Não nos demos conta de que o capitalismo se realiza de modos singulares e peculiares em cada sociedade. Aqui, com o neoliberalismo, trataram de nos impor o modelo econômico americano. Importamos irracionalidades e contradições dos outros.
Não levaram em conta as heranças persistentes e incontornáveis da ditadura militar. A mais sólida, a da aliança do capital com a renda fundiária, sob a forma de renda capitalizada, uma mutilação do capitalismo que fez do nosso um capitalismo rentista, isto é, anticapitalista, que não pode ser interpretado corretamente com o marxismo esquemático dos manuais de ideologia. Não pode ser combatido nem superado com a concepção de um capitalismo binário no qual não há como reconhecer o caráter trinário do capitalismo brasileiro e suas tensões únicas, por isso mesmo, agravadas.
IHU – O que a ação da organização de uma carta pública em defesa da democracia revela? Por que esse movimento chegou a tal proporção com milhares de assinaturas?
Rudá Ricci – A carta revela que segmentos da elite intelectual e empresarial do Brasil se alinham, não necessariamente com o lulismo, mas contra outras ameaças do bolsonarismo. E só, não há mais do que isso. Há toda uma certa repercussão na grande imprensa de que isso é uma clara demonstração de oposição. Não é verdade, pelo contrário, esse tipo de manifestação é típico do século XX, quando se tinha um apelo grande. Mas, no século da difusão de informações e dos núcleos comunitaristas, coletivos e virtuais esse documento é mais uma bolha, fala de uma bolha.
É importante, mas não tem a importância que tiveram o manifesto dos mineiros, declarações pela volta da democracia, entre outros manifestos depois da II Guerra Mundial até o final do século XX. No Brasil, esses manifestos tiveram um papel muito importante, mas hoje não têm, de maneira alguma, a importância que tinham antes. Isso porque mudou a lógica dos formadores de opinião, que antes eram classe média e essas categorias ilustradas. Hoje, esse não tem mais o peso de formação de opinião que tinha no século XX.
Valério Arcary – Já são mais de um milhão de assinaturas, o que é uma adesão multitudinária, mas temos que ter senso de proporção. A carta é uma resposta defensiva diante de uma dinâmica ininterrupta de provocações do governo Bolsonaro. Ele convocou os embaixadores para um minicomício no Palácio da Alvorada em que anunciou abertamente a desconfiança pelo sistema eleitoral, pela lisura das urnas eletrônicas e tem feitos discursos para a sua base social predisposto a arriscar a sua vida em defesa do que ele interpreta que é a defesa da liberdade. Agora, evidentemente, a carta empresarial da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp e da Federação Brasileira de Bancos - Febraban faz uma diferença e tem um impacto enorme porque estamos falando da fração mais poderosa da burguesia. Bolsonaro ainda mantém apoio na maioria da massa da burguesia quando pensamos em grande escala, ou seja, quando consideramos que há entre 2,5 e três milhões de empresários com negócios diferentes, mas as cartas são uma espécie de protesto claro em defesa do regime democrático eleitoral. Elas respondem à ansiedade que cresceu nas camadas médias da arte, da cultura, da universidade, mas, ainda assim, evidentemente, não anulam uma ameaça mais vigorosa contra o 7 de setembro. Ou seja, o Rio de Janeiro será palco do 7 de setembro, de uma apoteose neofascista como foi o 7 de setembro do ano passado, em que, na Av. Paulista, na Av. Atlântica, em Copacabana, e na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, Bolsonaro colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas. Ou seja, demonstrou que tem uma força social que o apoia em segmentos da pequena burguesia proprietária, e tem capilaridade dentro da oficialidade das Forças Armadas, das Polícias Militares, das Polícias Civis, e que exerce influência através de empresas e igrejas neopentecostais que manipulam o que são as inquietações culturais, sociais da base social mais vulnerável do país.
Portanto, o 7 de setembro continua no nosso horizonte como uma imensa ameaça e Bolsonaro não hesitará em se apoiar nesse movimento para se blindar diante de um processo de investigação, condenação e, eventualmente, prisão. Ele ainda disputa o primeiro turno e quer, evidentemente, a partir do 7 de setembro, ter um impulso para chegar ao segundo turno. Ele faz uma aposta de médio e longo prazo de que seja qual for o destino eleitoral, ele permanecerá blindado e intocável e não terá no Brasil o destino que está colocado diante de Trump nos EUA.
José de Souza Martins – A carta revela pouco. Prudentes, seus autores reduziram o propósito do documento ao que pode unificar a complexa diversidade política e social brasileira para que pudesse favorecer a formação de uma frente ampla pela democracia e, sobretudo, pelo Estado democrático de Direito.
As revelações ocorreram nos atos de leitura da carta em vários cantos do Brasil. Diferente do que ocorreu em grandes manifestações de massa do passado, nesta o Brasil mostrou uma nova cara política. Não a da estrutura de classes sociais, mas a das identidades segmentárias, os novos sujeitos que nasceram durante a luta contra a ditadura militar e se consolidaram nos anos seguintes. Só a bela trajetória política dos povos indígenas desse longo período não teve a devida visibilidade nos atos.
Aparentemente, uma mentalidade urbana e de classe média perpassou os atos. Um novo Brasil político se expressou nas falas e manifestações, o que praticamente inaugura uma nova era política na sociedade brasileira.
IHU – Quais os pontos mais significativos que destacas da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”?
Rudá Ricci – O mais importante da carta é que amarra, com o último parágrafo, a relação do momento atual com a defesa da democracia durante a ditadura militar, o que vai levar ao fim da ditadura. Ou seja, essa narrativa sugere que estamos num momento que exige a defesa da democracia tal como naquele período durante a ditadura militar e que, portanto, essa ameaça é antidemocrática.
Trecho final da carta, destaco como Rudá Ricci como mais importante | Imagem: reprodução Faculdade de Direito da USP
O problema é que ela não cita exatamente, não dá um nome a quem faz a ameaça. Portanto, é um discurso genérico que serve pouco para um embate nas redes sociais, que é onde se dá hoje realmente a comunicação pública no Brasil. Já não se dá em manifestos desse tipo. Se esse manifesto não “dá um nome aos bois” nitidamente, fica mais difícil de você repercutir nas redes como Twitter, Instagram, Facebook.
O mais importante do documento, volto a dizer, é esse vínculo histórico com o período do regime militar, ou o fim dele, e a luta da sociedade brasileira, e, destacando o Gofredo da Silva Telles, pela normalidade e pela ordem democrática. Isso que é o mais importante.
Valério Arcary – O que há de mais significativo na carta é a defesa do sistema eleitoral, ou seja, o posicionamento intransigente de lisura das urnas eletrônicas e, portanto, daquilo que é a essência do regime liberal democrático, que é o direito à alternância de poder. Ou seja, as ameaças de Bolsonaro são que ele ganha ou ganha as eleições; ele não pode perder. Se eventualmente for superado nas eleições pela candidatura Lula, ele não reconhecerá e vai denunciá-la como fraude, como uma conspiração e, portanto, posiciona a extrema-direita no lugar da desobediência civil. Ele e seu grupo político estão dramaticamente apreensivos e inseguros de que os processos de denúncia darão lugar a investigações, condenações e prisões.
José de Souza Martins – Apesar da euforia das milhares de pessoas que acorreram às manifestações, o documento é cauteloso e objetivo. Especialmente na alusão ao fato de que a pátria está em perigo, ameaçada por aqueles que constitucionalmente deveriam defender as instituições. É uma conclamação à vigilância pela democracia.
IHU – Enquanto acompanhamos todas essas manifestações pela democracia, há um Brasil que não chega a ler, assinar ou participar de debates como o proposto na carta. De que forma podemos envolver e levar essa lufada de ar impregnado de Estado Democrático de Direito a essas pessoas?
Rudá Ricci – Nós dificilmente levaremos esse manifesto para a massa brasileira, dificilmente. Volto a dizer: o conceito de formador de opinião que foi construído principalmente depois da II Guerra Mundial pelos Estados Unidos é a ideia de que a classe média forja formadores de opinião. Isso porque os trabalhadores e os mais pobres ou formavam sua opinião a partir dos profissionais liberais que atendiam essa população - médicos, jornalistas, professores - ou porque a classe média empregava essa população como jardineiros, pequenos negócios, pequenos mercados e assim por diante. Essa ideia de uma correia de transmissão entre a classe média ilustrada, que formava opinião e era naturalmente liberal nessa teoria norte-americana, e a base social mais marginalizada, e que por trabalhar muito é menos ilustrada, não tem tempo nem para se formar direito.
No entanto, essa ideia foi destruída no século XXI. Aqui no Brasil, a partir de 2006, muitas pesquisas vêm revelando que a opinião da massa trabalhadora de pobres se desgarrou totalmente da linha editorial da grande imprensa e da classe média. Elas vão para um lado e os trabalhadores e pobres no Brasil votam no outro lado e decidem sobre outra agenda. Então, a ideia de formadores de opinião tem que, no mínimo, ser reformada e, nesse sentido, não dá para achar que o manifesto vai se popularizar de maneira didática nessas novas formas colegiadas e bolhas que hoje envolvem multidões de maneira fragmentada, em grupos de WhatsApp, em acessos relacionados a YouTube, Instagram, Tik Tok. Essa é uma ideia completamente descabida no século XXI.
Valério Arcary – Os direitos democráticos foram uma conquista histórica da fase final da luta contra a ditadura militar e, portanto, as liberdades democráticas, civis e formais são de interesse estratégico do povo, mas não o comovem porque embora haja direito de organização sindical, não há direito de militância sindical dentro das empresas. Embora haja eleições regulares com alternância de governos, não chegamos, no Brasil, no patamar mínimo de democracia que poderíamos chamar de a democracia dos direitos, dos músculos, dos nervos, das condições de vida, do salário digno, do acesso ao trabalho, da universalização da educação, enfim, da seguridade social. E há uma ampla parte do povo que vive esmagada diante de condições materiais de sobrevivência que são indignas, inaceitáveis e inexplicáveis no início da terceira década do século XXI. Bolsonaro abertamente faz a denúncia das conquistas democráticas e o discurso da direita bolsonarista é neofascista porque exalta a ditadura militar e, sistematicamente, denuncia que a democracia ficou cara demais, estendeu direitos demais, criou o SUS, que é caro demais, universalizou o acesso ao ensino fundamental, que é caro demais. Portanto, Bolsonaro tem que estar comentando que o povo tem que escolher: se quer emprego, não pode ter tantos direitos. Ele coloca no mesmo embrulho os direitos sociais conquistados a partir da Constituição de 88 e as liberdades democráticas. Creio que temos que responder à altura. Nós queremos defender as liberdades democráticas para transformar os direitos que estão na lei, que são formais, em direitos reais. Ou seja, o salário mínimo vital que ofereça condições de existência e por aí adiante.
José de Souza Martins – Essa é uma questão antiga e não é a questão do momento, embora seja muito conveniente ficar atento a esse problema. O momento pede uma ação focada e aglutinadora em favor da democracia. Mas a onda de adesões ao documento no dia da leitura da carta sugere que ele representa um despertar de consciência e de coragem, é ele o antivírus do entorpecimento da vontade política dos que foram abatidos pela pandemia e pelo bolsonarismo.
Estou muito surpreso com a reação dos pastores de várias igrejas evangélicas contra a onda autoritária e a instrumentalização de religiões como meios de afirmação do caráter autoritário do Estado herdado da ditadura, autoritarismo de que evangélicos e protestantes foram cúmplices, em alguns casos até mesmo apoiadores da tortura e morte de presos políticos. A reação desses pastores é uma rebelião política em nome da fé. Destaco alguns: o pastor Ariovaldo Ramos, o pastor Henrique Vieira, o pastor Ed René Kivitz. Destaco a preocupação do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, apoiadora da ditadura militar e do retorno do autoritarismo com Bolsonaro, com a possibilidade de um novo cisma na Igreja em consequência desse envolvimento.
IHU – Diante dos indicadores de insatisfação e desconfiança da população com o sistema político brasileiro, as atuais mobilizações pela manutenção do Estado Democrático de Direito são suficientes para evitar um golpe?
Rudá Ricci – Não vai ter golpe, não tem motivo algum para se falar em golpe. A questão não é golpe; é aí que está o erro grande de algumas leituras do campo progressista e democrático no Brasil. É essa tortura de ficar o tempo inteiro imaginando uma ação apocalíptica contra a democracia. Não é isso que é ameaça política no Brasil.
A ameaça é o que nós podemos começar a ter através das câmaras de eco, que são as bolhas formadas em coletivos hiperexcitados que fanatizam os participantes, sem qualquer possibilidade de contraditório ou dúvida. E, também, com a manipulação de algoritmos através do que se chama metapolítica, ou seja: você fala de comportamento, por exemplo, gostos por filmes, vestimenta, entretenimento, e, a partir dessas características de consumo, você inclui questões política de maneira enviesada.
Por exemplo, você ficar trabalhando nos grupos que gostam de sapatos vermelhos, falando das tendências etc., e de repente falar “vocês viram o sapado do candidato tal? Olha como ele não tem bom gosto”. Então, você atrai uma discussão enviesada sobre o político a partir de um tema que não tem nada a ver com a política. É esse tipo de manipulação dos algoritmos, dos perfis de quem está nas redes sociais e as câmaras de eco que criam uma disputa dos valores na sociedade.
Não é exatamente um golpe de Estado ou político, é a disputa dos valores e da hegemonia cultural que está em jogo. É algo muito mais perigoso do que um golpe, porque ele é muito mais sólido. É com essa questão que temos que estar mais atentos daqui por diante.
Valério Arcary – Declarações são importantes, mas são insuficientes para diminuirmos os riscos que estão colocados perante uma ofensiva de natureza golpista do governo Bolsonaro. Ele ameaça a lisura e a legitimidade do processo eleitoral e vai se apoiar em mobilizações de massa no dia 7 de setembro, quando pretende produzir uma arruaça fascista nas ruas para intimidar as instituições e amedrontar o povo de esquerda.
Temos que assumir plenas responsabilidades diante da gravidade que é o momento histórico que estamos vivendo. Isso significa que temos que responder nas ruas e temos que construir mobilizações de rua que sejam a expressão das liberdades democráticas e dos direitos que foram conquistados pela geração anterior. Isso significa preparar o 10 de setembro, mas, antes disso, saber que o terreno no qual a disputa está ocorrendo é o terreno eleitoral. Nos próximos dias, Lula terá um grande teste porque vai visitar a USP e vai a Minas Gerais e milhares de nós vamos expressar nosso compromisso com as liberdades democráticas e com o que está porvir.
Acredito que estamos diante de um grande desafio da campanha Lula, que é o instrumento eleitoral que temos para derrotar Bolsonaro. Não sou petista, sou militante do PSOL, e estou no comando nacional do PSOL, mas compreendo que o apoio a Lula é o grande desafio. Acredito que não basta romantizar o que foi a experiência dos governos petistas do passado e tampouco acho que seja um bom caminho assimilar as pressões que a classe dominante está fazendo sobre a campanha do Lula para ter garantias antecipadas de que o tripé econômico permanecerá intacto, de que não haverá revogação das contrarreformas dos últimos cinco anos. Ao contrário, estou entre aqueles que fazem uma aposta na mobilização popular. O nosso papel é motivar, empolgar e encantar as novas gerações para que elas acreditem que é possível, através das ações coletivas, mudar as suas vidas, e que é possível e vale a pena apostar na mobilização. Portanto, é necessário apostar na mobilização e incendiar a imaginação da juventude operária e popular, o movimento de mulheres, o movimento negro, os movimentos ambientalistas, os movimentos LGBTQIA+, os movimentos estudantis e sindicais. É preciso colocar o bloco na rua, na aposta de que é possível um outro Brasil, com direito ao trabalho, à escola, ao respeito, ou seja, é uma luta por um governo de esquerda.
José de Souza Martins – Não necessariamente. Mas diversamente do que aconteceu em 1964, a tentativa de retomar o que havia de pior e mais iníquo naquela ocasião, a pressuposição de que com a eleição de Bolsonaro o eleitorado teria optado por um retorno à ditadura não vingou para um número expressivo de eleitores que poderão decidir o destino do Brasil já no dia 2 de outubro. Diversamente do que aconteceu na eleição de Bolsonaro, as fake news foram situadas, desmascaradas e criminalizadas. Em 2018, o povo foi enganado. A questão é saber se o número dos enganáveis será suficiente para legitimar um golpe de Estado.
Os militares sabem que estão desmoralizados por reles e duvidoso tenente, já acusado de terrorismo e excluído do Exército com o prêmio de consolação da promoção administrativa a capitão, sem qualquer mérito militar. O que não quer dizer que ele tenha deixado de ser perigoso. Por outro lado, os países civilizados já mandaram seu recado claro e objetivo quanto ao que esperam que aconteça no Brasil. Um país falido não tem condições de peitar as potências. O preço econômico e político será muito alto.
O recado cívico e cidadão que o general Lloyd Austin, dos EUA, mandou ao governo brasileiro e aos militares brasileiros, de que os militares são servidores da sociedade civil e não o contrário, é um murro naquele equivocado artigo 142 da Constituição que marotamente foi introduzido na carta de 1988, que definiu os militares como tutores do Estado e da sociedade. É o artigo que tem sido invocado em todas as manobras golpistas do governo Bolsonaro.
IHU - Deseja acrescentar algo?
José de Souza Martins - As eleições dirão de que lado Deus está, já que Deus foi transformado em eleitor no Brasil.