O MP é apenas um fármaco. A superconcentração do Executivo é a causa da corrupção. Entrevista especial com Roberto Romano

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Por: Patricia Fachin | 30 Setembro 2016

Como é próprio de muitos filósofos, ao analisar um problema, tal como o da crise brasileira e os casos de corrupção no país, Roberto Romano está preocupado, antes de tudo, em identificar qual é a sua causa para depois sugerir maneiras de resolvê-lo. E as causas da corrupção, que tem gerado uma “ânsia popular”, podem ser identificadas na estrutura do Estado brasileiro, que é “absolutista e atrasada” à medida que subordina todas as suas instâncias ao Executivo, que mantém uma relação direta com as oligarquias do país, diz à IHU On-Line.

Esse modelo de Estado, explica, foi herdado de Napoleão, introduzido no Brasil por Dom João VI e se mantém até os dias de hoje. Não é à toa, exemplifica, que 90% das políticas públicas realizadas no país “são propriedade do Poder Executivo”. “Essa superconcentração faz com que o poder central tenha que captar apoio das regiões. Mas para manter sua presença nas regiões o instrumento estratégico reside nas oligarquias que obedecem ao poder central e ao mesmo tempo vendem essa obediência a preço caríssimo. (...) Trata-se de um modelo atrasado de representação política”, afirma.

Identificada a causa da corrupção, o filósofo pontua que é preciso reformar o Estado e isso inclui “democratizar o Judiciário”. Entre as propostas, Romano sugere que os funcionários do Judiciário sejam eleitos pelo povo, tal como são os representantes do Executivo e do Legislativo. O ponto, afirma, é que através das eleições “eles teriam condições de se afirmarem como poder no Estado. Com mais autonomia e legitimidade, não dependeriam das maiorias parlamentares ou do beneplácito da Presidência. Sem esse quesito, ocorre a judicialização”.

Na avaliação dele, se o Judiciário não é eleito, ele sempre pode ficar subordinado ao Poder Executivo e suas ações podem ser questionadas. Sua crítica à Lava Jato vai justamente nessa direção. “Torna-se difícil entender e justificar aspectos da Operação Lava Jato e do Supremo Tribunal Federal”. Abdicar da eleição de juízes, promotores e procuradores e aceitar o princípio da boa-fé, o qual tem sido evocado por alguns membros do Ministério Público, também é problemático, argumenta, uma vez que “a boa-fé pode se transformar em má-fé, porque são dois lados de uma consciência que está em situação existencial, não é uma consciência pura, um Cogito ao estilo cartesiano ou kantiano. (...) Eles fazem uma tarefa maravilhosa, são honestos, mas e se muda o personagem? E se aparece um promotor sem boa-fé e não é honesto? É perfeitamente possível”, adverte.

Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line na última segunda-feira, 26-09-2016, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU participando do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, onde ministrou a palestra a “Reinvenção do espaço público e político: o individualismo atual e a possibilidade de uma democracia da igualdade e dos afetos”, Romano comenta o atual momento político, a atuação do Ministério Público desde 1988 e explica a fundamentação teórica da Operação Lava Jato.


Romano durante sua palestra, em 26-09 passado, no IHU
Foto: Ricardo Machado | IHU

Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que entende por judicialização, já que esse tem sido um termo recorrentemente utilizado no país?

Roberto Romano – Como todo vocábulo surgido nas lutas políticas e sociais, “judicialização” indica algo polissêmico que adquire sentido conforme a situação. Na França há um forte ressentimento contra os juízes ditos midiáticos que, em vez de se pronunciarem nos processos, procuram a imprensa para forçar decisões conformes ao seu ideário e modos de entender o problema e sua resolução. Naquele país existem muitos artigos e livros sobre a chamada judicialização da política. Cito apenas um livro, cujo título, aliás, é muito expressivo, publicado pelo jurista Daniel Soulez Larivière: Du cirque médiatico-Judiciaire et des moyens d’en sortir (Sobre o circo midiático-Judicial, e sobre os meios de nos livrar dele). O volume é de 1993, o que mostra a longevidade do problema.

Judicialização não significa apenas que o Judiciário às vezes usurpa as prerrogativas dos outros poderes. Ele comunica essa passagem à opinião pública, o que pode ser saudável em alguns momentos, mas problemático em outros. Geralmente quando não se consegue equacionar uma aporia econômica, política, religiosa, se força um caminho via imprensa. Com isso, duas coisas ocorrem: se abandona a senda tradicional da Justiça, e se transforma a imprensa — e esse parece o destino dela — em instrumento de poder. Isso ocorre menos na Inglaterra e na Alemanha. Mas surge com força na França, nos EUA, na Itália. No Brasil não estávamos acostumados ao juiz ator ou promotores como agentes político-ideológicos. Temos aí uma novidade que corresponde à crise geral do Estado. Aqui e no mundo.

O Estado centralizador

Desde que o Estado foi instituído, nos séculos XV, XVI e XVII, procurou manter o controle da sociedade, impor–lhe normas obtidas com sacrifício contra o poder eclesiástico e o dos nobres. A centralização da Justiça, da economia, da repressão social e política e do direito levou muito tempo. No século XIX vislumbramos um Estado que teria condições de realizar três monopólios: o da Norma Jurídica, o da Força e o dos Impostos. Esse Estado sobreviveu sob a hegemonia do Executivo. O Termidor acabou com a ditadura do Legislativo na França e atenuou o poder do Parlamento na Inglaterra. Com o golpe do 18 Brumário, o Judiciário passou a ser tutelado pelo Executivo. Temos o rompimento com o modelo anterior do Estado democrático revolucionário: os juízes, na Revolução Francesa, eram eleitos e demitidos pela população com base no princípio da responsabilidade, herdado da Revolução Inglesa do século XVII. O juiz que respondia diretamente ao cidadão em eleições se manteve, em parte, nos EUA, mas na França isso acabou e o magistrado passou a responder ao Imperador.

Esse foi o modelo de Justiça que recebemos, paradoxalmente, a partir de Dom João VI. Nós o herdamos de Napoleão, que retirou o juiz do trato com a cidadania. O magistrado passa a ocupar um nicho na máquina estatal. Tal nicho não é de poder, pois trata-se de uma instância superior no funcionalismo. Para existir poder efetivo é preciso que o cidadão apoie, escolha, legitime o responsável pelo cargo. É o que não acontece na judicialização da política. Um funcionário não eleito se imiscui em competência alheia, a do Parlamento ou do Executivo.

No Brasil, juízes e promotores jovens aproveitam a autonomia do Ministério Público e da Judicatura, que veio com a Constituição de 88, para exibir certo protagonismo em relação ao povo. Assim, eles não caminham para a via democrática. Na “entrevista show” em que denunciou Luiz Inácio da Silva, Deltan Dallagnol insistiu no fato de que eles são concursados, como se um concurso preenchesse o requisito pleno da legitimidade. E se conversamos com juízes ou promotores sobre eleições no Judiciário, ouvimos que elas não podem ocorrer porque isso introduziria instabilidade nos julgamentos e sentenças. Mas os juízes norte-americanos são eleitos.

IHU On-Line – Que vantagens o senhor vê na eleição de juízes, procuradores e promotores? Em que a eleição alteraria a prática deles?

Roberto Romano – É o ponto: eles teriam condições de se afirmarem como poder no Estado. Com mais autonomia e legitimidade, não dependeriam das maiorias parlamentares ou do beneplácito da Presidência. Sem esse quesito, ocorre a judicialização. Torna-se difícil entender e justificar aspectos da Operação Lava Jato e do Supremo Tribunal Federal. Há certa margem de razão na queixa dos petistas e da esquerda em geral de que juízes e promotores priorizam, na caça à corrupção, alguns partidos e setores ideológicos. Quando nada sai contra notório integrante do PMDB que ocupa a presidência do Senado, podemos perguntar: quando chegará a hora do PSDB ou do PMDB? E se terminar no PMDB, será legítima tal ação definida pelo aplauso popular? Esse ponto me deixa preocupado.

A crise do Estado

Todos os Estados enfrentam uma crise de competência, de legitimidade e de eficácia. Desde o século XIX a população do mundo mudou em termos numéricos e qualitativos, deixou de viver no campo e veio para as urbes e, nelas, as necessidades públicas se tornaram incomensuráveis com o que era exigido pelo campo. É difícil que o Estado possa garantir todos os serviços à população concentrada em aglomerados complexos. Como “solução” para a crise surgiram doutrinas de cunho fascista. Autores como Carl Schmitt tiveram sua doutrina aceita e aplicada por governos como o de Pinochet: privatização máxima dos serviços públicos e repressão máxima, elementos que fazem o Estado sobreviver. No Guardião da Constituição vemos a receita: seria insuportável, na República de Weimar, que o Estado fosse proprietário de estradas de ferro ou assumisse o controle da economia. Tal ideia, banalizada pelos neoliberais como Hayek — devedores de Carl Schmitt — ajudou o Estado a ter um respiro ao flexibilizar o controle da economia e do social. Mas na Alemanha nazista, ao lado da repressão inaudita na História, a parceria de governo e empresários não aceitou limites no uso de trabalho escravo, no esgotamento até à morte de povos como o judeu, na superexploração dos prisioneiros de guerra. Empresas hoje muito conhecidas mantiveram tal conúbio com o totalitarismo. Mas sejamos claros: se o Estado perdesse de fato, em tais tiranias, o controle da economia e do social, perderia o poder. Essa é uma realidade já conhecida por Luís XIV .

Essa crise leva os governantes a procurarem o cidadão diretamente, na política de massas. Legislador e políticos procuram o cidadão nas eleições, não o juiz. A Lava Jato, com ações espetaculosas, surge para a população como uma liga dos salvadores da República. Os únicos salvadores. E como o nosso Estado em crise nunca foi plenamente democrático, a cidadania se sente desassistida, pois o Estado não consegue manter os serviços. Junho de 2013 começou com os problemas no transporte público, depois seguiu para a saúde, a educação etc. E na crise acontecem duas coisas: a ânsia popular face à corrupção e a tentativa de colocar nos juízes — e nos militares — a responsabilidade pela correção do Estado e da vida social que ameaça a todos. A solução proposta pelos atores da Lava Jato é perigosa para eles e para a República, se ainda for possível falarmos em República no Brasil.

IHU On-Line – Muitos têm feito outra leitura, de que a Lava Jato é composta por uma nova geração de juízes e procuradores jovens que justamente querem fazer Justiça, já que num país como o Brasil, o Judiciário sempre ficou atrelado, no mau sentido, ao Estado. Então, os procuradores e juízes estariam desempenhando suas funções sem fazer militância para um outro partido. Não concorda com essa interpretação?

Roberto Romano – Concordo em parte, porque acompanhei o Ministério Público antes e depois da Constituição de 88. De fato, muitos procuradores e juízes não queriam esse protagonismo social. A novidade veio com a geração petista, como Luiz Francisco, que tentaram fazer o que os procuradores e juízes da Lava Jato fazem hoje, só que pela esquerda. Mas os petistas não tinham o treino e o scholarship dos procuradores e juízes que hoje atuam. Eles são jovens, mas o problema não está na juventude, embora esse seja um ponto importante. Joaquim Barbosa não era um menino e representou, no episódio do Mensalão, tudo que a opinião pública espera. Quando o Estado não tem controle e setores importantes das finanças e da indústria definem o padrão de funcionamento do que é público, aparece a ineficácia institucional à luz do dia e o povo procura, de maneira blasfema, um Salvador humano, individual ou coletivo. Como aquele Soter não é Deus, as falhas sempre representam ameaças autoritárias, por melhor que seja a intenção de quem se julga tutor do povo.

IHU On-Line – E como equalizar essa situação, porque de um lado há uma demanda legítima da sociedade de apurar e condenar os casos de corrupção e, de outro lado, os atores que estão atuando para que isso seja feito são o MP e o Judiciário na primeira instância?

Roberto Romano – Na Alemanha existe a saída colegiada, partilha de poderes, o que traz uma ausência de lideranças democráticas. Se tirarmos Angela Merkel, poucos sabem quem são os demais políticos. Na França, meia dúzia de agentes medíocres dominam a política. Na Itália é hilariante, porque um primeiro ministro foi empregado do Lehman Brothers. No Brasil, a situação é pior porque tivemos duas ditaduras violentas que ceifaram vocações para a liderança. Quando desapareceu a geração que resistiu ao arbítrio ditatorial, Ulysses Guimarães e Mário Covas, Leonel Brizola, Miguel Arraes e outros, não sobrou ninguém. Fora Luiz Inácio da Silva, com milhares de seguidores, não há outra liderança nacional autêntica.

Assembleia Constituinte

Nossos partidos não são agremiações políticas. Eles não têm programa ideológico, mas são oligarquias e federações de oligarquias disfarçadas. Nossa federação não é federação; não existe autonomia real dos municípios e Estados. A situação é dramática porque o poder federal corta recursos e os Estados exigem dinheiro da República, mas dinheiro é o que não existe mais no cofre. Seria necessário coragem — e delírio — para convocar a Assembleia Nacional Constituinte que fizesse uma Constituição na qual se ampliasse o que na Carta de 88 integra o Estado Democrático de Direito.

Quem dá unidade à Constituição?

A Constituição de 88 foi um golpe de Estado porque o Congresso que serviu à ditadura foi mantido, acrescentado de constituintes. A doutrina que resultou teve traços do Estado Democrático de Direito e do Estado de Direito. Mas as duas doutrinas não são consentâneas e harmonizáveis. Num capítulo se trata da propriedade como algo absoluto e noutro como social. Conforme o juiz, o governador, o presidente, o peso é dado para um capítulo ou outro. A Constituição está desfigurada devido à quantidade de Emendas, quase todas em favor do Executivo, como a da reeleição. Se compararmos a escrita original com a de hoje, são textos completamente diferentes. A Constituição não tem síntese, algo fundamental em termos lógicos. O que fornece unidade interna à Constituição? No nosso caso isso não existe.

Um texto deve ter duas marcas: ou ele é um manuscrito incompleto e precisa de técnicas hermenêuticas ou é contemporâneo e requer um sistema unificador dos seus parágrafos, uma forma lógica, um núcleo. A Constituição não tem semelhantes marcas, o que gera o subjetivismo: um intérprete diz que tal situação é constitucional, outro que essa mesma situação não o é. Instaura-se uma querela perene sobre que é, ou não, constitucional. Desde o impeachment da presidente Dilma, essas interpretações se acirraram. Os intérpretes nem falam a partir de situações opostas: eles não falam a mesma linguagem.

Medidas

É preciso uma Assembleia Nacional Constituinte que ordene uma nova estrutura interna dos partidos políticos. Algo complicado: o STF decidiu que não haveria cláusula de barreira na criação dos partidos. Agora, o mesmo tribunal não assume a responsabilidade pelo que está acontecendo. O aumento dos partidos levou à maior corrupção. O Mensalão e o Petrolão se explicam por isso, porque os donos dos partidos, sobretudo dos pequenos, não têm visão de mundo, mas só buscam o lucro pessoal. Precisamos de partidos, de federalização. É preciso decidir sobre o tipo de Judiciário que queremos: atrelado ao governo e às suas maiorias ocasionais no Congresso, ou um Judiciário eleito? Nos EUA há muita polêmica sobre a eleição dos juízes eleitos, mas ali, com as dificuldades de toda vida institucional, a justiça é aplicada.

IHU On-Line – Então a eleição resolveria parte dos problemas do Judiciário?

Roberto Romano – Sim. Mas também urge instituir um Judiciário altamente gabaritado do ponto de vista do saber técnico. Caminhamos em tal sentido. O dito pelo procurador Dallagnol — os concursos — faz um pouco de sentido. Antigamente muitos concursos eram feitos com base na influência de governadores e políticos. Agora existe a profissionalização.

IHU On-Line – Ao falar que eles são concursados, o que ele quer não é justamente se distanciar dos políticos e da militância política?

Roberto Romano – Sim, quer se distanciar da política oligárquica e isso é verdade. Mas, por outro lado, não basta o saber técnico. É preciso a legitimidade concedida pelo povo soberano. Devemos enfrentar uma nova atitude face ao regime político: é ou não democracia. Pode não ser uma democracia, porque Deus não disse que a única saída é a escolha democrática. Mas para merecer o título de democracia, aqueles setores devem ser eleitos.

IHU On-Line – O senhor tem acompanhado a atuação do MP nas últimas décadas. O protagonismo que ele vem desempenhando desde a Constituição de 88 é por conta da falência de outras instâncias do Estado em geral?

Roberto Romano – Com certeza. Certa vez o procurador geral do Estado de São Paulo, Rodrigo Pinho, me chamou para conversar. Ele queria um curso sobre ética. Antes da pauta, perguntei-lhe por que todo prefeito odeia o promotor público da sua cidade. Dada a estrutura do Estado brasileiro, os impostos saem das cidades e vão direto para o Ministério da Fazenda e do Planejamento. Para que o dinheiro volte ao município é necessário o “é dando que se recebe”, um político que carreie o dinheiro para a região. Nesse ínterim em que a verba não vem, o prefeito, eleito por seus cidadãos, se vai à feira o feirante cobra as estradas, no futebol recebe vaia porque não foi terminado o campo. Se ele encontra as mães, elas exigem a creche prometida. O padre diz que as ruas não estão iluminadas etc. O prefeito enfrenta todas essas questões, enquanto o promotor apenas tem a lei diante de si e não responde à população, tampouco se preocupa se o cofre da prefeitura tem ou não dinheiro, aplica a Lei de Responsabilidade Fiscal impiedosamente.

Muitos promotores querem legislar e executar. E dizem o que o prefeito pode ou não fazer. Aí a situação é gravíssima. Não se trata da pessoa empírica do prefeito ou do promotor, mas de uma estrutura de poder que passa pelo dinheiro, pelos recursos e serviços públicos. Numa cidade de 200 mil habitantes, imaginemos tudo o que o prefeito precisa fazer com recursos limitados, tendo que obedecer a chefes oligárquicos, porque do contrário o dinheiro não vem. E aí entra a corrupção, com raiz nessa estrutura não federativa e distribuição desigual de recursos. Somemos o fato de que por volta de 30% dos municípios brasileiros não têm recursos próprios, recebem do Estado ou das federações, ou seja, são cartórios eleitorais disfarçados. É uma situação sem saída, e a tutela, que vem de antigos tempos, se acentuou depois da autonomia do MP.

Legisladores ou promotores de Justiça?

Os gregos dizem que um fármaco é ao mesmo tempo veneno e remédio. O MP é fármaco; ele ajuda muito e agiu em situações heroicas, como no “escândalo da mandioca”, quando promotores foram assassinados por cumprir seu dever. Mas por outro lado eles estão exercendo certo poder devido à fraqueza de outros poderes. Tal coisa não é muito boa para eles, porque chegará um momento em que o MP deverá responder pelas políticas públicas. Por enquanto ele responde pelo que não pode na corrupção, nas obras públicas, mas quem assume ou que autoridade parlamentar vai querer ser definida pela autoridade do MP, como os prefeitos agora? E quem assumirá os cargos de legislador e executivo? O MP? Eles tentam. Pelo menos três pontos da proposta por eles encaminhadas à Câmara são delirantes. Os deputados estão furiosos, porque os procuradores não aceitam mudanças reais nos itens propostos. Ora, ou eles são legisladores ou promotores de Justiça.

IHU On-Line – Mas não há uma fraqueza do Legislativo nesse ponto? Ou a fraqueza é somente do Executivo?

Roberto Romano – A estrutura do Estado brasileiro é absolutista e atrasada. O poder central, desde antes da Independência, precisou manter a fidelidade das regiões para evitar que o Brasil se transformasse em dez “Bolívias” ou 50 “Uruguais”. Para isso foi utilizada a força física pelo poder central. A superconcentração das políticas públicas ficou atrelada ao poder Executivo e não ao Legislativo e menos ainda ao Judiciário. Se você analisar as políticas públicas hoje, 90% delas são propriedade do Poder Executivo: saúde, arte, educação etc. Sempre tivemos esse Estado burocratizado, truculento, permanentemente preocupado com a separação — até em 1932 houve essa tentativa em São Paulo. Essa superconcentração faz com que o poder central tenha que captar apoio das regiões. Mas para manter sua presença nas regiões o instrumento estratégico reside nas oligarquias que obedecem ao poder central e ao mesmo tempo vendem essa obediência a preço caríssimo. Pobre presidente da República que não consiga pagar a conta: João Goulart não conseguiu, Getúlio, Jânio Quadros, Collor e Dilma Rousseff não conseguiram. Amanhã será Michel Temer. Se o senador não conseguir levar o mínimo de obras para o seu Estado, ele perde votos e deixa de apoiar o presidente da República. Trata-se de um modelo atrasado de representação política.

Nesse contexto, o que é o Poder Legislativo? A reunião dos coronéis ou dos lobistas do poder econômico. Agora mesmo falam em regulamentar o lobby pelo Poder Executivo; é hilário. Nas gavetas do Congresso dormitam 11 projetos para regular o lobby. E nada. Então, se não o regulamentam, não é que o Legislativo seja fraco; ele é forte quando exprime os desejos e os interesses de poderes econômicos.

O golpe

Quando falam que o golpe parlamentar destituiu a presidente Dilma, digo que não houve golpe parlamentar, mas da Fiesp, como em 64 o golpe veio dos bancos e do poder estrangeiro. Os parlamentares cumpriram hoje o papel de lobistas desses poderes e votaram a favor do impeachment porque interessava a eles. Além disso, viram que — e esse foi o grande erro da Dilma Rousseff — o caixa do BNDES se esgotava. Daí, colocaram seus parlamentares e juristas para arquitetar um golpe.

No processo do impeachment, quase não me pronunciei porque não era possível conversar com a esquerda, porque ela localizava o golpe num lugar que era o instrumento do golpe, e não a sua origem. Continua, como em 64, a Fiesp como força motriz que teve apoio, consciente ou inconsciente, do MP. Esse ponto eu acho gravíssimo em relação aos integrantes do MP. Se eles não revisam seu modus operandi e não denunciam os líderes do PSDB e do PMDB, entram para a história como um instrumento de golpe de Estado, como os militares.

IHU On-Line – Quando o senhor diz que houve um “apoio” do MP para que o impeachment fosse levado adiante, está dizendo que o MP foi utilizado indiretamente como um instrumento para a realização do impeachment, ou que o MP quis, conscientemente, apoiar o impeachment como militantes de partidos?

Roberto Romano – Sim, foi indireto e instrumentalizado. Não digo que eles fizeram como foi feito em 64, quando os militares conspiraram ativamente com os poderes econômicos e estrangeiros.

IHU On-Line – Mas o MP percebe que está acontecendo isso que o senhor diz que acontece?

Roberto Romano – Eles não se dão conta, como também não se dão conta dos erros que cometem. Eles estão no momento pelo qual Joaquim Barbosa passou: encarnam o Bem absoluto e não aceitam críticas. Imaginam que sua tarefa é tão sublime que não pode ser discutida ou reconfigurada por ações e pensamentos contrários. Se existe pessoa autoritária no Brasil, ela se chama Joaquim Barbosa. E milhões o aplaudiram. Agora, quando ele se pronuncia contra o impeachment, quantos o evocam? Ninguém.

Hegel e Marx têm uma expressão para definir as pessoas que carregam ideais e interesses complexos. Eles são apenas o suporte, o Träger. Em determinado momento Joaquim Barbosa foi o Träger e agora são os procuradores mais Sérgio Moro. Depois, podem ser outros. Meu receio é que logo teremos militares como Träger. Se não resolvermos a governabilidade e não vivemos a democracia, o que sobra? Se não tem lideranças democráticas, como fazer?

IHU On-Line - Muitos políticos e intelectuais têm criticado o MP na apresentação das denúncias e dizem que as coletivas são teatrais. Renan Calheiros chegou a chamar a coletiva em que o MP denunciou Lula por lavagem de dinheiro de “exibicionismo” e o PT chama os procuradores de “senhores da lei”. Também são feitas críticas ao Judiciário e ao juiz Sérgio Moro por aceitar as delações premiadas e manter alguns acusados presos. Eles alegam que o modo como a operação está sendo realizada fere o princípio da Presunção de Inocência. Há ou não irregularidades na condução jurídica da Lava Jato?

Roberto Romano – O primeiro erro é que eles estão fazendo política como se não estivessem. Eles não têm algo fundamental ensinado por Aristóteles, Platão e Maquiavel: a prudência. Prisões espetaculares e entrevistas idem a cada vez, assim como o esquecimento tático ou estratégico de outros partidos, metidos até o nariz na corrupção, são erros políticos. Se assumem o protagonismo político, deveriam ter prudência. Os políticos oligárquicos têm um sentimento de poder que vem desde 1500 e conquistaram legitimidade pelos favores que prestam às cidades. Se a Lava Jato continua assim, daqui a pouco eles não terão o instrumento que lhes é essencial, a lei. Foi o que aconteceu com a Operação Mãos Limpas. A fonte de força vem justamente do trato dos políticos com a cidadania. Errado ou não, demagógica ou não, eles têm semelhante força, que os juízes não têm. A Lava Jato tem popularidade, o que difere do poder pleno.

IHU On-Line – Mas as coletivas dos procuradores não são uma estratégia justamente para garantir o apoio popular, porque os políticos já fazem o discurso contrário de deslegitimar a operação?

Roberto Romano – Sim, elas são feitas para ter a opinião pública do lado do MP e intimidar os adversários. E isso é péssimo. Uma vez analisei uma ação do Luiz Francisco. Ele fazia uma série de coisas pelas quais teve que responder ao conselho do MP e foi punido. Eu disse em artigo de jornal que o MP, do qual o Luiz Francisco era exemplo, poderia ter a sorte do Savonarola. O frade instalou a “ditadura da santidade” em Florença e mandou até que, por falta de armas, terminou na fogueira. À época, Luiz Francisco me enviou um e-mail dizendo que “não iria me processar” (clara ameaça de que estava inclinado a tal coisa) porque eu o tinha chamado de Torquemada. Respondi que se ele lia processos como lia artigos, estávamos muito mal. No fim, ele acabou pedindo desculpas.

Não duvido que o Luiz Francisco estivesse no ímpeto do bem, lutando ao lado do PT e agora há um ímpeto do bem contra o PT. Mas moralidade absoluta não existe em nenhuma sociedade. Basta ver que havia uma corrupção imensa no próprio governo jacobino, quando uma grande quantidade de corruptos governava à sombra de Robespierre, cujo título popular era “O incorruptível”.

IHU On-Line – Mas como é possível dissolver um caso de corrupção?

Roberto Romano – A última operação da Lava Jato chama-se Omertà, porque Marcelo Odebrecht titubeia em assinar a delação premiada. Se não conseguem que um réu delate totalmente, prendem um novo réu para que o outro delate? Eles deveriam ter a prudência de não fazer coisas acima ou além das suas forças. Poderiam continuar com as delações premiadas, mas estão fazendo de si mesmos, para os políticos, um espantalho, um medo. Quando alguém que manda tem medo, deve-se tomar cuidado com essa pessoa. Já dizem que os próximos serão a ex-ministra da Casa Civil, Erenice Guerra, e Renan Calheiros. Quando se espalha o medo, cria-se solidariedade na “comunhão negra” a que se refere Merleau-Ponty, ao comentar Maquiavel.

IHU On-Line – E qual é a outra possibilidade?

Roberto Romano – Uma coisa é agir segundo as regras que definem a própria instituição, outra é o espetáculo oferecido. Dallagnol prega de Norte a Sul. Eles acham que garantem para si a opinião pública e que ela irá sempre sustentá-los? Mesmo na prisão de todo o parlamento? Na tutela do poder Executivo? Eles estão sendo imprudentes.

IHU On-Line – E quando eles argumentam por meio do princípio de boa-fé?

Roberto Romano – Fiz essa crítica na Comissão Especial da Câmara, que discute as propostas do MP, porque esse princípio da boa-fé não é aceito universalmente. Se você for ler um pensador rigoroso como Sartre, em O ser e o nada, a boa-fé pode se transformar em má-fé, porque são dois lados de uma consciência que está em situação existencial, não é uma consciência pura, um Cogito ao estilo cartesiano ou kantiano. Se você age de boa-fé mas não segundo a lei, relativiza a lei e termina por aboli-la. A sua vontade se transforma em lei e chegamos à tirania. É muito sério do ponto de vista ético que alguém, posto para promover o respeito da lei, relativize a lei em nome de uma consciência subjetiva.

Eles fazem uma tarefa maravilhosa, são honestos, mas e se muda o personagem? E se aparece um promotor sem boa-fé e que não é honesto? É perfeitamente possível. Este exemplo é típico para ilustrar isso: “O Presidente Costa e Silva pode abusar do poder do AI-5”. “Não, ele nunca vai abusar”. E pergunta Pedro Aleixo: “E o guarda da esquina?” É isso que se tem que pensar, não podemos, em nome de subjetividades, colocar em risco a soberania da lei. Ou a lei é ou não é. Se a lei do MP lhes facultasse obter provas que não são totalmente lícitas nem ilícitas, onde vamos parar? Fui vítima de promotores públicos na ditadura que disseram no processo que eu era terrorista, merecendo a pena capital, mas fui inocentado por um tribunal de militares por falta de provas.

IHU On-Line – Mas nos casos de corrupção é difícil chegar às provas concretas porque o esquema é montado justamente para que não existam provas. Como faz? Não resolve?

Roberto Romano – Procuremos outras maneiras de sanar a corrupção e não fiquemos apenas no resultado da aplicação da lei. É o que disse Lorde Acton, um católico, quando discutia com um bispo também católico: o bispo queria desculpar a Igreja e o papa pelos erros cometidos na noite de São Bartolomeu. Mas, segundo Acton, não é possível desculpar a Igreja e o papa dessa maneira, pois o papa não seguiu os mandamentos da própria Igreja. Logo, mesmo sendo o papa, ele é culpado. E Lorde Acton diz ao bispo: “O senhor quer evitar a corrupção, eu quero saber a causa da corrupção”. Esse é o ponto.

Se o Estado continua a não funcionar, pois é em demasia centralizado, se o parlamento é apenas uma correia de transmissão entre as regiões e o poder central, se uma Justiça napoleônica não é de fato autônoma, se o prefeito continua desprovido de dinheiro, continuaremos punindo, punindo, punindo sem mudar a estrutura do Estado e sem a exigência democrática de responsabilização?

IHU On-Line – Mas, por outro lado, não lhe parece que há uma recusa da punição? Porque de fato é fundamental tratar das causas, mas nunca se trata da causa e nem da punição. Aí nem se pune quem rouba dinheiro público, nem se muda o sistema, e continua tudo como está.

Roberto Romano – Sim, tudo bem, mas aí se faz o linchamento, na tradição brasileira. Todo mundo sabe que mulheres são violentadas, que homens violentam crianças, mas aí aparece um sujeito na praça e todo mundo grita: “estuprador!”. As pessoas correm para a praça e matam o sujeito. Está tudo resolvido?

No fundo temos um Estado e uma sociedade fraca e violenta. Todos vivem sob o regime do medo. Aí nesse contexto surge Getúlio, esperança da lavoura, mesmo sendo um ditador. Depois, aparece JK, que é a maravilha, mas termina tendo que governar quase que tutelado pelos militares. Aí chega Jânio Quadros, que vai cuidar da corrupção e sete meses depois abandona o governo. No lugar dele, entra Jango, que tem uma saída racional, capitalista inclusive, mas que não interessa ao capital estrangeiro, e cai. Depois chega um longo governo de militares que não se equilibram com os poderes econômicos e sociais. Na sequência vem Sarney, que ao terminar seu governo, perde toda governabilidade. Aí surge o Collor, que iria resolver a inflação. Depois vem um sujeito que não tinha compromisso nenhum com oligarcas e militares, Itamar, que conseguiu um mínimo de governabilidade, atenuando a inflação. Depois FHC, que termina o primeiro governo mal das pernas, paga para a reeleição e segura o dólar causando bilhões de prejuízos à economia brasileira. E depois veio Lula, o grande salvador, com o apoio de toda a burguesia que esperava os bilhões. E os bilhões vieram. Mas há diferença entre Lula e Dilma: Lula dava dinheiro para os empresários via banco e os empresários tinham que pagar o banco, e a Dilma deu dinheiro diretamente do BNDES. Empresários aplicaram em letras do Tesouro norte-americano, e deixaram a produção em compasso de espera. Quem diz tal coisa não é um veículo de esquerda, é o jornal Valor Econômico.

Desculpe a resposta longa, mas existe certa ciclotimia de massas no Brasil, doutrinadas diuturnamente pela mídia para serem dóceis ao governo. Quando aparece um movimento mais forte, é identificado com baderna. A luta contra a corrupção precisaria de outros parâmetros éticos. Insisto: se o juiz Sérgio Moro segue a Operação Mãos Limpas, não pode estar agindo de um modo consciente. De tão envolvido no movimento, ele revive o drama ocorrido na Itália. Amanhã pode aparecer no Brasil um caçador dos corruptos, como foi o Berlusconi. Este, uma vez instalado no poder, acabou com o poder dos juízes e promotores.

IHU On-Line – Qual é a fundamentação filosófica da Lava Jato? Qual é a doutrina jurídica que a fundamenta?

Roberto Romano – Entre as doutrinas que circulam no meio acadêmico e as maneiras pelas quais elas são assumidas, há uma distância. Uma figura presente desde Joaquim Barbosa até Curitiba é Claus Roxin, com a teoria do domínio de fato. Mas não se constata entre nós a doutrina tal como ele a formulou, mas reaproveitamento que passa pelo crivo da ação prática. Existem também tentativas de aplicar a hermenêutica à teoria do domínio de fato, e fazer uma espécie de retomada de Hans Kelsen, mas sem o normativismo brutal, e também existem tentativas de repensar contributos do Carl Schmitt, como no caso de Agamben, sobretudo no que tange ao estado de exceção. Mas não vejo essa imediatez que se percebe no andamento da Justiça. Na Lava Jato se utiliza a teoria do domínio de fato: quem controla a situação é o responsável, mesmo que ele negue tudo. Lula nomeou funcionários, fez isso e aquilo. Portanto, ele é chefe da quadrilha petista. Mas não é isso que Claus Roxin indica. Seu pensamento foi suscitado pelo totalitarismo, pela quantidade de nazistas que fugiram da responsabilidade depois de Nuremberg.

IHU On-Line – O que seria então a democratização do Judiciário além da eleição dos juízes, como o senhor sugere?

Roberto Romano – Existem várias possibilidades. Não se muda um regime e uma estrutura de poder em três dias. O que poderia ser feito é retornar pouco a pouco a práticas similares à do juiz de fora, que vem do Império Português, a qual deixamos de lado. Retomar a carreira do juiz de paz, que dirime querelas mais simples do convívio (muitas vezes não são tão simples, basta pensar nas brigas de propriedades limítrofes). Poderíamos ir de baixo para cima restabelecendo padrões e definindo uma relação nova do juiz com o cidadão. Aí podemos subir para outras instâncias e não admitir, por exemplo, no STF, alguém que não tenha sido juiz. Esse é um ponto de consenso nos EUA. Um advogado como Dias Toffoli, não porque não passou em concursos, mas por não ter trato com a judicatura, não tem experiência, não poderia estar ali. Se fizermos essas mudanças, pode-se ir instituindo eleições intra corpus e depois extra corpus etc. São centenas de ano de um Judiciário napoleônico. De todo modo, precisamos mudar.

IHU On-Line – O juiz Moro tem defendido o fim do foro privilegiado, como outros também têm apoiado. A proposta é adequada?

Roberto Romano – Sim. A prerrogativa de foro tem seus defensores, mas por outro lado, se levarmos a sério o princípio republicano e democrático, não pode existir prerrogativa de foro a não ser — e esse é um ponto que precisa ser sublinhado — para os chefes dos poderes, por uma razão muito simples: se um chefe de Poder Judiciário, Executivo ou Legislativo é submetido a um juiz de comarca, a República inteira cai por terra. Mas o foro seria destinado ao chefe e não a cada deputado, a cada prefeito e a cada senador.

No Império não existia prerrogativa de foro. Na Constituição de 1934 ela era proibida, a ditadura não conheceu foro privilegiado, ou seja, isso é uma coisa da Constituição de 88 e integra o golpe que foi a Constituição. Os políticos que serviram a ditadura e meteram a mão no dinheiro público colocaram, na prerrogativa, uma salvaguarda para si mesmos. A grande traição de Lula e FHC foi aceitar essa medida e normatizá-la. Assim como os militares fizeram a lei de Anistia se prevenindo e prevenindo os seus, os parlamentares também fizeram. Mas isso precisa ser mudado.

IHU On-Line – O senhor tem dito que não existe espaço público no Brasil? Qual é a dificuldade de instituí-lo?

Roberto Romano – Não existe. No antigo regime, o espaço público era a Corte. Habermas disse que com a imprensa e a burguesia se ampliou o espaço público. Onde está isso no Brasil, na imprensa nacional, nos debates, na sociedade? Um embrião de espaço público foi feito em Porto Alegre, com o Orçamento Participativo - OP, e aquilo poderia ter ajudado a educar o cidadão. Mas uma vez eu fui visitar o OP num ginásio em Porto Alegre e um grupo entrou atrasado, com uma faixa que dizia algo assim, vou inventar um nome: “Pedro Leopoldo saúda os participantes”. Aí perguntei para minha colega de sociologia onde ficava Pedro Leopoldo e ela respondeu: “Onde não, quem é Pedro Leopoldo; ele é o dono da comunidade”. Depois, na hora das falas, tinha gente que dizia: “O meu movimento, o meu movimento”. Na mesma ocasião, a prefeitura tinha feito fichas de agendamento de matrículas justamente para os pais não ficarem na fila, mas alguns líderes comunitários exigiam as fichas para eles distribuírem para a sua comunidade.

Está claro o que isso significa? Então, o OP era um modo da cidadania saber o que era política pública e formar bons fiscais e proponentes de modificações, mas acabaram com o OP. Esses dias o Lula disse: “acabaram com o OP”, mas o fato é que desde que o PT chegou ao Planalto, acabou o OP no Brasil todo.

IHU On-Line – O senhor pode nos falar sobre a sua tese de doutorado, que foi bastante criticada à época?

Roberto Romano – Minha tese chama-se “Le Signe et la Doctrine, prismes du discours théologique dans le Brésil contemporain” (1978). Ela foi traduzida e publicada com o título de “Brasil, Igreja contra Estado”. Nela, questionei não a Teologia da Libertação, mas o modo pelo qual ela estava sendo encaminhada como um “Ersatz” das vozes das massas brasileiras, tentativa de servir como mediador político. O fundador da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, nunca fez o que Clodovis Boff e outros fizeram. Essa é uma diferença. Eles propuseram uma Igreja que se transformaria em socialista. Não existe isso. Quem conhece a história da Igreja sabe que ela tem múltiplas experiências de base. A ilusão dos teólogos da libertação foi achar que a Igreja, enquanto instituição global, tenderia para o socialismo. Ela não vai tender para o socialismo ou capitalismo, pois tem uma cultura própria e 5 mil anos de cultura e não 2 mil anos atrás de si. Se essa instituição tem uma capacidade imensa de autorreflexão e de se autorrenovar, não se pode atrelá-la a um projeto secular como o socialismo.

A maior celeuma ao redor do meu livro é que eles estavam falando isso quando João Paulo II subiu ao trono de São Pedro. Ele era anticomunista e o foi por razões próprias da Polônia. Ele começou a desmontar o que era progressista na Igreja, movimento esse que não começou com ele, mas com Paulo VI — e as pessoas não lembram. Se você analisar o serviço de documentação dos anos 60, vai perceber um controle cada vez maior de Paulo VI e o momento simbólico foi a Humanae Vitae. João Paulo I também não era progressista, o seu modelo era pastoral e não tinha a ver com a política. João Paulo II veio para acabar com o comunismo. E nesta época os teólogos da libertação diziam que a Igreja se tornava socialista... Clodovis Boff escreveu uma resenha de duas páginas do meu livro e eu só consegui responder na coluna dos leitores. Ele disse que eu era um tolo que não via que a Igreja estava se tornando socialista. No meu livro critiquei Comblin, mas sempre tive uma grande admiração por ele, porque nunca disse o que seus pares alardearam. Outro que admiro é Leonardo Boff, que fala dos pobres, mas criticou a tendência marxizante dos anos 70 mirando níveis mais elevados da teologia. Frei Betto, por exemplo, pensa em termos marxistas, mas não é marxista ao pensar a teologia e a pastoral.

IHU On-Line – Muitos consideram que o Papa Francisco tem sido a voz progressista no mundo. O que lhe parece?

Roberto Romano – Sim, mas hoje o Papa Francisco enfrenta uma resistência do episcopado no Brasil e no mundo bastante forte, porque esse episcopado resulta do período definido por João Paulo II.

IHU On-Line – Mas o senhor diria que ele é progressista?

Roberto Romano – Não, eu acho que ele é pastoral, no modelo de João XXIII e do papa Albino Luciani, João Paulo I. Ele, além disso, conheceu um regime populista e ditatorial na Argentina e está mais escolado do que os papas que viviam no mundo diplomático, como Paulo VI, que não tinham trato com a população. A novidade do Papa Francisco está nessa retomada de uma inspiração pastoral. Foi isso que moveu João XXIII. Mas Francisco tem resistência da Cúria porque ele não oferece um programa teológico sofisticado como era o caso de Ratzinger. Isso o torna mais atraente para as multidões e para o diálogo com outras religiões. Tal coisa aumenta seu carisma e seu profetismo evangélico e também ético. Quando João Paulo II se aliou a Ronald Reagan e se tornou amigo do Pinochet, diminuiu sua influência ética.

IHU On-Line – Que perspectivas vislumbra para o futuro da esquerda no Brasil?

Roberto Romano – Recentemente li um bom artigo de Aldo Fornazieri, e o acho pessimista. Não creio que direita e esquerda sejam propriedade de movimentos ou partidos. Direita e esquerda resultam de contradições na vida social. Se temos uma política conservadora que tira direitos e não põe nada no lugar, evidentemente isso alenta os donos do capital, mas levanta questões dos prejudicados. Não se tem impunemente 12 milhões desempregados sem direito à previdência e educação. Infelizmente, não temos lideranças de esquerda que saibam levar o movimento dos despossuídos, ou “negativamente privilegiados”, para usar o termo de Max Weber.

Embora não seja gramsciano, penso ser preciso interpretar os movimentos que surgem da sociedade. Mas não temos ainda intelectuais orgânicos para fazer isso. Houve uma espécie de “engolimento” do sistema de poder brasileiro pelo PT e parte do PSOL e a subsunção das lideranças de esquerda para o sistema de poder estabelecido. Se não aparecerem novas lideranças, a situação fica cada vez mais dramática. Mas isso não acontece por culpa da esquerda, mas porque o poder de cooptação e imposição das elites brasileiras é muito grande. No começo do governo Lula, José Genuíno disse algo verdadeiro: “Estamos no governo, mas não estamos no poder”. Se o PT tivesse pensado nisso, não teria caído em certas armadilhas.

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