A disputa sobre as uniões civis. Diálogo sobre Müller, Francisco e a boa teologia. Artigo de Riccardo Saccenti e Andrea Grillo

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26 Outubro 2020

Dialogamos. Sim, dialogamos sobre questões ao mesmo tempo teológicas, eclesiais e civis. Uma teologia que possa ser reconhecida como “bem comum” parece, de fato, tão difícil de pensar, até mesmo inconcebível de praticar! Mas é uma das exigências mais profundas do nosso tempo.

Tentamos discutir a fundo as questões que vieram à tona nos últimos dois dias, após a já famosa “entrevista” do Papa Francisco sobre as “uniões civis”. Eis o nosso diálogo, que nasce como reação às palavras publicadas em duas entrevistas concedidas pelo cardeal Gerhard L. Müller aos jornais La Repubblica e Corriere della Sera no dia 23-10-2020.

O diálogo se estabeleceu entre o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, e o filósofo italiano Riccardo Saccenti, pesquisador da Fundação para as Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha.

A conversa foi publicada por Come Se Non, 24-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o diálogo.

Andrea Grillo – Não fiquei surpreso, caro Riccardo, ao ler as palavras do cardeal Müller. Recordo que, ainda durante o duplo Sínodo sobre a família, e depois nos comentários à Amoris laetitia, ele interviera – também como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – com palavras duras, ao mesmo tempo claras demais e rudes demais. Já então, chamou-me a atenção essa pretensão, ao mesmo tempo fundamentalista, integralista e maximalista, de encerrar o debate com base em uma leitura teológica tão imediata e tão distante da necessária fineza, a ponto de eu ficar impressionado. Tudo isso com o agravante, repetido quase até o tédio – e retomado também nas duas entrevistas dos últimos dias –, de querer oferecer uma análise “verdadeiramente teológica”, contra aquelas pseudoteologias que, na opinião dele, não teriam fundamento algum.

A ideia, que ele expressou várias vezes, de uma função de “correção” do magistério papal por parte da Congregação também ressurge ainda nos textos recentes: tudo o que não é leitura fundamentalista da Escritura e da tradição parece a Müller confuso, suspeito, prejudicial. Ele parece não pensar sequer remotamente que é a realidade que é confusa e exige categorias mais elásticas, mais flexíveis e menos drásticas. Mas talvez eu esteja exagerando: nas palavras dele, você acredita que é possível encontrar coisas valiosas?

Riccardo Saccenti – A entrevista do cardeal Müller, na clara postura a respeito das palavras de Francisco de assentimento a uma legislação eficaz sobre as uniões civis, tem alguns méritos que precisam ser enfatizados. Em primeiro lugar, ele afirma que “o papa pode errar”: uma afirmação relevante a respeito de um exercício da autoridade magisterial da Igreja que muitas vezes se sobrepôs e se confundiu com o discurso teológico. Se o papa pode errar – como afirma, aliás, uma longa tradição da Igreja – a infalibilidade do sucessor de Pedro não tem um valor absoluto, e, portanto, o processo histórico e teológico que tendeu a traduzir a infalibilidade a partir unicamente do plano dos dogmas de fé a todo o magistério papal mostra agora os seus próprios limites. Isto é, vem à tona como aquilo que, em 1870, era o resultado de um processo secular que fixava limites e procedimentos de exercício da infalibilidade tornou-se o pano de fundo sobre o qual se repensou o primado romano construindo uma equivalência arriscada entre a autoridade que deriva do papel do bispo de Roma no colégio apostólico e a sua autoridade dogmática exercida com modalidades monárquicas. O papa, então, é infalível quando desempenha a sua função: confirmar os irmãos na fé, porque ele não é o titular exclusivo dessa fé, mas, pelo contrário, é a testemunha certa. Uma fé viva no Povo de Deus e cujos conteúdos salvíficos não podem se confundir com as realidades que passam pela cena da história.

Andrea Grillo – Como é evidente, quase malgré soi, Müller parece ao mesmo tempo reiterar a imutabilidade de uma doutrina perene e tirar as consequências mais extremas da crise do modelo do século XIX que ele parece querer defender com a espada desembainhada. É verdade, de fato, que, sobretudo sobre o tema matrimonial, a tradição católica é atravessada por uma dupla tendência: por um lado, diante da personalização tardo-moderna, ele parece querer bloquear a história em uma instituição jurídica da qual quer deter o controle total, até contestar toda autoridade civil que não seja a autoridade eclesial; por outro lado, ela deve permanecer fiel a uma tradição que acompanhou o matrimônio com uma grande atenção tanto ao sujeito masculino e feminino, únicos verdadeiros titulares do consentimento, quanto à simbólica do amor, cuja lógica é uma “analogia imperfeita” do amor entre Cristo e a Igreja.

Parece-me que Müller, precisamente quando quer defender a tradição, deve ser forçado a reconhecer toda a sua riqueza, não redutível apenas ao desenho institucionalista do século XIX. A pretensão, tão forte nas suas palavras, de “permanecer fiel” oscila perigosamente entre o “paradigma Cristo” e o “direito natural”. A fim de não admitir a exigência de um “novo paradigma” – do qual o próprio Papa Francisco, e não apenas pseudoteólogos, falou com tanta clareza – ele cai em contradição. Você não acha?

Riccardo Saccenti – Parece-me que há um segundo elemento de novidade que emerge a partir das palavras do ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Isto é, o fato de que uma avaliação de ordem teológica não é um absoluto, mas pode ser ou, melhor, deve ser objeto de uma discussão que admite também o dissenso, mesmo quando se está diante de uma avaliação que vem do bispo de Roma.

Por baixo da tomada de posição de Francisco sobre as uniões civis, de fato, há uma avaliação teológica profunda: a ideia de que a relação de amor entre seres humanos é o lugar onde habita o nosso ser à imagem e semelhança de Deus, e que, portanto, a Igreja só pode olhar com confiança para todas as iniciativas que os Estados implementam para proteger e dar dignidade a essas relações afetivas.

Ao fazer isso, Müller testemunha a necessidade, vital para a teologia, de discutir e debater: uma necessidade que a torna aquele caminho de sabedoria e inteligência que nos permite sempre retornar aos conteúdos da fé acreditada para compreendê-los cada vez mais plenamente. Isso significa, então, que questões desse tipo, que vão além dos pressupostos da fé e da teologia que o Povo de Deus confessa todas as vezes que celebra a eucaristia, não envolvem verdades absolutas. Pelo contrário, um caso como o pedido de dignidade que vem do amor entre seres humanos, nas suas diversas formas, representa um daqueles aspectos do humano a partir dos quais os fiéis, e entre eles principalmente os teólogos, são chamados a interrogar de novo a fé para entrar de maneira mais completa no valor salvífico que narra a dignidade do ser humano no qual Deus se encarna.

Andrea Grillo – Eis, então, um ponto decisivo: as “vidas concretas” e os “fatos de amor” que se enraízam, que desafiam o tempo, que geram confiança, que despertam admiração, podem ser irrelevantes para a Igreja? A pretensão de que as “uniões civis” permanecem “invisíveis” ou que são “um nada” constitui uma fraqueza teológica que oculta ao mesmo tempo um embaraço e uma solução apressada demais. Porque, quando dizemos “uniões civis”, antes mesmo de falar em “normativas”, falamos de vidas, de histórias, de consciências, de corpos que convivem.

Reconhecer o bem lá onde ele acontece, ainda que parcial, ferido, mancando, não é talvez uma das tarefas mais delicadas e mais proféticas das quais a Igreja deveria sentir a necessidade de se encarregar? E como podemos negar que, nesse âmbito, as formas de vida, que há um século se desenvolveram em grandes partes do mundo, viram o surgimento de modos da sensibilidade, relevâncias da sexualidade, adiamentos da autodeterminação de si e antecipações de experiência antes totalmente inconcebíveis?

A “transformação da intimidade”, entendida não ideologicamente como politização das relações, mas como nova percepção da união e da geração, pode talvez ser liquidada com a leitura superficial de um versículo bíblico e, assim, reduzida à irrelevância, quase com um dar de ombros?

Parece-me que falta aqui precisamente o exercício daquela “paciência teológica”, que deve traduzir e reconectar, reler e redescobrir a trama sutil que liga o presente ao passado e o abre ao futuro. Uma discussão em aberto, sem suspeitas, parece-me o único caminho. Você não acha?

Riccardo Saccenti – É possível ou, melhor, necessário e essencial que as palavras do papa suscitem uma discussão. Mas isso também vale para a posição expressada pelo cardeal Müller, que não tem um valor de infalibilidade doutrinal, mas, ao se colocar no campo da reflexão teológica, é por natureza discutível.

Müller põe em discussão esse nó temático e a distinção entre o campo do saeculum (onde operam os Estados e amadurece no tempo a sensibilidade sobre os direitos) e o da fides (onde, em vez disso, opera uma contínua inteligência dos conteúdos do Evangelho à qual cada geração é chamada a partir do tempo em que é chamada a viver).

Ele propõe isso alavancando uma interpretação literal do ditado da Escritura, defendendo que a littera do Gênesis, pelo fato de ser descritiva, da criação e da estrutura do gênero humano operadas e estabelecidas por Deus também é normativa. Trata-se de uma abordagem que, por si mesma, parece discutível por muitas razões: acima de tudo, porque coloca a Palavra de Deus como um absoluto, negando a função de uma traditio exegética que tem a densidade secular da própria história cristã e que sempre foi multiforme em seu interior, filha daquela capacidade da Escritura de crescer junto com quem a lê, como recordava Gregório Magno.

Além disso, a absolutização assertiva das teses de Müller parece em contraste com a consciência do valor da historicidade da Escritura e das formas nas quais ela expressa os conteúdos de fé: um ponto crucial daquela Dei Verbum que o purpurado também reivindica como um texto crucial para não se desviar das verdades da fé. Por fim, Müller lamenta o risco de uma mundanização, que coloca os paradigmas políticos antes do Evangelho, mas depois ele mesmo corre o risco oposto, isto é, de rebaixar o Evangelho (ou, melhor, uma interpretação dele) a um paradigma político, quando ele se pronuncia sobre as iminentes eleições estadunidenses.

Andrea Grillo – Parece-me muito útil lembrar também um justo aprofundamento da referência que Müller propõe à posição de Paulo em relação a Pedro. Ele parece dizer: se Paulo ousou corrigir Pedro fraternamente, então é bem possível levantar objeções ao papa. Mas você diz com razão: leiamos o texto da carta aos Gálatas a que Müller se refere. Vou relatá-lo aqui:

“Quando Pedro foi a Antioquia, eu o enfrentei em público, porque ele estava claramente errado. De fato, antes de chegarem algumas pessoas da parte de Tiago, ele comia com os pagãos; mas, depois que chegaram, Pedro começou a evitar os pagãos e já não se misturava com eles, pois tinha medo dos circuncidados. Os outros judeus também começaram a fingir com ele, de modo que até Barnabé se deixou levar pela hipocrisia dele. Quando vi que eles não estavam agindo direito, conforme a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, na frente de todos: ‘Você é judeu, mas está vivendo como os pagãos e não como os judeus. Como pode, então, obrigar os pagãos a viverem como judeus?’” (Gl 2,11-14).

Riccardo Saccenti – Sim, são esses os versículos do segundo capítulo da epístola de Paulo aos Gálatas, nos quais se relata o episódio da “correção fraterna” de Paulo em relação a Pedro. Um episódio que o cardeal Müller recorda para justificar a sua tomada de posição pública contra o papa. Porém, ao ler corretamente a passagem, emerge um elemento singular: aquilo que Paulo contesta em Pedro é uma simulação. Tentar mostrar aos seus correligionários judeus uma rígida fidelidade à lei mosaica que exclui os gentios da comunhão com o Povo de Deus. Atitude essa que, para o judeu Paulo, contradiz aquilo que a sua experiência de apostolado entre os gentios lhe revelou do Evangelho: que se trata de um anúncio dirigido ao ser humano, que permite compreender ainda melhor também o sentido do pacto do Sinai. É a experiência sapiencial do mundo, colocada diante do Evangelho, que revela a Paulo uma inteligência mais profunda das coisas e neutraliza a periculosidade do processo contrário. Porque fazer da fé um sistema normativo significa constrangê-la aos vínculos rígidos de um código de leis: uma das estruturas mais marcadamente mundanas, renunciando a toda a infinita profundidade de um caminho de liberdade e verdade.

Andrea Grillo – Um colega meu citou recentemente, em um belo artigo sobre a tradição litúrgica antiga, um texto de Gregório Magno que diz:

“Seria tolo quem, considerando-se o primeiro no bem, não quisesse aprender as coisas boas que vê.”

Os sinais dos tempos têm algo a ensinar à Igreja. Que certamente é mater et magistra, mas que, precisamente como todas as verdadeiras mães e as verdadeiras mestras, sabe que tem que aprender algo de decisivo com a vida dos seus filhos e com o saber dos seus discípulos.

Riccardo Saccenti – Ao término deste diálogo, considero oportuno sublinhar novamente a importância da tomada de posição pública de Müller. É o sinal de um caminho que chega à maturidade: que liberta a teologia de uma confusa sobreposição com o magistério e restitui a liberdade da busca da verdade da fé, que é um dos aspectos mais vitais da humanização cristã da inteligência das coisas.

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