Ser humano e inteligência artificial: os próximos desafios do onlife. Entrevista com Luciano Floridi

Foto: Pixabay

28 Outubro 2020

Luciano Floridi, professor titular de Filosofia e Ética da Informação da Universidade de Oxford, é uma autoridade internacional no âmbito da filosofia da informação. Ainda em 1997, ele havia se distinguido como autor de um breve livro introdutório intitulado Internet, publicado pela editora Il Saggiatore.

 

Entre os seus cargos mais importantes, ele é diretor do Digital Ethics Lab do Oxford Internet Institute, também na Universidade de Oxford, é Turing Fellow e presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute.

 

Em 2014, chamou a atenção do público sobre aquela que ele apresenta como uma revolução epocal, que tornará cada vez mais difícil distinguir entre a vida online e offline (La quarta rivoluzione: come l’infosfera sta trasformando il mondo [A quarta revolução: como a infosfera está transformando o mundo], Milão: Raffaello Cortina, 2017).

 

Desde 2011, está em curso de publicação, pela Oxford University Press, a obra-prima que ele mesmo definiu como Principia Philosophiae Informationis. Trata-se de quatro volumes que, com sistematicidade, desenvolvem um verdadeiro sistema filosófico, relendo, à luz da filosofia da informação, os problemas clássicos dos principais âmbitos da filosofia, da metafilosofia à ontologia, da gnoseologia à antropologia, até a ética. O projeto está destinado a alcançar a filosofia política, assim que for concluído.

 

Acaba de sair a tradução italiana de parte do terceiro volume: Pensare l’infosfera: la filosofia come design concettuale [Pensar a infosfera: a filosofia como designa conceitual] (Milão: Raffaello Cortina, 2019), e o volume Il Verde e il Blu: idee ingenue per migliorare la politica [O Verde e o Azul: ideias ingênuas e para melhorar a política], pela mesma editora, que faz parte do quarto volume.

 

Esta entrevista foi concedida a Gian Paolo Terravecchia, especialista em filosofia moral da Universidade de Pádua, ocupando-se principalmente de filosofia social, filosofia moral, teoria da normatividade, fenomenologia e filosofia analítica. É coautor de manuais de filosofia pela editora Loescher.

 

A entrevista foi publicada por La Ricerca, 18-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Professor, há um termo que parece fazer par com biosfera, isto é, “infosfera”. Por que esse neologismo é útil? O que ele designa?

O termo circula há algum tempo. Eu o recuperei filosoficamente para falar de duas coisas. Por um lado, ele nos ajuda a definir o ambiente em que vivemos, feito de informações, fluxos de dados, interações com softwares e sistemas automáticos, em um misto de analógico e digital, e assim por diante. Nesse sentido, é uma atualização do velho termo “ciberespaço”. Aqui a utilidade está em abandonar a ideia de que há espaços separados, como se a infosfera fosse um lugar quase alheio, diferente, inatural, isto é, “ciber”, no qual entramos e saímos como e quando queremos.

Na realidade, a infosfera é o habitat cotidiano para bilhões de pessoas, cada vez mais, e cada vez mais comumente. Por outro lado, eu usei o termo “infosfera” ontologicamente, para falar da realidade em geral, em uma metafísica que interpreta o Ser de modo informacional. Se, de um ponto de vista informacional, tudo pode ser lido como feito de informação (pensemos no estruturalismo ou na filosofia da ciência), então “infosfera” e “Ser” se tornam correferenciais.

Neste caso, a utilidade está em poder apresentar, com clareza e – espero – convicção, uma forma de Monismo relacional que me parece mais condizente com a nossa época: só existe um Ser, mas o Ser é uma rede (não um conjunto de elementos, como maçãs no cesto), em que as relações constituem os nós (as coisas, que são como as rótulas constituídas de estradas), com articulações (o múltiplo) e transformações (o devir).

 

Você cunhou o termo onlife. Pode nos explicar?

Eu o cunhei para fazer referência à vida na infosfera, onde não faz mais sentido perguntar se você está online ou offline, conectado ou não conectado. Pense em como o nosso celular nos geolocaliza continuamente, como o nosso relógio mede as nossas atividades físicas ou no fato de que temos à disposição todas as informações constantemente, a apenas um clique de distância. A cozinha é um lugar onde a Alexa ou um relógio digital que se atualiza automaticamente com um sinal de rádio convivem com o sal e a pimenta. Como expliquei com uma metáfora, vivemos cada vez mais na foz do rio, ou seja, onlife, onde perguntar se a água é doce ou salgada (se estamos online ou offline) não faz sentido, pelo contrário significa não ter entendido onde se está, porque ali a água é salobra.

 

 

Esses novos dispositivos – você mencionou a Alexa e os relógios digitais – estão mudando as nossas vidas. Os celulares, especialmente desde que evoluíram nos smartphones, nos tornam cada vez mais encontráveis, mas também, de algum modo, nos forçam a estar disponíveis para os outros. Para dar outro exemplo, a facilidade da fotografia com os smartphones permite a satisfação do desejo de capturar o instante, mas também dificulta esquecer o evento. Em suma, estamos vivendo as alegrias e as fadigas da infosfera. Para onde estamos indo? Para o que precisamos nos preparar?

Trata-se de transformações profundas, mas às vezes também difíceis de perceber na sua natureza exata. Tomemos o caso da memória e do esquecimento. Viemos de uma experiência milenar, durante a qual o problema sempre foi o de que escolher, preferir, selecionar, privilegiar para que permanecesse para a “memória futura”. Hoje sabemos que, ao invés disso, o digital se acumula como a poeira em casa, e a nossa cultura parece cada vez mais uma cultura do apagamento: o que remover, editar, curar ou simplesmente não registrar. Não é uma passagem linear, de uma cultura da memória para uma cultura do esquecimento, porque também se acrescentam outras variáveis, particularmente a da fragilidade da memória digital.

No passado, eu cultivei a paixão pela história da filosofia e, ao longo de muitos anos, fiz pesquisas e acabei publicando um livro sobre a tradição manuscrita de Sexto Empírico. Pois bem, aqueles manuscritos que eu consultei em tantas bibliotecas e arquivos espalhados pela Europa e pelos Estados Unidos têm uma estabilidade analógica que o digital só pode invejar. As tecnologias se tornam obsoletas, os suportes se desmagnetizam, o conceito de programação tem uma radicalidade de reescrita que, no caso do digital, é total e muitas vezes irreversível. Fico feliz por ter uma cópia impressa das minhas teses, porque sei que aqueles floppy disks na mesma prateleira já são ilegíveis.

A vastíssima memória que estamos acumulando é também uma memória extraordinariamente frágil. E essa dialética entre memória e esquecimento, entre quantidade e fragilidade do que registramos, é apenas um dos muitos aspectos da nossa vida cultural que o digital está transformando. É por isso que há tanta necessidade de uma filosofia à altura dos novos desafios: devemos entender o presente de modo mais aprofundado para desenhar melhor o futuro, e não para entrar nele como se fôssemos sonâmbulos.

 

 

Fala-se muito de smartphones, de smartwatches, de sistemas inteligentes, em suma, o tema da inteligência artificial é fundamental para entender o mundo em que vivemos. Quão inteligentes são as chamadas “máquinas inteligentes”? Acima de tudo, a sua crescente inteligência criará em nós novas formas de responsabilidade?

É verdade, tudo é rotulado como “smart” ou “deep”: deep learning, deep neural networks. Brincando com o pessoal de Oxford, eu digo que não fazemos pesquisa sobre ethics ou philosophy, aquela que todo mundo faz. Nós fazemos pesquisa sobre deep ethics e smart philosophy... Mais seriamente, a inteligência artificial (IA) é um oxímoro. Tudo o que é verdadeiramente inteligente nunca é artificial, e tudo o que é artificial nunca é inteligente. A verdade é que, graças a extraordinárias invenções e descobertas, a sofisticadas técnicas estatísticas, à queda do custo da computação e à imensa quantidade de dados disponíveis, hoje, pela primeira vez na história da humanidade, somos capazes de realizar em escala industrial artefatos capazes de resolver problemas ou executar tarefas com sucesso, sem a necessidade de serem inteligentes. Esse descolamento é a verdadeira revolução.

 

O meu celular joga xadrez como um grande campeão, mas tem a inteligência da geladeira da minha avó. Esse descolamento epocal entre a capacidade de agir (o inglês tem uma palavra útil aqui: agency) com sucesso no mundo, e a necessidade de ser inteligente ao fazer isso escancarou as portas para a IA. Nas palavras de von Clausewitz, a IA é a continuação da inteligência humana com meios estúpidos. Falamos de IA e de outras coisas como o machine learning porque ainda não temos o vocabulário certo para lidar com esse descolamento. A única agency que conhecemos sempre foi um pouco inteligente, porque é, no mínimo, a do nosso cachorro. Hoje, quando temos uma totalmente artificial, é natural antropomorfizá-la. Mas acho que, no futuro, vamos nos acostumar com isso. E, quando se disser “smart”, “deep”, “learning”, será como dizer “o sol nasceu”: sabemos bem que o sol não vai a lugar nenhum, é um velho modo de dizer que não engana ninguém. Isso continua sendo um risco, entre muitos, que eu gostaria de enfatizar.

 

 

Acabei de mencionar alguns dos fatores que determinaram e continuarão a promover a IA. Mas o fato de a IA ter sucesso hoje também se deve a mais uma transformação em andamento. Vivemos cada vez mais onlife e na infosfera. Esse é o habitat em que o software e a IA estão em casa. Os algoritmos são os verdadeiros nativos, não nós, que continuaremos sempre sendo seres anfíbios, ligados ao mundo físico e analógico. Pensemos nas recomendações nas plataformas. Tudo já é digital, e os agentes digitais têm a vida fácil de processar dados, ações, estados de coisas igualmente digitais, para nos sugerir o próximo filme que poderia nos agradar. Tudo isso absolutamente não é um problema, pelo contrário, é uma vantagem.

 

Mas o risco é que, para fazer a IA funcionar cada vez melhor, transforme-se o mundo à sua dimensão. Basta pensar na atual discussão sobre como modificar a arquitetura das estradas, da circulação e das cidades para possibilitar o sucesso dos carros autônomos. Quanto mais o mundo for “amigável” (friendly) em relação à tecnologia digital, melhor esta funcionará e mais seremos tentados a torná-lo mais friendly, a ponto de sermos nós a termos que nos adaptar às nossas tecnologias, e não vice-versa. Isso seria um desastre. Há duas circunstâncias em que um adulto fala como um estúpido: quando se dirige a um recém-nascido e quando fala com a Alexa. O primeiro caso é justificado pela evolução; o segundo deve ser evitado pela inovação.

 

 

Recentemente, a OMS falou em “infodemia” em relação à disseminação de fake news sobre o coronavírus. Cada vez mais, o aumento de informação gera insegurança e temores. Como viver a revolução digital sem ser oprimido e manipulado por ela?

Infelizmente, o excesso de informações gera confusão. Mesmo se fossem todas e apenas informações corretas, a superabundância confunde. Imagine entrar em um bar onde 10 prêmios Nobel estão todos falando juntos e em voz alta. Mesmo que todos digam coisas razoáveis e corretas, seria difícil entender alguma coisa. Além disso, há o fato de que o bar da informação se assemelha muito mais ao do Star Wars: não há apenas prêmios Nobel, mas também malandros, trapaceiros, pessoas suspeitas, embusteiros e também muita desinformação.

A solução é dupla. É preciso fazer um pouco de limpeza, e, para isso, são necessárias intervenções sociopolíticas. O bar sozinho não se limpa facilmente. Fora da metáfora, são necessárias regras e leis bem feitas. Aqui o Estado e a União Europeia podem fazer muito. E é preciso preparar melhor todos os usuários. A formação, a capacidade crítica e um pouco de inteligência para entender o que vale a pena ler ou seguir, e o que, pelo contrário, é lixo são fundamentais, assim como saber atravessar a rua. Aqui, a escola pode ter um papel vital.

 

 

A revolução da informação está mudando a escola. Não se trata apenas de dispor de novas tecnologias e de ter um acesso facilitado ao conhecimento. Trata-se talvez, sobretudo, de enfrentar novos desafios educacionais. Você acha que já é hora de repensar as prioridades do ensino? Nesse caso, quais passos deverão ser dados, na sua opinião?

Acredito que sim. Acabei de mencionar o papel essencial que a escola pode e deve ter na preparação das pessoas para viverem bem onlife. Também seria útil se a escola não fosse vista como uma fase da vida (antes, durante e depois), mas como uma instituição que acompanha toda a vida, a latere. Hoje, ainda é raro “voltar à escola”. Na realidade, deveríamos “ficar” nela. É a simples ideia da formação permanente, em que o sistema escolar, também em colaboração com o setor privado, poderia fazer muito.

Quanto aos ensinamentos, deveríamos evitar seguir modas. Se começássemos hoje a discutir o ensino escolar de Python (talvez a mais popular linguagem de programação), não seria um desastre, mas eu temo que não seria a melhor estratégia. Lembremos que os tempos de transformação de um sistema educacional são muito longos, desde a aprovação de uma reforma, à formação dos professores até o seu emprego, passam-se muitos anos. Se tivéssemos seguido as modas, hoje estaríamos ensinando, como competência essencial, o HTML, isto é, a fazer páginas web, algo de que não se sente muita necessidade.

Na realidade, as prioridades no ensino devem ser exatamente estas: prior, isto é, anteriores e superiores ao que é exigido pelo mercado de hoje ou de amanhã. Portanto, acredito que hoje devem ser ensinadas cada vez mais as várias matérias não como fatos e informações (a Wikipédia cuida disso), mas como linguagens da informação. Devemos ensinar as meninas e os meninos a falar, a ler e a escrever as linguagens da matemática e da história, da música e da informática, da geografia e da economia, da arte e da química, da física e da literatura, não apenas a própria língua materna (que é a língua de todas as línguas) e o inglês.

Se se conhece bem uma língua da informação, de modo crítico e articulado, não importa tanto quanto essa língua evolui nos anos seguintes, pois você continua sendo um bom falante, que sabe se expressar e sabe entender e se comunicar nessa língua. A atualização é simples. Cada linguagem aprendida, que assumimos como nossa (em inglês, usa-se a bela expressão ser conversant com uma disciplina), será um limite removido à nossa capacidade de sermos protagonistas na sociedade da informação. Por exemplo, se eu não sei ler e escrever a linguagem da estatística ou dos meios de comunicação de massa, serei sempre excluído desses dois mundos como ator, não só do ponto de vista do trabalho, mas também de um ponto de vista sociopolítico, porque serei no máximo apenas um usuário passivo, dependente das competências e das decisões alheias. Para simplificar, é preciso ensinar a escrever e a corrigir os verbetes da Wikipédia, não apenas a consultá-los.

 

 

Duas sensibilidades estão se confrontando justamente com o fato de não se dever seguir a moda do momento: a dos inovadores e a dos conservadores, uns abertos e fascinados pelo novo, outros ligados à tradição e aos seus valores. O que você salvaria da escola tradicional? E a filosofia?

Acredito que inovação e conservação podem ser conciliadas apontando para dois fatores. Por um lado, os clássicos deveriam ser lidos muito mais. Espero que todos possam concordar com isso, pelo menos como orientação geral. Se mandamos traduzir Tácito, ou interpretar Dante, é bom fazer estudar sobre Platão, Aristóteles, Descartes, Kant ou Wittgenstein diretamente, nos seus textos, até porque, em muitos casos, os filósofos se esforçaram para falar a todas as pessoas, de modo exotérico. Por outro lado, e me dou conta de que isto pode ser mais polêmico, se poderia abandonar o ensino historicista, para reavaliar o ensino teórico. Ter manuais escolares cujos capítulos são intitulados Metafísica, Ética, Filosofia Política e Filosofia do Direito, Epistemologia, Filosofia da Linguagem, Filosofia da Mente, Lógica, Filosofia da Ciência e assim por diante seria muito bom e permitiria que os estudantes e as estudantes realmente obtivessem uma boa imagem das questões filosóficas importantes e da instrumentação conceitual necessária para abordá-las.

 

 

Eles entenderiam que não é verdade que a filosofia nunca resolve nada, mas que, pelo contrário, ela identifica e refina as perguntas fundamentais que, pouco a pouco, preocuparam a humanidade ao longo da sua história, para oferecer um espectro de respostas que, assim como as perguntas, evoluem com a evolução da humanidade, mas permanecem sempre abertas intrinsecamente ao debate informado, razoável e urbano. Eles poderiam desenvolver um modo de pensar filosófico que olha para as perguntas e para as respostas, e para o modo como elas se ligam entre si, e não adquirir uma competência enciclopédica sobre quem disse o quê. Seria um modo de ensinar filosofia que iria de acordo não só com as disciplinas humanísticas, mas também com as científicas. A filosofia na escola pode voltar a ser a dona de casa daquele saber que não conhece barreiras, mas que hospeda todas as disciplinas, dando as boas-vindas a todos os esforços feitos pela mente humana para entender algo mais dos mistérios que a cercam. É dessa filosofia que se tem tanta necessidade hoje, também para estar à altura dos desafios levantados pelo digital.

 

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