Como a visão utópica do Vale do Silício pode estar levando o mundo ao capitalismo brutal

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18 Agosto 2017

“O mantra do Vale do Silício é que a disrupção sempre é boa. Que com os telefones inteligentes e a tecnologia digital é possível criar serviços mais eficientes, mais cômodos e rápidos. E que todo mundo ganha com isso. Entretanto, por trás do desenho desse aplicativo maravilhoso ou dessa impecável plataforma está se desenvolvendo uma forma brutal de capitalismo, que está deixando de fora alguns dos setores mais pobres da sociedade”, escreve Jaime Bartlett, escritor sobre tecnologia, em reportagem publicada por BBC Mundo, 13-08-2017. A tradução é do Cepat.

Eis a matéria.

Os deuses da tecnologia estão vendendo a todos nós um futuro mais brilhante. “Somos uma comunidade global”, dizem. “Com a tecnologia em nossos bolsos, podemos recuperar nossas cidades”, prometem. “Não queremos ser parte do problema. Somos e continuaremos sendo parte da solução”, asseguram.

Mas, a promessa do Vale do Silício em construir um mundo melhor se baseia em romper com o que temos hoje. Esse rompimento é o que chamam de disrupção e os que a praticam se chamam disruptores, ainda que a palavra não apareça na Academia Real da Língua.

A esperança

De perto, o Vale do Silício é visto como muito normal. Inclusive um pouco entediante. O que é o que faz desse lugar uma força de mudança em todas as nossas vidas?

Provavelmente, um bom lugar para buscar a resposta é na Rainbow Mansion, ou Mansão Arco-íris, “uma comunidade intencional de pessoas que trabalham para otimizar a galáxia”.

A mansão é o lar de um montão de nômades globais que chegaram ao Vale do Silício para realizar seus sonhos. Por toda a casa há pessoas trabalhando para resolver algum dos problemas mais urgentes do mundo.

“Estou procurando fazer a conversão do CO2 por meio da energia ultravioleta do Sol. Assim é possível reverter a mudança climática... Quimicamente, é totalmente possível”, disse um dos jovens.

“Nosso hambúrguer feito de plantas utiliza uma pequena fração da terra, a água, sem as emissões de gases do efeito estufa de um hambúrguer tradicional”, conta entusiasmada uma jovem. “Somos exploradores, estamos descobrindo novos mundos”, afirma outro.

Bill Hunt, ao contrário, é um veterano: já criou cinco empresas que vendeu por 500 milhões de dólares. O que pensa ele da atitude daqueles que estão na Rainbow Mansion?

“Aqui, há uma mentalidade que está muito centrada na disrupção”.

Aí, está. A ideia mais poderosa na ideologia do Vale do Silício. Ruptura.

“Trata-se de pensar: como nos desfazemos desta indústria, arquitetura ou sistema anterior e encontramos uma nova e melhor forma de fazer as coisas?”.

Rainbow Mansion reúne o sonho do Vale do Silício: a ideia de que munido com um pouco de tecnologia e um pensamento, realmente, você pode mudar o mundo, melhorar radicalmente a vida de milhões de pessoas. E os deuses tecnológicos a professam com o mesmo fervor: perturbar significa mudar, e tudo soa esperança.

No entanto, por trás dos ideais que assinalam para a disrupção incentivada pelo Vale do Silício há uma realidade empresarial mais tradicional.

Dinheiro duro e frio

Os startups chegam ao Vale do Silício atraídos por outra grande indústria: a do capital de risco. Os financiadores apostam milhares de dólares em empresas jovens, com a esperança de encontrar outro Facebook ou Google. Contudo, o investimento tem uma consequência.

Os fundadores das duas startups mais valiosas, Airbnb e Uber, atraíram milhares de milhões de dólares de capital de risco, apesar do serviço Airbnb acabar de começar a obter lucros e a companhia Uber ter perdido milhares de milhões de dólares.

Talvez, mais que lucros, os capitalistas de risco querem ver o potencial de lucros e isso cria uma grande pressão sobre estas empresas. Precisam demonstrar que sempre estão crescendo. O mantra dos startups é aumentar o número de clientes.

Mas, o que isso significa na missão do Vale do Silício em construir um mundo melhor?

O caso da Uber

Entre todas, a Uber é a companhia de tecnologia que mais arrecadou dinheiro: mais de 16 bilhões de dólares. Não é uma companhia de táxis. É um novo tipo de rede de transporte. Possui apenas oito anos e já opera em mais de 450 cidades, em 76 países.

Qual é a verdade sobre o tipo de mundo que a Uber está construindo?

Uma visão

“A visão é deixar de lado a ideia de que todo mundo precisa conduzir seu próprio carro para onde quer que vá”, destaca Andrew Salzberg, diretor de transporte da Uber. “Em lugares como os Estados Unidos, a esmagadora maioria das viagens são feitas por pessoas que conduzem seu próprio carro, e isso tem muitas consequências. Não só em termos do número de veículos que precisam possuir, mas na maneira como se concebem as cidades, a quantidade de fatalidades, o impacto ambiental”.

Uma pura expressão da utopia do Vale do Silício. Trata-se de uma empresa lucrativa ou de uma missão social?

“Obviamente, estamos aqui para ganhar dinheiro como um negócio privado. Mas, na medida em que começa a entrar em diferentes lugares e muda a maneira como as pessoas utilizam os veículos, então torna possível o outro”.

Uma realidade

Em todo o mundo, os taxistas tradicionais protestaram contra a Uber por rebaixarem seus preços. Trata-se de uma disrupção clássica do Vale do Silício: destruir indústrias tradicionais, proporcionando uma alternativa popular e barata. Contudo, o custo social desta disrupção vai muito além.

A Índia é o lar de mais de 1 bilhão de pessoas e o principal objetivo da Uber para sua expansão global. Em Hyderabad, é possível ver as consequências humanas da disrupção feita em San Francisco. A Uber chegou prometendo um novo tipo de trabalho flexível, que empodera os motoristas.

Sem lucros e sob uma enorme pressão de crescer para enfrentar a um forte rival local, a Uber publicou anúncios em painéis publicitários e na imprensa, prometendo aos motoristas até 1.400 dólares por mês, quatro vezes mais do que normalmente ganhavam.

Como na Índia muitos não possuem carro, especialmente os possíveis motoristas da Uber, a companhia ofereceu ajuda para obter empréstimos para comprar carros novos. Assim, o número de motoristas foi aumentando, mas o número de clientes não, razão pela qual os lucros caíram.

Como já não precisava tanto dos motoristas, a companhia fez um corte nos incentivos. Para algumas famílias, a vida mudou completamente, após a promessa da Uber se tornar um pesadelo.

Mohammed Zaheer trabalhou como taxista. Quando a Uber chegou na Índia, entusiasmou-se. Fez um empréstimo de 11.000 dólares para comprar um carro, mas pouco depois seus lucros baixaram, assim como ocorreu com muitos outros. Em 2015, Mohammed participou de uma greve de motoristas da Uber pela queda nos lucros. Pouco depois, suicidou-se. Seu corpo foi levado ao escritório da Uber. A companhia não respondeu. Outros dois motoristas da Uber se suicidaram em Hyderabad.

Um ex-executivo da Uber, que conversou com a BBC na condição de anonimato, aceitou que “os motoristas fossem enganados”, pois não os advertiram que seus salários e incentivos poderiam mudar. “É isso o que realmente causou tanta dor em muitas pessoas”, acrescentou.

O mantra do Vale do Silício é que a disrupção sempre é boa. Que com os telefones inteligentes e a tecnologia digital é possível criar serviços mais eficientes, mais cômodos e rápidos. E que todo mundo ganha com isso. Entretanto, por trás do desenho desse aplicativo maravilhoso ou dessa impecável plataforma está se desenvolvendo uma forma brutal de capitalismo, que está deixando de fora alguns dos setores mais pobres da sociedade.

Em uma declaração, a Uber disse que seu coração estava com a família da vítima. Que apoiou a investigação das autoridades sobre este caso e que continuará agindo desse modo, se for solicitada. Afirmou que os motoristas são a essência do que fazem e que estão comprometidos em melhorar sua experiência. E que na Índia está atuando de acordo com as lições aprendidas.

De volta ao Vale do Silício

Os titãs tecnológicos conseguiram nos persuadir de que não são como outras empresas, como as petroleiras, os bancos ou as grandes farmacêuticas, que só se importam com benefício econômico. As do Vale do Silício, ao contrário, são inspiradas pelo propósito social de melhorar o mundo.

Os fundadores do Airbnb, por exemplo, estão conectando o mundo, não simplesmente permitindo que as pessoas coloquem avisos para alugar casas. O Airbnb é uma gigante mundial, avaliado em cerca de 31 bilhões, mas não se vê como um grande negócio.

Uma visão

Na sede mundial da empresa em San Francisco, Chris Lehane, que era conhecido como “o mestre do desastre”, pelo manejo com escândalos como o do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e Monica Lewinsky, explicou à BBC sua visão.

“Gostamos de pensar que somos um tipo diferente de empresa. A ideia inicial dos fundadores foi a de que você pode fazer dinheiro com o que normalmente é o seu maior gasto: sua casa, e isso continua valendo hoje em dia”. “Mais da metade das pessoas que estão na plataforma são pessoas de rendas baixas a moderadas, que a utilizam para cobrir os gastos básicos”.

“A visão de nossos fundadores era poder usar a plataforma para conectar pessoas com pessoas”. “No mundo atual, há gente falando em construir muros, fechar portas, colocar barreiras. Este é um lugar que está realmente centrado no uso da tecnologia para ajudar a criar uma sociedade aberta”.

Uma realidade

Airbnb afirma que os únicos perdedores com sua disrupção é a tradicional indústria hoteleira. Mas, isso não é o que se sente em Barcelona. Os locais se queixam de que os aluguéis na cidade estão subindo para todos, pois os proprietários só pensam nos turistas. O governo local está tentando controlar o crescimento do alojamento turístico na cidade. Todas as propriedades de aluguel a curto prazo devem ter licença.

Contudo, não é só em Barcelona que houve protestos desse tipo. Em outras cidades do mundo, os moradores também expressaram seu temor pelo aumento do custo de vida trazido pelo Airbnb, que está interferindo nos locais.

O argumento clássico dos disruptores é que os reguladores, os governos, os políticos eleitos, precisam se atualizar, mudar suas políticas tendo em conta a nova realidade.

De fato, o Vale do Silício parece não ter muito boa opinião dos governos em geral. Isso é muito evidente quando se trata de pagar impostos.

Em seu quintal

Para se ter uma ideia da atitude do Vale do Silício em relação aos impostos, nada melhor que observar como as empresas se comportam em seu lugar de origem. No local onde estão Google, Apple, Facebook, as empresas pagam impostos sobre a propriedade a uma taxa de 1% do valor de todos os seus edifícios e equipes.

Larry Stone é o assessor do Condado de Santa Clara e seu trabalho é calcular o valor dessas propriedades. Ele ressalta que os gigantes tecnológicos tendem a não concordar com o valor que devem contribuir.

Uma das maiores batalhas por impostos está ocorrendo com a Apple. Quando estiver pronta, sua nova sede será a mais impressionante no Vale do Silício. Com uma circunferência de 1,6 km de largura, Apple Park será um Coliseu moderno.

“Nós dizemos que o valor da sede é de 6,8 bilhões de dólares. A Apple diz que vale 57 milhões”, explica Stone. “Estão disputando 99% de seu valor”.

Se a apelação da Apple tiver êxito em sua totalidade, os 68 milhões de dólares de impostos que as autoridades pensam que ela deve pagar seriam reduzidos a pouco mais de 0,5 milhões de dólares. E a Apple não é o único titã tecnológico que apresenta apelações por tributações à propriedade local.

Que repercussão essa atitude pode ter na sociedade? Afinal de contas, com os impostos locais se pagam as escolas e outros serviços.

“Nos anos 50, 60 e 70, Detroit era invejada pelo mundo. Hoje em dia, Detroit está falida. Poderemos seguir o mesmo caminho, caso não resolvamos nossa educação pública e nosso compromisso com a comunidade, como pessoas, como cidadãos e corporações”.

Em todo o mundo, os gigantes da tecnologia foram acusados de reduzir agressivamente suas faturas de impostos. Mas, a maneira como tratam localmente estes temas diz algo sobre a cultura destas empresas: o foco geral sempre é o de minimizar os impostos que pagam ou tentar passar por cima dos governos.

O risco desta onda de disrupção

É claro, a disrupção tecnológica não é nada novo. A energia a vapor, a eletricidade, as linhas de produção destruíram indústrias que existiam antes e obrigaram os governos a mudar. O mundo sobreviveu, a vida melhorou.

No entanto, esta onda de disrupção não é como a última, porque tem o potencial de romper com a forma como funciona o capitalismo. E nossas vidas poderão se transformar completamente.

A política, ao final, precisa ser capaz de assumir o controle desta tecnologia, assegurar-se de que seja feita de acordo com a medida da sociedade, de que não satisfaça unicamente os interesses de algumas poucas pessoas incrivelmente ricas da costa oeste dos Estados Unidos.

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