"A partir de 24/2, com a resistência ucraniana, saímos do plano mesquinho dos jogos de força e entramos no das incandescências históricas, de algo que não era previsível. Isto por si só deveria mudar toda a apreensão da situação, se por esquerda entendermos aqueles que assumem a perspectiva dos dominados e discriminados. Tanta mitificação estalinista sobre a Grande Guerra Patriótica (que teria sido inviável sem o suporte massivo de material e armas pelos atlânticos), mas incapaz de ver o povo em armas dentro do seu tempo histórico", escreve Bruno Cava, graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e online, por meio do canal Horazul (Youtube). Autor de vários livros, além do livro A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança (Rio de Janeiro: MAUAD X, 2020), também publicou, entre outros, A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013) e, com Alexandre Mendes, A constituição do comum (2017). O artigo é publicado por Rede Universidade Nômade, 11-04-2022.
E pergunta: "Onde que está o anti-imperialismo no alinhamento com Putin? Só pode estar na ideia que, da perspectiva da formação nacional brasileira, é melhor um mundo em que haja mais de uma potência imperial. Não apenas os EUA e o Consenso de Washington, mas também a Rússia e a China e o Consenso de Beijing". Ou seja, "o que importa é um mundo multipolar no qual poderemos enganchar de maneira mais estratégica os nossos interesses nacionais".
E conclui: "Que maravilha de mundo. É esse o projeto? Ainda com toda a empatia peço apenas que não se diga esquerda 'anti-imperialista', mas 'multi-imperialista'. Para que as botas na cara das pessoas sejam de diferentes bandeiras, ainda que continuem sendo botas".
Chega um ponto que não adianta mais argumentar. Quanto mais são expostas razões e apresentados fatos pelos quais determinada posição é insustentável, mais a pessoa se aferra a essa posição e mais se torna impermeável a argumentos. É como se, ultrapassado o centro de gravidade do razoável, a pessoa começasse a deslizar numa rampa infernal de racionalizações e não conseguisse mais frear. Não importa que seja necessário acrescentar hipóteses ad hoc para emendar as teorias de estimação ou ampliar as espirais conspiratórias para denegar as evidências. É uma estranha vertigem, um tipo de autopesadelo no qual a pessoa é engolfada.
Por exemplo, a invasão de Putin à Ucrânia. Parte da esquerda brasileira, majoritariamente aquela que encampa a luta anti-imperialista e terceiro-mundista, submergiu num estado de negacionismo sem paralelo. Não dá para comparar o grau de denegação em relação aos fatos de Mariupol ou de Bucha nem mesmo com os correlatos negacionismos da pandemia ou da catástrofe climática. Um vírus é invisível e o aquecimento global um fenômeno trans-escalar, ao passo que os massacres e ataques das tropas de Putin estão documentados com uma legião de provas, em tempo real, à vista do mundo todo.
Não são pessoas distantes, não. Isso me causa tanta perplexidade que, em vez de tachar logo de dissociação cognitiva ou má fé pura e simples, vale refletir mais a respeito. São pessoas que não estão recebendo para falar essas coisas, não têm nenhum benefício indireto em falar essas coisas, e nem mesmo precisariam estar falando essas coisas para sustentar a sua identidade de esquerda anti-imperialista e terceiro-mundista. Estão falando isso mesmo assim, o que aliás nos deveria prevenir sobre como pessoas apoiam, desejam e inclusive adoram Putin, Trump ou Bolsonaro — talvez não por déficit cognitivo ou moral. Inclusive pessoas na Rússia e mesmo na Ucrânia sob bombas, pessoas que seguem desejando o próprio estado de servidão e dominação que Putin representa.
A principal matriz racional por trás seria a visceral oposição ao imperialismo representado pelos EUA, estado nacional mais rico e poderoso dos trinta que compõem a OTAN e eixo motor do capitalismo contemporâneo em sua versão neoliberal. Tomemos a causa mais célebre desta antiga posição: Cuba e a revolução nacionalista cubana, de 1959. Vamos fazer um exercício de empatia e assumir, pelo amor ao debate, toda a heurística implicada.
Pois bem. Defender que os ucranianos precisam aceitar a realidade como ela é, ou seja, estar sob a influência do império adjacente (aceitar a realidade, afinal de contas, dói menos…), não iria diametralmente contra a posição anti-imperialista? Ora, a Doutrina Monroe pregava que qualquer intervenção estrangeira sobre países das Américas deveria ser considerada uma ameaça aos interesses dos Estados Unidos. A América Central era o quintal da Casa Branca e a América do Sul, no mínimo, zona de influência derivada da geografia mesma.
Daí tantas intervenções na América Central ao longo do século passado, “by proxy” ou diretamente, em Granada, El Salvador, na Guatemala, no Panamá, em Cuba em 61 (invasão desastrada da Baía dos Porcos), assim como no Chile em 73 ou no Brasil em 64. América para os (norte-)Americanos.
Se os EUA sempre atuaram segundo os seus interesses nacionais, por que Putin não poderia? Essa transposição seria de direito. O único detalhe aqui, digo eu, é que os polos estão invertidos.
A abordagem realista, de um John Mearsheimer, nada mais seria do que transpor a Doutrina Monroe para a Ucrânia. Em vez da América para os Americanos, o Leste Europeu para os Russos. Opor-se à Doutrina Monroe, no caso concreto, deveria ser, por consequência lógica, a posição anti-imperialista de opor-se às pretensões expansionistas russas, e não, jamais, aliar-se à agenda realista do império em questão.
Da mesma maneira como Cuba recorreu à URSS e seu cobertor nuclear para contrabalançar a reivindicação de hegemonia americana sobre as Américas, a Ucrânia (assim como os países bálticos e outros do Leste Europeu) está recorrendo ao contrapeso das forças da OTAN.
Do ponto de vista da esquerda anti-imperialista, Ucrânia é Cuba e Zelensky é Fidel. Mesmo do ângulo estritamente realista, em que as ideologias não passam de instrumentos de realização do poder, a aproximação com a OTAN e a ideologia ocidental é tão pragmática quanto havia sido a da Cuba revolucionária com a URSS e a ideologia socialista. Ou pelo menos deveria ser assim interpretada pelos realistas, por coerência.
Não estou nem invocando a questão democrática. Sempre houve maior consenso sobre a adesão à União Europeia, mas a entrada ou não na OTAN dividia a população ucraniana até alguns anos atrás, fazendo as pesquisas oscilarem ao redor do impasse. Contudo, em 2014, Putin determinou a intervenção na Ucrânia, com a anexação da Crimeia e o início da ingerência militar direta nas regiões do leste do país.
O efeito interno no público ucraniano foi que, de 2014 em diante, o apoio à entrada na OTAN cresceu até se tornar francamente majoritário, na proporção de 2/3 ou mais. Em 2019, foi eleito um governo com o programa de entrar na Aliança Atlântica e esse desejo veio inscrito na Constituição. E o novo governo foi eleito com mais de 70% dos votos, ganhando em 24 das 25 regiões administrativas.
Talvez o aumento do apoio à entrada do país na OTAN tenha a ver com as declarações e movimentações cada vez mais hostis da potência vizinha, de que iria extremar a intervenção iniciada em 2014. Isso não mostra que as divisões internas da Ucrânia estariam aumentando e atingindo um ponto de conflagração, levando a uma situação de guerra civil generalizada. Não. Era o contrário. Mostra que, apesar das divisões internas em vários planos, subsistia a decisiva tendência de união para pacificar o país e internalizar os impasses e atritos no processo democrático — imperfeito, mas ainda democrático.
Por isso mesmo, porque a Ucrânia começava a caminhar com as próprias pernas, e sem ter aderido à OTAN (porque dentro da OTAN, nunca houve consenso em acolhê-la, pelo risco envolvido à segurança dos demais membros), a potência expansionista e imperialista invadiu o país. Invadiu para depor o governo, purificar a política nacional e desmembrar regiões inteiras, a ser anexadas à moda antiga dos czares. Por realismo bismarckiano.
Embora as agências de inteligência na Federação Russa tenham assessorado Putin que as tropas assaltantes seriam recebidas como libertadoras por pelo menos parte da população ucraniana, precipitando um desfecho relativamente rápido, segundo o imaginário soviético de tanques-nas-ruas em Praga ou Budapeste (daí o título oficial da invasão: Operação Militar Especial, como se estivéssemos nos tempos do Pacto de Varsóvia e os russos chegassem para botar ordem na casa), o que aconteceu foi exatamente o oposto. Aconteceu o imponderável.
A população decidiu resistir em grandes números, o país reencontrou a unidade dos oprimidos em torno da bandeira bicolor, Zelensky elevou-se à altura do momento, e como resultado os invasores foram recebidos a bala. A comoção com esse gesto foi mundial e mobilizou a multidão que, por sua vez, pressionou os governos a adotarem sanções mais agudas, mesmo em prejuízo das próprias economias nacionais. Contrariando uma pletora de prognósticos, o dado decisivo é que os próprios ucranianos — e não Biden, e não a CIA, e não a OTAN, e não a União Europeia, e não o “Ocidente” — eles mesmos resolveram resistir e resistiram.
Isto por si só deveria mudar toda a apreensão da situação, se por esquerda entendermos aqueles que assumem a perspectiva dos dominados e discriminados. Tanta mitificação estalinista sobre a Grande Guerra Patriótica (que teria sido inviável sem o suporte massivo de material e armas pelos atlânticos), mas incapaz de ver o povo em armas dentro do seu tempo histórico.
A partir de 24/2, com a resistência, saímos do plano mesquinho dos jogos de força e entramos no das incandescências históricas, de algo que não era previsível. História é luta e reabre nas lutas. Cidadãos comuns resolvem pôr a própria vida em risco e resistem. É esse tipo de acontecimento inesperado, que já havíamos presenciado nas tentativas de suprimir a Maidan em 2013-14, que os realistas têm dificuldade em explicar. Porque os corpos resistentes se subtraem dos cálculos efetuados pelas relações de forças do campo do poder. “Là où il y a pouvoir, il y a résistance”! (Foucault).
A calculadora realista emperra. É a insuficiência irredutível da Realpolitik, a incapacidade de diferenciar a natureza do poder: quando opera dentro das estratégias metrificáveis do poder, e quando é subvertido do interior pelo gesto da resistência. Quando é tocado por um Fora que recria o quadro geral inicial.
Maquiavel é tido por pai da política moderna, logo, do realismo político. Contudo, quem ler “Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio” vai encontrar um Maquiavel bem diferente, fora da vulgata, um Maquiavel não maquiavélico, sobre a coragem de defender a própria liberdade. Nada a ver com a liberdade do liberalismo econômico, a do pensamento do florentino é a liberdade enquanto virtude cívica, essa que os ucranianos estão espantosamente atualizando.
Ainda segundo a lógica adotada da esquerda anti-imperialista, o Fim da História (o Pensamento Único, o Consenso de Washington etc) não foi colocado em xeque porque Putin teria exposto o declínio do império americano e reaberto a multipolaridade. Essa reflexão tem pelo menos 30 anos de atraso (ver por todos “Império”, de Negri e Hardt). Engano.
O Fim da História foi colocado em xeque quando os ucranianos colocaram os corpos na frente dos blindados, quando impediram o acesso às usinas nucleares, quando rebocaram os tanques com seus tratorzinhos. O trator-símbolo das coletivizações forçadas de Stálin reapropriado pela resistência cidadã, doravante ícone contra as aspirações de glória imperial.
Então volto a perguntar, onde que está o anti-imperialismo no alinhamento com Putin? Só pode estar na ideia que, da perspectiva da formação nacional brasileira, é melhor um mundo em que haja mais de uma potência imperial. Não apenas os EUA e o Consenso de Washington, mas também a Rússia e a China e o Consenso de Beijing.
Mesmo que nas costas da Ucrânia e dos povos bálticos ou do Leste Europeu; ou de Taiwan, das ilhas do Mar da China e dos povos vizinhos aos chineses. Mesmo que contra o fato imenso da resistência, contra as primaveras, contra a Maidan, contra quem coloca os corpos desmedidamente diante dos opressores melhor armados; não importa. O que importa é um mundo multipolar no qual poderemos enganchar de maneira mais estratégica os nossos interesses nacionais.
Que maravilha de mundo. É esse o projeto? Ainda com toda a empatia peço apenas que não se diga esquerda “anti-imperialista”, mas “multi-imperialista”. Para que as botas na cara das pessoas sejam de diferentes bandeiras, ainda que continuem sendo botas.