Uma ex-gerente do Google explica o problema do Vale do Silício: big tech fechadas em uma bolha

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10 Dezembro 2020

As big tech fascinam e povoam os sonhos ambiciosos de muitos jovens, até mesmo italianos. Google, Apple, Amazon estão entre os favoritos dos graduados em engenharia, negócios e direito. E o salário não é o único motivo: a vontade de inovar e ter um impacto no mundo desempenha um papel importante, assim como encontrar-se em um ambiente criativo, com muitos benefícios relacionados. Mas, como já aprendemos com os noticiários, os gigantes do Vale do Silício não são apenas isso.

A reportagem é de Marco Cimminella, publicada por Business Insider, 07-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Deixando de lado de questões tributárias, investigações antitruste e problemas sociais ligados às suas atividades, muitos deles têm uma característica comum: “São empresas data cêntricas, onde a análise de dados representa a única chave para interpretar a realidade. E tendem a ter uma visão única, sendo gigantes fundados por, ou onde trabalham, engenheiros que têm a mesma idade e background acadêmico, que fazem parte da mesma etnia (brancos e asiáticos), gênero e classe social", explica a Business Insider Itália Jessica Powell, ex-chefe de relações públicas da Google. “Uma homogeneidade cultural que condiciona inevitavelmente as suas escolhas, de forma que quando dizem que pensam e criam para o mundo inteiro e para a sua melhoria, na realidade pensem e criem para muitas pessoas que são semelhantes a eles”.

Precisamente essa corrente única de pensamento que caracteriza a indústria tech é o tema dominante do livro de Powell: “The Big Disruption. A Totally Fictional But Essentially True Silicon Valley Story (A Grande Destruição. Uma história completamente fictícia, mas essencialmente verdadeira, do Vale do Silício [em tradução livre]). A sátira, publicada na Itália pela Campanotto Editore, é uma crítica a uma cultura dominante que encerra o Vale do Silício em uma bolha, forçando-a a rejeitar qualquer input positivo que possa vir de fora. E isso condiciona fortemente o processo criativo: “É natural que se tenha a tendência de pensar de uma forma única se todas as pessoas que estão à mesa na sala são homens. Lembro-me que algum tempo atrás discutíamos a criação de chaves de segurança (sistema de autenticação de dois fatores por meio de uma chave USB). Dizia-se que deviam caber nos bolsos, mas ninguém refletia sobre o fato de que as roupas femininas têm bem poucos bolsos. É isso, esse tipo de atitude também pode ser visto nas pequenas coisas”.

Não é apenas uma questão de falta de diversidade de gênero, etnia ou classe social. Tudo é lido e interpretado apenas com a lupa dos dados. “De um certo ponto de vista, é algo razoável: os dados mostram os comportamentos dos usuários e nos ajudam a entendê-los. Mas contar apenas com eles para explicar a realidade comporta certo nível de abstração que pode ser prejudicial”, enfatiza Jessica Powell. Ela especifica: “Imagine que 0,01 por cento dos usuários em uma plataforma esteja fazendo coisas perigosas, como suicídio ao vivo ou atos de bullying. Uma sociedade centrada em dados se preocupa pouco com essa pequena porcentagem, aliás, dirá que, com base nos dados, a grande maioria dos usuários está tendo uma experiência positiva. Aquela pequena parcela torna-se desprezível: na realidade, por trás dela existem histórias humanas, e mesmo que a porcentagem seja realmente exígua, esses comportamentos negativos têm consequências na vida das pessoas e na sociedade”.

Ambiente sexista e desejo de expansão

No livro, o tema do sexismo que permeia o setor tech é continuamente abordado. Como quando os engenheiros de Anahata, empresa líder em tecnologia do Vale do Silício e protagonista da sátira, discutem como melhorar o design do carro sem motorista. O objetivo é tornar a viagem uma experiência social, permitindo que os veículos uniformizem autonomamente suas velocidades para permitir que as pessoas em carros diferentes se conheçam e conversem entre si.

“Mas suponhamos que o carro B esteja correndo. O carro A acelera para alcançá-lo, mas eventualmente excede o limite de velocidade e leva uma multa. Isso seria algo ruim, a menos que a pessoa no carro B seja uma mulher muito sexy. Nesse caso, eu não me preocuparia mais com a multa”, diz Sven. "O verdadeiro problema é como decidir se o passageiro do carro B é atraente o suficiente para o passageiro do outro carro para correr o risco de ser multado por excesso de velocidade". “Existem sim”, responde Roni: “Precisamos de um índice de atração ... Vamos recuperar as informações sobre seu perfil, altura, peso e assim por diante. E com base nelas atribuímos um score de beleza”…“Poderíamos no final monetarizar a função simétrica”, diz Jonas, “por exemplo, poderíamos torná-lo mais atraente para os outros passageiros se você pagar para fazer ajustes à sua imagem”.

“Acredito que o ambiente tech seja sexista, com certeza. Pense no que escreveu Susan Fowler. Com base na minha experiência pessoal, posso dizer que nunca trabalhei em uma empresa de tecnologia onde não tivesse ouvido de engenheiros do sexo masculino que as mulheres não são boas nas disciplinas de engenharia", diz Jessica Powell, observando, no entanto, que" não se trata de um problema específico deste setor, mas também diz respeito a outros setores econômicos. A diferença é que os gigantes do Vale do Silício têm essa visão de superioridade, se veem como realidades diferentes e melhores que todas as outras. Faz parte da sua história: 'Estamos democratizando isso, estamos melhorando a sociedade, vocês não podem nos tratar como uma empresa normal'. Nesse ponto, entretanto, você deve estar pronto para ser julgado com base nesse padrão”.

Esse aspecto de se sentir únicos e melhores, de criar produtos e serviços com o objetivo de melhorar o gênero humano, ainda que com uma lógica perene de monetização na base de cada projeto, está onipresente nos diálogos dos engenheiros do Anahata.

"Verdade? Todo produto tem que resolver um problema no mundo?” ele perguntou.

Jonas encolheu os ombros. “Cabe ao marketing da equipe de RP descobrir como. Nós criamos o produto e eles comunicam ao público como a humanidade melhora. Então, por exemplo, o motor de busca da Anahata ...”

“Está democratizando o conhecimento”, acrescentou Sven.

“E os anúncios da Anahata…”

“Eles oferecem novas oportunidades para pequenas empresas”

Anahata Maps …”

“Permite que garotos pobres como Jonas, que não têm acesso a comida e roupa, descubram lugares distantes na internet”.

“Não se trata apenas de ganhar dinheiro. Esse é um interesse comum de toda empresa que vive e compete em uma sociedade capitalista, mesmo que se fale o tempo todo em melhorar a experiência dos usuários. As empresas tech compartilham um forte desejo de expansão, de se estender a outros mercados”, continua a ex-gerente da Google. “Uma tendência alimentada pela visão de que seus concorrentes estão se comportando da mesma maneira. E é assim que uma livraria online passa a ser um store que vende de tudo e depois compra também redes de alimentos”.

O debate sobre o poder dos gigantes tech está mais vivo do que nunca. Gigantes como Google, Facebook, Amazon, Apple foram inundados por críticas, acusados de usar a enorme quantidade de dados que possuem sobre consumidores e outras empresas para fortalecer uma posição de monopólio às custas da concorrência. Um relatório da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos de outubro passado apontou que "empresas que antes eram startups desafiando o status quo agora se tornaram aquele tipo de monopólio que vimos pela última vez durante o tempo dos barões do petróleo e das ferrovias".

“Nos Estados Unidos, existe uma grande preocupação com a privacidade, comum a republicanos e democratas, mas também com questões que envolvem liberdade de expressão e moderação de conteúdo. Somado a isso está o estado geral de ansiedade e agitação sobre os efeitos da dominação generalizada das gigantes tech”, continua Jessica Powell. Uma mistura que aumenta as pressões por maior regulamentação para conter sua expansão. No entanto, explica a autora de The Big Disruption, “há algo único no Vale do Silício, em seu espírito, onde tudo se torna possível. Uma forma de raciocínio para a qual nada é imutável, nem mesmo tradições, práticas e costumes que se repetem há muito tempo. Uma abordagem que leva a sempre se perguntar por que as coisas foram feitas de uma determinada maneira e nunca foram mudadas. A vontade de inovar continuamente”.

É por isso que quem coloca as big tech no pedestal deveria olhar o Vale do Silício com um olhar mais desencantado, admirando seu poder criativo, mas também levando em consideração seus defeitos. “Os jovens formados que sonham em trabalhar para estas grandes empresas devem ter entusiasmo pelo progresso tecnológico, mas sem perder de vista os princípios éticos que regem a nossa sociedade”. Talvez amar o Vale também signifique se comprometer a mudar o que nele não funciona.

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