Militares deixaram de ser vistos como o lado racional do governo, diz pesquisador

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23 Fevereiro 2021

A compra de 714 mil quilos de picanha e 80 mil unidades de cervejas por membros do Exército e da Marinha em 2020, com indícios de superfaturamento, é apenas um capítulo da deslegitimação da Forças Armadas no Brasil. A avaliação é de João Roberto Martins Filho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Martins Filho, que criou em 1996 o Arquivo de Política Militar Ana Lagôa e foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (2005-2008), concedeu entrevista ao Brasil de Fato para comentar o que está por trás de mais essa denúncia. “Inicialmente, havia uma expectativa de que as Forças Armadas seriam o lado racional do governo. Como Bolsonaro já tinha a fama de ser uma pessoa extremada, esperava-se que a racionalidade e a tutela militares poderiam ‘civilizá-lo’, de alguma forma”, lembra o especialista.

Passados dois anos de governo, Martins Filho avalia que essa expectativa não se realizou. “As Forças Armadas estão pagando por terem se associado a um cara como Bolsonaro”, analisa. Para além da postura do capitão reformado, o pesquisador das Forças Armadas chama atenção para a narrativa infundada de que os militares seriam moralmente superiores ao restante da população. “O que choca sempre é que temos Forças Armadas altamente presunçosas, na ideia de que eles são melhores que os civis. Por outro lado, conforme vai se jogando luz ao que acontece lá dentro, vemos que os problemas são muito semelhantes aos que ocorrem na burocracia civil – como é o caso das compras superfaturadas”, afirma.

João Roberto Martins Filho é o organizador da coletânea de textos Os militares e a crise brasileira (Alameda Editorial, 2020), com pré-venda a partir desta segunda-feira (22).

A entrevista é de Daniel Giovanaz, publicada por Brasil de Fato, 22-02-2021.

Eis a entrevista.

Os militares não apenas compraram picanha e cerveja com preços muito acima do que acostumados a ver nos supermercados, como também incluíram esses pedidos em processos licitatórios ao longo de 2020. Essa afronta pode ser lida como um sintoma de que eles se sentem intocáveis por sua presença no governo Bolsonaro?

Seria muito útil se houvesse uma sequência histórica desses pedidos, para compararmos com anos anteriores e ver se aumentou no governo Bolsonaro.

A doutrina do general Villas Bôas [comandante do Exército de 2015 a 2019] diz que a atuação do Exército se baseia em legitimidade, estabilidade e legalidade. Em 2018, em uma reunião do alto comando do Exército, o general Rêgo Barros, que era o chefe do centro de comunicação social, apresentou um powerpoint mostrando como o trabalho deles durante anos tinha melhorado a imagem do Exército.

Então, no caso da notícia que você citou, o que me chama atenção não é tanto a especificidade do que foi comprado – porque é difícil estimar a quantidade de carne necessária para alimentar 200 mil pessoas do Exército –, mas a recepção favorável da imprensa a qualquer matéria que aponte abusos das Forças Armadas. A imprensa está com olhar muito crítico sobre as Forças Armadas, e a perda de legitimidade tem sido muito grande.

Esse processo gera um contraste com aquela imagem arrogante do Exército, que se considera moralmente superior e separado do restante da sociedade, sem admitir nenhum tipo de interferência. Quase todos os dias têm uma notícia negativa sobre as Forças Armadas. E o que me espanta é que elas não percebem que sua participação e apoio ao governo Bolsonaro tem um custo muito alto.

Por que a mídia hegemônica estaria disposta, mais do que em outras épocas, a publicar matérias que afetam a legitimidade das Forças Armadas?

Tem um claro elemento político. Inicialmente, havia uma expectativa de que as Forças Armadas seriam o lado racional do governo. Como Bolsonaro já tinha a fama de ser uma pessoa extremada, esperava-se que a racionalidade e a tutela militares poderiam “civilizá-lo”, de alguma forma.

Essa expectativa ficou clara nos artigos dos principais colunistas do país ao início do governo. Mas isso foi, pouco a pouco, se desgastando.

A imprensa sempre foi muito amiga das Forças Armadas. Mas, já que entre os sócios de Bolsonaro estão os militares, a imprensa passou a atacá-los como forma de atacar Bolsonaro – e os militares deram inúmeras razões para isso.

Eles demoraram muito a agir, por exemplo, no caso dos incêndios da Amazônia. E quando agiram, foi no sentido de enfraquecer órgãos como o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e o Instituto Chico Mendes [ICMBio].

O pior de tudo foi quando eles ocuparam e desmantelaram o Ministério da Saúde, que tinha grande capacitação técnica. A sociedade, obviamente, está indignada com o fato de não termos vacinas suficientes. E quem é o ministro? Um general. Quem é o secretário do ministro? Um coronel.

A população recebeu a notícia dos “80 tiros” no Rio de Janeiro, do integrante da Aeronáutica flagrado com cocaína em um avião da comitiva presidencial. Então, a questão do “churrasco” é só mais uma nesse processo de deslegitimação.

Os militares se acomodaram aos cargos e benesses concedidos pelo governo federal, ou há algum tipo de reação no interior das Forças Armadas?

Houve uma sequência de acontecimentos. Primeiro, a demissão do general Santos Cruz [da Secretaria de Governo] – que, embora tenha sido um dos principais artífices da vitória de Bolsonaro, brigou com os filhos dele. Isso polarizou os generais.

Depois disso, tivemos o processo de desmoralização mais profundo. O general Heleno foi flagrado xingando o Congresso, em uma demonstração de absoluta rudeza, falta de educação. Tem ainda a gravação da reunião ministerial de 22 de abril, em que Bolsonaro se revela um governante completamente descontrolado: os generais, ali do lado, não manifestam a menor discordância.

Está consolidada a ideia de que, se alguém discordar do Bolsonaro, ele põe para fora do governo, mesmo que seja um general.

Mais recentemente, quem articulou a compra de votos do “Centrão” foi o general Ramos [ministro da Secretaria de Governo], recém-saído do Exército. E claro, temos o general Pazuello, que ainda é da ativa. Qual imagem ele passa para a sociedade? Tem alguém que acha que ele está gerindo bem a crise da covid?

Embora as críticas mais frequentes se concentrem no Exército, você avalia que a Marinha e a Aeronáutica também aderiram completamente ao atual governo?

Nesse altura do campeonato, Bolsonaro já deixou claro que age de forma explosiva contra tudo que o contrarie. Não é um governo que permite discordâncias.

Bolsonaro recebeu amplo apoio na Marinha e na Aeronáutica para ser eleito presidente da República. Tenho informações de que alguns almirantes, dos mais conhecidos na reserva, articularam o apoio da Marinha à candidatura dele, e ainda hoje Bolsonaro é considerado um “mal menor” diante da possibilidade da esquerda voltar ao poder.

A que se deve o receio das Forças Armadas de que um governo de esquerda seja eleito em 2022?

É ideológico. Uma das mentiras que Bolsonaro reafirma o tempo todo é que as Forças Armadas foram muito prejudicadas nos governos Fernando Henrique Cardoso [PSDB] e do PT.

Se lemos o depoimento do general Villas Boas, ele realmente fala que as Forças Armadas perderam muita verba no governo Fernando Henrique, mas houve uma melhoria significativa no governo Lula [PT]. Inclusive, ele fala que o governo Lula começou modernizando os veículos das Forças Armadas.

Villas Boas deixa claro que a questão é ideológica. Em primeiro lugar, eles imitaram o que a sociedade civil estava fazendo, que era expressar indignação com a corrupção. Segundo, se sentiram traídos por Dilma [PT], por conta da Comissão Nacional da Verdade. Ele também cita descontentamento com discursos posteriores em que o PT disse que deveria ter feito mudanças no ensino militar, etc.

O que ele não cita, mas está implícito, é que o problema do PT é ser um partido de esquerda. Villas Boas fala várias vezes no livro que, para ele, o problema do Brasil é o “politicamente correto”, a defesa dos direitos das minorias. Ele chega a falar que a China conseguiu uma revolução em 30 anos porque lá não existe o “politicamente correto”.

O que choca sempre é que temos Forças Armadas altamente presunçosas, na ideia de que eles são melhores que os civis. Por outro lado, conforme vai se jogando luz ao que acontece lá dentro, vemos que os problemas são muito semelhantes aos que ocorrem na burocracia civil – como é o caso das compras superfaturadas.

E isso tudo pesa porque eles estão com muito poder, muita exposição. Em outro momento, pouca gente ligaria, mas agora isso vira primeira página de jornal.

Você deixa claro que os militares que hoje fazem parte do governo Bolsonaro estão cada vez mais desmoralizados. Existe uma ala que não foi nomeada pelo presidente para nenhum cargo, ou que se recusou a fazer parte do atual governo? Como ela se configura e que papel pode desempenhar na recuperação da imagem das Forças Armadas?

Para entrar nesse ponto, precisamos falar de outro escândalo. Em um governo que se submeteu servilmente a um presidente dos Estados Unidos, qual foi a atitude dos militares? Um ou dois pediram demissão, apenas. Se os demais achassem isso um absurdo, teriam saído também.

Pode chegar um momento em que os militares se deem conta de que a imagem deles desabou, principalmente nos setores mais informados da opinião pública. Mas, hoje, não temos nenhuma evidencia de que a média oficialidade estaria se distanciando de Bolsonaro. Tudo indica que não está, por incrível que pareça.

Essa conivência com a postura do atual presidente está relacionada a mudanças no perfil das Forças Armadas que são anteriores ao bolsonarismo?

Sim, já havia sinais disso. Para mim, inclusive, foi muito difícil aceitar que os militares estavam pragmaticamente se aproximando de uma aliança com os Estados Unidos antes mesmo do Bolsonaro. Outra coisa que demoramos a perceber, porque os militares fizeram questão de esconder isso, é que eles não se adaptaram à cultura democrática, ao controle civil.

A ideia que a gente tinha é que os governos civis poderiam ter avançado até mais, afinal, o que é que os militares poderiam fazer? Hoje, vemos que eles fizeram: começaram a articular a volta da direita ao poder. Quando eles afirmavam “não vamos dar golpe”, não quer dizer que estavam submetidos à cultura democrática. Quer dizer que já estavam preparando uma forma de subir ao poder sem precisar dar um golpe. É lógico que isso tem um ônus, porque Bolsonaro é uma pessoa incontrolável.

A um ano e meio das eleições de 2022, existe algum assunto dentro do governo ou acontecimento que poderia provocar atrito ou mesmo um desembarque por parte das Forças Armadas?

No momento, acho muito difícil. Tivemos mais de 240 mil mortes [por covid-19], e não aconteceu nada. O governo ainda é deles, dos militares. “É um governo ruim, mas é o nosso governo”, eles pensam. Além disso, tem milhares deles recebendo adicional de salário para trabalhar no governo. Eles sempre falam que são patriotas, mas quem é que vai querer renunciar a esses R$ 10 mil, R$ 15 mil por mês?

Desde 2013, manifestações de rua da direita “contra a corrupção” trazem cartazes com pedidos de intervenção militar. Esse clamor de parte dos conservadores deve ser afetado pelas notícias de corrupção nas Forças Armadas?

Essas matérias não acessam os grupos fascistas, de direita. Eles simplesmente fecham os olhos e continuam acreditando que o melhor caminho é o fechamento do Supremo Tribunal Federal com o uso de tropas militares. Os próprios militares sabem que esse é um caminho sem volta.

Sob a liderança do Villas Boas e do general Etchegoyen [ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional no Governo Temer], os militares perceberam que o caminho era encontrar um espaço cada vez maior nos governos civis. Eles começaram a fazer isso recriando o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e fortalecendo a presença militar dentro do Estado a partir do governo Michel Temer.

Não podemos esquecer que a Dilma acabou com o GSI, que foi recriado pelo Etchegoyen no governo Temer. O general Etchegoyen não entrou no governo Bolsonaro, e não sabemos que tipo de antipatia há entre eles. Mas o livro do Villas Boas deixa claro que o Etchegoyen foi uma figura-chave no que eles chamam de “fim da era do politicamente correto”.

Para além da ala fascista, o debate sobre a necessidade de controle civil sobre os militares tende a ganhar força?

O momento é desfavorável para isso. Mas, realmente, há um questionamento crescente entre a juventude, professores, jornalistas. São setores minoritários, mas com grande poder de formar opinião. Na sociedade, de maneira geral, esse desgaste já está ocorrendo.

Se os militares não estão dispostos a um golpe, quais as perspectivas: eles devem se submeter gradativamente ao controle civil, qualquer que seja o governo eleito em 2022, ou devem trabalhar, em parceria com Bolsonaro, para tornar a gestão menos transparente e dificultar o acesso a dados públicos?

No momento, o que está se encaminhando nas Forças Armadas é um apoio unânime à eleição de Bolsonaro, o que garantiria oito anos no poder. Eu, infelizmente, não vejo dentro das Forças Armadas um pensamento democrático. Seja na Força Aérea, na Marinha, não consigo enxergar isso. O governo tenta o tempo todo destruir as instituições democráticas, e não vemos nenhum militar sair do governo.

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